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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Ronaldo e a namorada; você, Senhor Francisco; o Engenheiro e a sociolinguística

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Foi a insistente ocorrência do termo “namorada”, na nossa comunicação social, a propósito de Georgina Rodríguez, que me sugeriu as seguintes considerações (que valem o que valem).

 

Há múltiplos factores que afectam o uso que fazemos da língua (do que se ocupam a sociolinguística e a pragmática linguística), mas, a não observarmos um certo número de regras e convenções que a constrangem, corremos o risco de cair na mesma algaraviada que os pobres Babilónios, quando Deus lhes escaqueirou a torre bíblica (segundo algumas fontes), ou, no mínimo, de suscitar algum ridículo.

 

1. Esposa, mulher, companheira e namorada

 

Até há uns anos, “namorada” era aquela pessoa do sexo feminino com quem se tinha uma relação amorosa mais ou menos duradoura, mas que não dera ainda lugar à vida em comum. Pouco nos importa, hoje, o grau de intimidade da relação, mas não faria sentido, há uns anos, dizer-se que Fulano vivia com a namorada. Se vivia com a namorada, sem estarem casados, era porque a namorada se tornara “companheira”; se se tinham casado, ela era a mulher dele, e era como “mulher”, e não “esposa” que ele a ela se devia referir; os outros membros da comunidade, dando-se o caso de estarmos num meio social privilegiado, à “mulher” de Fulano de Tal deveriam referir-se como “esposa” (“Cumprimentos à esposa do Senhor Doutor…”). É ridículo um indivíduo referir-se à sua mulher dizendo “a minha esposa”, como é ridículo chamar-se namorada à mulher com quem se vive e de quem se tem filhos, como suponho ser o caso do casal Georgina-Ronaldo, e como tem acontecido na comunicação social. Quanto a poder-se continuar a namorar após o casamento ou união de facto, nada a objectar. Que os parceiros de uma relação se refiram um ao outro como “namorados”, ainda bem, é sinal de que são felizes na relação. Entre eles, até podem tratar-se por bichanos ou quiduchos ou queriduchos, e adoptar um léxico íntimo que estimule potencialidades insuspeitas. É lá com eles. Mas, para quem está fora da relação, o vocabulário há-de respeitar o necessário distanciamento. Quanto a “marido”, ouvem-se cada vez mais mulheres casadas, de camadas sociais que não as mais desfavorecidas (como acontecia noutros tempos), a referir-se ao marido dizendo “o meu homem” – facto que reflecte a evolução sociológica no sentido da democratização e da igualdade de género.

 

 2. Você, Senhor Francisco

 

Generalizou-se também entre nós o uso de “você”, como se este pronome não tivesse herdado do passado uma aura significativa da familiaridade que é de norma entre amigos ou pessoas muito próximas, em termos de idade, de estatuto social ou de interacção no quotidiano. Por muito que a sociedade tenha evoluído no sentido da democratização das relações entre cidadãos (teoricamente, iguais perante a lei), o facto é que a preferência por “o Senhor / a Senhora”, em detrimento de “você”, continua a ser sentida como indiciadora de marca de cortesia e respeito, por uma boa parte dos falantes do português de Portugal. Por enquanto, no uso de “você”, o emissor deve ter em atenção a sensibilidade do seu interlocutor.

 

Por outro lado, é descoroçoante o tratamento pelo nome próprio (“Senhor Francisco”, “Senhor João”), nas relações entre clientes e empregados do comércio, entre utentes de serviços públicos e os respectivos funcionários. Ao lhe ser sonegado o sobrenome, o Senhor Francisco é reduzido à condição de um qualquer homónimo, equiparado a todos os outros Franciscos da terra, tão insignificante que se deve contentar com aquele rótulo – é uma espécie de genérico, sem marca.

 

3. O Engenheiro

 

Nos antípodas do que precede está o tratamento insistentemente dado por estes dias ao treinador recém-dispensado da Selecção Nacional. Toda a gente sabe que Fernando Santos é engenheiro. Até eu sei! O que já não sei é por que carga de água à comunicação social lhe deu agora para chamar à baila o canudo do treinador a todo o instante. Ou melhor, sei. É marca de cortesia e de gratidão para com o técnico que deu tantas alegrias ao povo, e bem sabemos que as alegrias futebolísticas são emocionalmente muito compensadoras da falta delas em tantos outros domínios. Agora, se no lugar do Engenheiro estivesse o Jorge Jesus, não sei a que canudo os nossos jornalistas recorreriam. Esse outro treinador seguiu um percurso menos académico, mas, que diabo!, também terá dado algumas alegrias a muitos Portugueses – julgo eu, que de futebol sei menos do que de astrofísica. O José Mourinho, que julgo ser licenciado, se vier a ser treinador da Selecção com êxito, mais ano menos ano lá vai ser apelidado de Doutor ou, no mínimo, de Licenciado, designações que, para além de marcas de cortesia, parecem representar um acréscimo significativo de informação para quem as ouve: ganhar-se um campeonato com um treinador licenciado é outra coisa…