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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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ABUSOS E ATEÍSMO NA IGREJA

Os padres não comem criancinhas - J César das Neves.jpg

A lamentável história dos abusos sexuais de menores por gente ligada à Igreja Católica constrange-nos a uma dolorosa constatação: afinal, os vigários de Cristo, seus acólitos e demais gente devota não são crentes; são muito provavelmente ateus. Eu explico-me:

Pouco antes da Revolução Francesa, Voltaire, que, a propósito de Deus, dizia «cumprimentamo-nos, mas não nos falamos», dizia também «Deus não existe, mas não digam isso ao meu criado, não vá ele matar-me durante a noite» e dizia ainda «se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo». Independentemente do carácter aparentemente contraditório destas afirmações – o que se prende com o conceito deísta de Deus, muito diferente da concepção cristã – Voltaire tinha alguma razão. Para além do facto de o termos efectivamente inventado (em qualquer das acepções deístas e teístas), a burguesia em ascensão, prestes a assumir o poder, bem carecia do imprescindível anteparo da crença religiosa para, futuramente, assegurar a defesa da (sua) propriedade e do (seu) Estado. Nada melhor do que o medo do castigo divino para assegurar a paz social, pondo o criado ao abrigo de intenções malévolas.

No século seguinte, Dostoievski escreveria «Se Deus não existisse, tudo seria permitido» (Os Irmãos Karamazov). Creio que tinha, igualmente, alguma razão, e Sartre não deixou de lha reconhecer, em O Existencialismo é um Humanismo, embora numa perspectiva oposta: Deus não existe, logo não há uma “natureza humana” definida por Deus à partida, logo não há ordem moral pré-definida, logo tudo é, efectivamente, permitido ao homem, que goza de inteira liberdade para definir a sua essência.

Bem antes de Sartre, o anarquista Bakunine, contemporâneo de Dostoievski, subverteria as palavras de Voltaire e do compatriota, escrevendo, em Deus e o Estado, «Se Deus existisse, seria preciso aboli-lo». Como bom anarquista, abominava todas as formas de autoridade – a do Estado como a da Igreja, como qualquer outra – e a ideia de um ditadorzeco, dono disto tudo, instalado nas profundezas do infinito a mexer os cordelinhos do universo, “revolvia-lhe as entranhas” (expressão de Peter Atkins, em Como Surgiu o Universo).

Mais ou menos pela mesma altura, Marx e Engels, estribados no materialismo dialéctico e no seu conhecimento vivido das condições materiais em que vegetava o proletariado industrial, compreenderam que o “ópio do povo” (Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel) fazia falta aos trabalhadores para suportar a dureza da exploração capitalista, mas sublinhavam que urgia acabar com essa “felicidade ilusória” (idem), o que passaria por suprimir as cadeias que acorrentavam os trabalhadores a um sistema alienante caracterizado pela apropriação das mais-valias produzidas pelo seu trabalho e remunerados na estreita medida necessária à reposição da sua força de trabalho.

Num registo panfletário, próprio de diletante oriundo de uma família muito ligada ao protestantismo (pai e avô pastores luteranos) e com relações de amizade na aristocracia e na alta burguesia da época, Nietzsche “mataria” Deus, desancando a natureza mórbida e deletéria do cristianismo, com o seu «ódio ao espírito, ao orgulho, à coragem, à liberdade, à “libertinage“ do espírito; […]; o ódio contra os sentidos, contra a alegria dos sentidos, contra a alegria em geral…» (O Anticristo). Não obstante, idealizou um além-homem ou super-homem (übermensch), que, tal como ele próprio, parece aspirar à condição divina. A prosápia nietzschiana de auto-elogio, o seu marcado elitismo e o seu ódio àqueles que lutam pela emancipação do proletariado não deixam dúvidas quanto à sua opção de classe.  

