Os Corredores Habitados, de Adão Contreiras – uma escrita habitada pela liberdade da poesia
De há muito conhecido como pintor e escultor, só mais recentemente, e já aposentado do ensino que serviu durante quarenta anos, Adão Contreiras se deu a conhecer como poeta. Integraram as suas primeiras recolhas de poemas[1] composições por via de regra pouco extensas, por vezes mesmo muito curtas, caracterizadas por uma grande profusão imagética, ao que não será alheio o facto de ser Adão Contreiras cultor das artes plásticas. Com efeito, tem-se frequentemente a impressão, ao ler os seus poemas, de que as palavras são lançadas na folha branca de papel à maneira de pinceladas que se vão buscar a uma paleta de cores muitas vezes fortemente contrastantes ou como se fossem objectos heteróclitos reunidos no espaço do poema. Em Página Móvel com texto Fixo, deparamos com formulações como estas, que apontam para a indagação das virtualidades do signo linguístico:
São como fósforos / acendendo-se na mente / as palavras que nascem / involuntárias ” […]15.º §), “Em crepúsculos de íntimo olhar / moram as palavras a nascer ” [… ](16.º §), “Quando a palavra voa e se estilhaça / de encontro à pedra / soa um labirinto de vozes cingidas / ao coração da matéria” (61.º §); as palavras são como os alcatruzes / mergulham na profundidade das águas do corpo / e sobem na leveza da sonoridade / e do sentido que trazem […]
No seu segundo livro, Ouro e Vinho, essa indagação torna-se momentaneamente implícita. Melhor dizendo: a experiência humana do poeta, nos aspectos mais triviais do dia-a-dia, ainda que metamorfoseados, vem ao seu encontro, e as “palavras-fósforos que nascem involuntárias” materializam-se
[num cão que faz] versos de glorificação dos ossos, [de cauda] nivelando os astros com os cogumelos; [no] Zé Ninguém [que] dobrou com o olhar as lâminas do destino; [numa] batata não cosmética mas inclinada para o ventre da claridade; [numa] Pedra sem passaporte diplomático na curva do caminho.
Com Mostruário de Títulos para Poemas, Adão Contreiras regressa à problemática da palavra poética, cuja especificidade é firmemente reivindicada e assumida, quer na forma proclamatória ("desnudar a poesia é querer que a noite seja iluminada"), quer na consumação discursiva do poema, que, frequentemente, desvia o signo linguístico da sua vinculação referencial para o investir de propriedades materiais próprias do objecto, instituindo aquele espaço de ambivalência e ambiguidade que, desde o simbolismo, tem vindo a caracterizar a linguagem poética. Acontece também a palavra não ceder logo a este processo de coisificação. Ela resiste um momento, conservando a sua natureza primeira, como mediadora da comunicação dialógica, mas traveste-se, mesmo assim, com a roupagem fulgurante da metáfora:
toda a palavra é um cometa"; "não sou poeta, sou um triturador de imagens"; "sou um cavalo branco aos coices com as palavras"; "sou um velejador de palavras.
Igualmente presente neste livro a rejeição de uma arte alienada e alienante, porque excessivamente focada no culto do belo e na exaltação dos valores estéticos. Entrevistado por Pedro Jubilot para o «Jornal do Algarve», o poeta diz que o que o comove é o desvendamento da realidade e não viver o mundo do lado desse estetismo, o que se depreende, por exemplo, de passos como estes:
gritos na alvorada acordam exércitos de sonhos", que, sendo uma "fábula épica", proclama "a supremacia das Mãos / sobre o Destino"; "todo o real é uma inundação dos sentidos"; "nos subúrbios da manteiga cresci rente às ervas // nota: // ter-se-á em conta neste poema / que o poeta jamais se alimentou dos néctares / ou iguarias dos deuses.
