Coração modelado em labareda, de Domingos Lobo – uma labareda modelada em livro
Até há poucos dias, de Domingos Lobo, eu conhecia apenas alguns textos de crítica literária dos que vem publicando ao longo dos anos e que, provavelmente, escaparão até à maior parte dos amantes da literatura, atraídos por endereços diversos daquele que Domingos Lobo elegeu. Textos reveladores de uma sólida cultura literária, histórica, política – mas não me alongarei aqui num encómio de que o autor não carece e que não é o objecto deste meu apontamento[1].
O que me traz é a surpresa da descoberta. Da descoberta de um ficcionista, para além de poeta, que eu ignorava e que me encheu as medidas, se tal expressão é permitida nestas lides da crítica.
Li coração modelado em labareda[2] em três ou quatro dias, que este é daqueles livros que não nos deixam a alma em descanso, quero dizer, que nos põem a vontade aos saltos, a querer saber o que virá a seguir, se aquele fôlego torrencial, vertido num léxico de fazer inveja a muitos, é coisa para ser levada até ao fim, sem quebra nem definhamento, se as experiências próprias de uma adolescência intensamente vivida vão ser testemunhadas com a verdade que a vida tem, se o quadro circunstancial de um Portugal enfronhado na beatice salazarenta e na tacanhez de um horizonte agarrado à ponta do nariz corresponde àquilo que a idade, a mim também, proporcionou, ainda que em muito menor escala, se a expressão dos sentimentos que nos aproximam uns dos outros – amigos, irmãos, família, inimigos até – era aquela que eu gostaria de saber usar, não fossem escassas as palavras de que disponho. E sim. Lido em três ou quatro dias, o «diário marginal de um adolescente no país do ‘botas’» (subtítulo do livro) dá-nos mesmo um retrato vigoroso e genuíno de uma certa e, por assim dizer, natural marginalidade de um adolescente, no país onde punha e dispunha o Botas, o Manholas. Tudo num registo de fazer inveja ao Roth, ou ao Luiz Pacheco, entre outros cultores de um léxico e de uma exposição imoderada, a exigir bola vermelha.
Há, neste “diário marginal”, um jogo de sombras que se anuncia num Aviso Prévio cheio de ironia e ambiguidade: finge dizer o que não diz ou não dizer o que diz, já que as personagens «terão ou não existido» e a imaginação do narrador as terá burilado «até delas restar sequer o cheiro». Cabe ao leitor tê-lo presente, para cabal entendimento do subtítulo. É que o olhar desabusado que o “diário” extensamente revela, sobretudo na parte referente à infância e aos primeiros anos da adolescência, não é propriamente compatível com a tenra idade do narrador. O que temos, de facto, voltando aos termos do Aviso, é um narrador adulto cuja “imaginação delirante” burila as suas personagens “até delas restar sequer o cheiro”, processo a que nem a personagem-narrador escapa. Adolescente ou adulto, o narrador recupera memórias da infância e da adolescência em Nagosela. O poema de abertura, poema da “memória essencial”, envolve-as no manto fulgurante da metáfora. Transcrevo dele os versos iniciais, que dão o tom ao conjunto:
sou destes caminhos de pedra ferida / de lagares de granito / odores antigos / a mosto e a resina no esconso dos assombros / de vinho nas conversas de vagares / onde se cumpre o tempo os rituais da terra e da saudade / com broa quente sobre toalhas de linho / e beijos roubados no ventre dos lameiros (p. 15)
Não me alongarei em pormenores de natureza diegética, mas, para além do já exposto, abro as três seguintes excepções, para apresentar a parte mais significativa do núcleo familiar do narrador:
Tendo ou não existido, o que, para o leitor, nem será questão relevante (sê-lo-á para o historiador da literatura, mas sobretudo para o historiador tout court ou para o biógrafo), «o pai sonhava, era uma ausência, uma suspensão sentada frente à sopa que arrefecia» (p. 21), isto logo no início, quando ainda pouco mais do que assemantema[3], que, com o desenrolar da acção, será mais do que sonhador ausente – contestatário do regime sem tento na língua, tanto quanto infractor da moral e bons costumes, cumprindo um «ritual de infidelidade […] com safadeza tal que só a cegueira atarefada da mãe, perdida nos labirintos das suas rotinas de anacoreta do efémero, não via de tão evidente» (p. 124). O pecado valer-lhe-á a censura do filho.