No século XX, Freud assestou mais um golpe no corpo já amplamente chagado do mito, mostrando em pormenor a filiação da crença religiosa no complexo paterno – a nossa “herança arcaica” (assassinato do pai na horda primitiva, in Totem e Tabu, 1913) – e a natureza neurótica obsessiva das práticas religiosas (Actos Obsessivos e Práticas Religiosas, 1907). Mas não deixa de assinalar a importância de um compromisso neurótico que, como Morin (O Paradigma Perdido) e até um poeta anglo-americano sublinhariam mais tarde, era necessário para suportarmos o duro impacto da realidade («human kind cannot bear very much reality», T.S. Eliot, Four Quartets)

Aqui chegados, impõe-se-nos o seguinte raciocínio: se, para tantos sacerdotes e leigos ligados à Igreja, tudo é permitido, até servir-se de crianças para satisfazer a sua concupiscência, destruindo-lhes a vida de uma assentada, isso só pode entender-se porque, para eles, como para qualquer bom ateu, Deus não existe. A não ser assim, como compaginariam eles a sua prática criminosa com a crença num Deus omnisciente que os não pouparia no Dia do Juízo Final e os condenaria, sem apelo nem agravo, às duras penas do inferno? Se fossem crentes, certamente não se sujeitariam ao castigo de Deus, do mesmo modo que o criado de Voltaire e os “precursores do ulterior proletariado” não ousariam desafiar as autoridades da época.

Há, talvez, uma falha neste raciocínio (quando digo uma, é só para obnubilar todas as outras): poderá dar-se o caso de o sacerdote ou leigo ligado à Igreja ter fé na misericórdia divina e esperar dela a absolvição no tal Dia do Juízo. Melhor do que ninguém, Deus, que nos criou e nos deu o livre arbítrio), sabe a que ponto somos fracos e passíveis de ceder às tentações do seu mais directo e insidioso adversário, o malfadado Satanás. Esse conhecimento poderá, pois, levá-lo a condescender e a perdoar crimes de criaturas que têm a atenuante de Lhe terem sido úteis na doutrinação do seu rebanho. No fundo, uma troca de favores ou remuneração por serviços prestados. Como Deus escreve direito por linhas tortas, não há que estranhar, e não foi assim há tantos séculos que as indulgências plenárias compraram a muitos um lugar à direita do Senhor, quando em vida tinham abusado a torto e a direito de fiéis e infiéis de todas as idades.

Para encurtarmos caminho, dêmos inteiramente razão a Dostoievski: como tudo é permitido, até àqueles que têm por missão promover o culto e a veneração do Criador, os abusos na Igreja e fora dela são a melhor prova da inexistência de Deus. Palavra de ateu. Mas de ateu para quem, como para tantos outros que não se fazem passar por crentes, nem tudo é permitido. E não por medo das penas do Inferno.

Ite, missa est.

Visuais, invisuais e outros que tais

Visuais, invisuais e outros que tais

Uma conversa de circunstância sobre a “ressonância” pejorativa de “perneta” e “maneta” (incómoda rima com “cheta”, “peta”, “ranheta”, “treta”,…), e o meu desconhecimento de alternativas de “sonoridade” mais científica trouxe-me à memória um “Contraditório” (programa da Antena 1) de há uns anos, em que Ana Sá Lopes, contrita, se penitenciava por ter, em programa anterior, usado a conhecida expressão “não dava para mandar cantar um cego”, a propósito de certo valor monetário. Creio que a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal protestara, com alguma razão, por se recorrer a uma expressão que veicula um velho preconceito em relação aos seus associados – o de que cego é sinónimo de mendigo que canta para sobreviver.

Não é aí que reside a razão deste post, mas sim no aparente desconforto que hoje parece vigorar, quando se faz referência às pessoas privadas do sentido da visão, chamando-lhes “cegos”. Para ultrapassar o incómodo, usa-se o termo “invisual”. Para além de me parecer um neologismo canhestro, “invisual” tem o defeito suplementar de nem semanticamente corresponder ao que se pretende nomear.