Corredores habitados vem, como seria de esperar, na esteira daquilo a que as anteriores publicações nos haviam habituado, todavia, agora, em versão extensa, própria de uma torrencial corrente de consciência. O discurso é aqui um repositório de tropos desconcertantes que não dão trégua ao leitor. As associações, pela sua estranheza e inverosimilhança, lembram a escrita automática e o «cadavre exquis» dos surrealistas. Este discurso – caótico, para o senso comum – é, aqui e ali, aflorado pelo vislumbre de um fio condutor decorrente de referências à «ágora da mercearia [onde] convergiam as gangas da paisagem campestre», ao «Megatério», a vagas cenas de ambiente hospitalar e outras. Excepcionalmente, como acontece a páginas 59, sob o título “Irradiação luminosa”, ocorrem múltiplos informantes temporais alusivos aos tempos de estudos em Lisboa: Avenidas Novas, Bairro de S. Miguel, Campo Pequeno, Avenida de Roma, Casa da Moeda, Arco do Cego, Estefânia, etc. São recordações introduzidas por um parágrafo grávido de belas imagens:
Jaz na distância esse mínimo afecto que evocado de mim para mim, como folha caída sobre lençol de núpcias, abarca o tempo da folhagem alegre; alegria de ontem, olhando o peso dos sulcos de hoje – nestas divagações do acaso soterradas na emergência do devir, chegado, sobre uma nata de auspícios verdejantes – volante dentro da semente, imbricado corpo perdido debaixo do casaquito solene […]
Voltando à “ágora da mercearia”, trata-se de uma referência que remete para recordações de infância; a referência ao “megatério”, por sua vez, insinua a ideia de que a sua produção estará relacionada com um episódio de internamento. O caos discursivo que parece decorrer desta última circunstância pode igualmente ser o resultado do livre curso dado à irrupção do subconsciente. O facto é que neste turbilhão de sintagmas até a recorrente agramaticalidade se conjuga com uma surpreendente cintilação de significados enigmáticos.
Há, assim, em Corredores habitados, um continuum descritivo em que a diegese transparece a custo nos informantes espácio-temporais e nos verbos com eles relacionados. De facto, essa linha narrativa está de tal forma imersa naquele continuum que se revela subalterna, e o leitor desprevenido que ali buscasse uma história facilmente detectável sentir-se-ia frustrado. A contemporânea tendência para a fusão ou para a indiferenciação dos géneros torna despicienda a tentativa de classificação do discurso literário que, neste caso, muito mais do que narrativo, é poético, ou lírico-narrativo, se, ainda assim, fizermos questão de o classificar sem obliterar o seu conteúdo diegético Porém, a preponderância do discurso como fim em si mesmo e não como veículo de tal conteúdo diegético, preponderância que caracteriza o discurso poético, é óbvia em Corredores Habitados. Como reagiria Aragon a este estilo, Aragon que dizia “je n’ai jamais rien demandé à ce que je lis que le vertige”? E Cocteau, para quem “la poésie cesse à l’idée. Toute idée la tue”? Estou em crer que a vertigem de um seria o deslumbramento do outro.
O traço mais significativo do estilo de Adão Contreiras é, pois, a ocorrência de uma infinidade de imagens que empurram o leitor para um lado e para o outro, em constante sobressalto. Graças a um ou outro informante de tempo e espaço (“Naquele dia, nasceu um indivíduo … quando entrei no mundo dos muito vivos …” / “na ágora da mercearia … “ / “enfermaria da sobrevivência”) ou a um afloramento introspectivo mais explícito “ (“estou preso na infinita circunstância de ser eu no lado de dentro, e preso por ser o lado outro por fora desse singularíssimo eu …”), o leitor logra uma ténue e fugaz ancoragem no real, que logo se desvanece com a retoma do discurso poético na sua versão mais radical.
Dessa característica decorre a imprevisibilidade: o leitor é quase sempre surpreendido pelo encaminhamento do sintagma e da frase. Só excepcionalmente uma construção soa a familiar[2], mas os inúmeros desvios que lhe sucedem repõem o leitor na rota do desconhecido.