Já com o avô materno, cujo oposicionismo político parece assentar em bases mais sólidas do que as do genro e se conjuga harmoniosamente com a libertinagem serôdia, o adolescente condescende:
enrolado nas rugas, o sorriso sacana de quem se está marimbando para o mundo e seus códigos, lamento cínico no cerzido das entrelinhas: o puto é um homem, um Lobo, há que fazê-lo macho antes que tu [a filha] o estragues com homilias à Virgem e hosanas ao manholas. (p. 29)
Igual a tantas outras mães, nascidas e criadas para o santo sacrifício do matrimónio e da servidão doméstica, a mãe assegura a reprodução – da espécie, da crença religiosa e do respeito acrítico da autoridade política. Mas desenganemo-nos, se pensarmos que o seu papel é meramente reprodutor da natureza e do que a super-estrutura ideológica comporta de negativo. Contrariando a cartilha pífia do quanto mais me bates, mais gosto de ti, a mãe não condescende com a infidelidade. São, por outro lado, enternecedores os episódios em que o narrador com ela contracena, e uma marca de verticalidade do filho a condenação da injustiça que afecta a condição feminina numa sociedade patriarcal e de costumes pouco brandos. Entre outros passos, o seguinte é bem ilustrativo de uma marginalidade adolescente que não desconhece as marcas da mais lídima ternura:
«O chinelo voador da mãe é castigo a que me não vergo. Ela corre ao derredor da mesa, como os burros da nora na quinta do avô, eu avanço, passos bem medidos para que o chinelo me não atinja, aos pinotes, gargalhada feliz, até que ela se cansa de tanta volta infrutífera, calça o chinelo, bebe um copo de água e trinca, vencida, tu matas-me, rapaz, uma maçã. […] Apercebo-me, no final destas pelejas caseiras, enquanto a mãe me barra a torrada com marmelada, da puerilidade do meu gesto, beijo-a, peço-lhe desculpa e rendo-me no seu colo, desfeito de ternura. Podes bater, mãe, eu não fujo. Ela passa-me as mãos pelos cabelos e a serenidade da tarde enche a casa da paz dos dias frágeis.» (p. 92)
Importa, enfim, referir um aspecto particularmente impressivo da técnica narrativa do autor, que o emparelha, em modernidade, com alguns dos grandes ficcionistas nossos contemporâneos: a versatilidade dos discursos vs dinâmica das “vozes”, isto é, a rápida sucessão de enunciados da responsabilidade de diferentes instâncias enunciativas (o narrador e outras personagens), o que passa pela omissão da utensilagem tradicional do discurso directo, conforme se vê no exemplo seguinte:
«[Voz da mãe:] Safado, que nem por ele ódio sinto, só desprezo e comiseração, mais nada. Que se sente só e angustiado, [voz do pai:] é de ti que gosto, mas tu repeles-me, e eu um homem carente de ternura, [voz da mãe:] desde o berço, a fazer-se vítima, o tratante, olhos melados, de boi manso. [Voz do narrador:] Vejo-a cansada, uma ruga a vincar-lhe a nostalgia num rosto que de repente envelhece. [Fala da mãe:] Agora sai, pequeno, que me vou à deita.» (p. 37)
Domínio de um léxico rico e de registos variados, ductilidade do discurso narrativo e testemunho documentado da nossa história recente fazem deste coração modelado em labareda um esplêndido ponto de encontro com Domingos Lobo.
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[1] A faceta da crítica literária aflora, de resto, algumas vezes, neste livro. Para citar apenas dois exemplos, leia-se, na pág. 51, a referência a Dostoiévski, Tolstói e Gorki e à sua “arte da introspecção”, e, nas pág. 150-151, a digressão sobre o “ruralismo ingénuo e romântico de Júlio Dinis, cujas Pupilas do Senhor Reitor alimentaram um folhetim da Emissora Nacional em 1961.
[2] Página a Página, Lx.ª, Junho 2022. O título coração modelado em labareda foi retirado do poema de Egito Gonçalves «Dói este vocábulo», conforme se assinala na pág. 6 desta edição.
[3] Cf. Philippe Hamon, Para um estatuto semiológico da personagem, in Categorias da Narrativa, Arcádia, Lx.ª, 1976, p. 100, ou V. M. de Aguiar e Silva, A Estrutura do Romance, Almedina, Coimbra, 1974, p. 36