“Invisual”, como “visual” são, para começar, adjectivos. Uma sensação é visual ou auditiva, ou qualquer outra coisa, e quem é privado de sensações visuais pode dizer (vamos lá!...) que só tem sensações invisuais (olfactivas, tácteis, gustativas, etc.), qualificativo algo abstruso e absconso, mas aceitável, num registo irónico, caso o sujeito em questão encontrasse no sentido de humor redenção fugaz para a sua infelicidade. O problema surge, porém, quando nominalizamos o adjectivo, dizendo do cego que é um “invisual”, pois a “visualidade” do cego tem a sua sede em quem o vê e não nele mesmo. Por outras palavras: para quem tem a capacidade de o ver, o cego é perfeitamente visual e não invisual. A “invisualidade” do cego existiria, de facto, se ele fosse invisível para os demais. Porém, é para o cego que aqueles que vêem são invisuais, invisíveis ou insusceptíveis de ser vistos, sendo certo que essa invisibilidade não é característica dos que vêem, mas se deve à incapacidade de quem não vê, e a única excepção conhecida é a do cinematográfico Homem Invisível.

Admito que tudo isto possa parecer uma charada de mau gosto, mas não é assim que o entendo, e, se o meu raciocínio vos parece incoerente, revelador de deficiente conhecimento da língua ou até indiciador de desrespeito por quem padece de cegueira, quero garantir que a minha intenção é séria e respeitosa.

Os Franceses, tanto quanto julgo saber (mas posso estar desactualizado) continuam a chamar “aveugle” a quem não vê e não me consta que tenham optado pelo termo “invisuel”. O que têm é dois substantivos diferentes para designar duas formas de cegueira – “cécité” e “aveuglement”. A primeira é a cegueira propriamente dita, isto é, a que priva de sensações visuais; a segunda é a cegueira do espírito: não ser capaz de ver, compreender ou aceitar aquilo que, na perspectiva de quem acusa, é óbvio. Quanto aos Ingleses, creio que também se contentam com a “blind person”, sem problemas de maior.

Muito provavelmente, esta aversão pelo termo “cego”, assim como pelo termo “deficiente”, agora substituído pela perífrase “pessoa com deficiência” ou “pessoa portadora de deficiência” (definição dicionarística com recurso vicioso à flexão do termo a definir) radica no politicamente correcto, moda que institui uma novilíngua pretensamente despojada de conotações negativas herdadas do passado. Na verdade, os “invisuais”, as “pessoas com deficiência”, os “colaboradores” das modernas empresas, os “auxiliares de acção médica, educativa, etc.” são tão cegos, deficientes e operários como os de outrora, porque o mundo mudou, sim, mas não tanto quanto os “novilinguistas” querem fazer crer.

Voltando, para concluir, ao “invisual”, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Sociedade de Língua Portuguesa, coordenação de José Pedro Machado (1981), e o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do mesmo J. P. Machado (3.ª edição, 1977) não contemplam a entrada “invisual”. Já o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, pelo menos desde a 6.ª edição, de 1984, define “invisual” como «adj. e s. 2 gén. que não vê; s. 2 gén pessoa cega (de in+visual)», ao mesmo tempo que define “visual” como «adj. 2 gén. referente à vista ou à visão […]». Em princípio, a derivação por prefixação negativa deveria ter conferido a “invisual” o significado contrário a “visual”, isto é, «não referente à vista ou à visão». Mas não. Em algum momento da história da língua, aparentemente nos anos 80, um qualquer abalo sismicolinguístico derrubou o poder instalado da lógica gramatical e instaurou uma nova ordem semântica: o cego, cuja definição tem tudo a ver com a vista e a visão, passou a ser “invisual”, ou seja, «não referente à vista ou à visão».

Diz o Professor Fernando Venâncio que «não são as línguas que evoluem, são os seus falantes que as modificam». Tem razão. As línguas faladas sofrem a evolução que os seus falantes lhes conferem. Às vezes também sofrem tratos de polé. Esperemos não deparar, um dia destes, com uma nova mutação genética que faça dos surdos “inauditivos” e, de quem está privado de sensações gustativas, tácteis e olfactivas, respectivamente, ingustativos, intácteis e inolfactivos.