Discurso eminentemente poético, sinuoso, infractor, desconstrutivo, nos antípodas do denotativo/informativo, Os Corredores habitados é um poema, um longo poema, onde a referencialidade é constantemente subvertida, o que confronta o leitor, tentado a encontrar nexos entre elementos heteróclitos que conflituam no senso comum, com a necessidade de abdicar da tentação racionalista, ascendendo ao patamar da poesia.
Poesia onde a tentação de se procurar uma explicação que satisfaça minimamente certo anseio de transparência é uma preocupação que se estende por vezes à própria música. Lembro-me de, certa vez, no Teatro Lethes, em Faro, o maestro António Vitorino de Almeida ter desmontado o mito de que este ou aquele passo de qualquer grande peça musical “significa” o marulho do mar, o voo dos pássaros ou o que quer que seja. Pedir tal coisa à música é talvez sinal de subjugação ao preceito mimético da arte como imitação da natureza herdado de Aristóteles ou aos preceitos da crítica iluminista do século XVIII, centrada no pressuposto da lógica. Lembremo-nos de Luís António Verney e do seu Verdadeiro Método de Estudar, onde nos dá exemplos que hoje nos fazem rir, como acontece na Carta Sétima, ao apodar de “parvoíce” e “impropriedade” o uso por Camões do adjectivo “longo”, em “longo amor”, do verso final do soneto “Sete anos de pastor Jacob servia”, pois “longo” aponta aí para tempo, quando o seu significado comum se prende com a ideia de grandeza. A crítica positivista, dominada pela racionalidade, ignora a função poética da linguagem ou, pelo menos, restringe-lhe o âmbito, rendendo-se ao culto de um virtuosismo focado na produção do conceito engenhoso subordinado ao critério da verdade: «Um conceito que não é justo, nem fundado sobre a natureza das coisas, não pode ser belo, porque o fundamento de todo o conceito “ingenhoso” é a verdade»[3]. Como já se referiu anteriormente, foi o simbolismo, nos finais do século XIX, a determinar «a revolução do conceito de mensagem poética»[4], uma mensagem avessa a convenções, a «liberdade livre» de Rimbaud[5], a par de uma aproximação à música, como sublinhou Verlaine, que queria «de la musique avant toute chose» e que prescrevia que se torcesse o pescoço à eloquência[6]. É isso mesmo que Adão Contreiras faz, em Os Corredores Habitados: institui a “liberdade livre” rimbaldiana e torce verlainianamente o pescoço à eloquência.
Fevereiro de 2023
--------------------------------------------------------------------
[1]Página Móvel com texto Fixo, de 2013, Ouro e Vinho, de 2014, Mostruário de Títulos para Poemas, de 2016, e Púrpura Voz, de 2017, reeditado, em versão bilingue, com o título Pourpre Voix, pelas Presses Sorbonne Nouvelle, em 2018, com uma excelente introdução de Catherine Dumas.
[2] Caso dos “ovos que a galinha pedrês teima em não pôr” (p. 14). Quando se lê “teima em” suspeita-se, é claro, que se segue “não pôr”, mas, logo a seguir, há “cicatrizes que o vento empurrou sobre os sonhos adocicados”, “zimbórios das amendoeiras”, etc. Excepcional também é a ocorrência de neologismos. A “cozinhança” (intersecção de “cozinha” com “vizinhança”) é um neologismo que Mia Couto podia muito bem ter criado.
[3] Luís António Verney, Verdadeiro Método de Estudar, Carta Sétima, 1746
[4] «/É/ nas teorias do Simbolismo /que/ vamos encontrar o germe de toda a poesia moderna, de toda a literatura moderna mesmo. Aí encontraremos o grande arranque para o Futurismo - com as suas palavras em liberdade, a sua sintaxe insubordinada, a visualidade do texto guindada a forma autónoma, e em geral a revolução do conceito de leitura e portanto de comunicação, ou seja, a revolução do conceito de mensagem poética» Ana Haterly, O espaço crítico - do simbolismo à vanguarda, editorial Caminho, 1979, pp. 26-27).
[5] Carta de Rimbaud (1854-1891) a Georges Izambard, 2/11/1870
[6] Paul Verlaine (1844-1896), “Art poétique”