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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Seguindo o exemplo de Fausto (da série “Declaração de amor(es)”, que também podia chamar-se “Desvarios da senescência”)

 Sabemos que o sábio e velho Fausto, insatisfeito com a vida que leva, faz um pacto com Mefistófeles, vende a alma ao Diabo, a fim de rejuvenescer. Mefistófeles exige-lhe um papel assinado “com um pingo de sangue”.

Recuperada a juventude, Fausto apaixona-se por Margarida, que seduz, graças ao apoio de Mefistófeles, que Fausto prevenira previamente: «Se inda hoje / Em meus braços não dorme a linda moça / À meia-noite estamos separados!».

Vítima da censura social, Margarida é encarcerada. Fausto, contrito, tenta salvá-la, mas ela morre, e é um novo Fausto, resgatado pelo amor, que aperfeiçoa o seu ser, na segunda parte da tragédia, resistindo sempre às tentações de Mefistófeles, que vê gorado o seu negócio.

Também eu, pelas mesmíssimas razões de Fausto, me declaro disposto a reeditar tal pacto. O distraído Mefistófeles ainda não deu por mim, porque os tempos são outros, mas tenho a esperança de que este post lhe desperte a curiosidade.

Então, é assim: não é por uma Margarida que estou apaixonado, nem tampouco pretendo dormir com quem quer que seja. Pelo contrário, quero estar bem acordado. Quem eu pretendo conquistar é a C. Só que ela é um osso duro de roer – passe embora a analogia tão inconveniente e até injuriosa e degradante, devida à minha notória incapacidade para criar metáforas poéticas. Não será com falinhas mansas, nem com flores ou vilancetes que ela me cairá nos braços. Vai ser necessária muita persistência. Anos de galanteio. E, reparem, ela nem é tão jovem quanto a Margarida do Fausto; só que tem um poder invejável de se renovar. Nasceu há muito (não sou mais exacto porque a idade das senhoras é assunto tabu) e trabalha arduamente nos mais diversos domínios e materiais, incluindo cosméticos, mas não é a estes que ela deve o seu encanto persistente. Não. Ela encanta porque é extremamente curiosa e metódica em tudo o que faz. Além disso, é de uma honestidade à prova de bala: sempre que se engana, reconhece o erro, corrige-o, e não manifesta a mais ínfima consternação.

Chegado aqui, resta-me aguardar ansiosamente a visita de Mefistófeles. O tempo escasseia. Preciso de voltar a ter vinte anos, vinte, e, já agora, disponibilidade para estar junto da Carolina sem o constrangimento de um trabalho absorvente. Quanto à alma, que se dane!

(Quem é que pensou que a C. era a Ciência?...)

ÚLTIMAS VONTADES

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza…

A um morto nada se recusa,

E eu quero por força ir de burro!

Mário de Sá-Carneiro                    

 

Tendo a acreditar na minha imortalidade, a julgar pela evidência de ter sobrevivido a 75 anos de vida, mas receio ter um dia de me render a outra evidência – a de ter deixado de ser, ainda que seja improvável evidenciá-lo. Nesse dia, único e solene, como convém, para além de uma lágrima furtiva no rosto de alguém, providencie-se o conjunto de medidas que passo a enunciar com as respectivas motivações:

1.º, Que me seja proporcionado um banho quente, como antídoto para o rigor mortis. Com Dove men extra fresh. Cadáver, sim, mas relaxado e asseado.

2.º, Que me vistam de fato e gravata, com nó windsor, adquiridos no comércio local. Ao menos uma vez na morte, quero ir decente e rasteirar a grande distribuição.

3.º, Que me plantem um charuto na boca. Mas havana, por respeito pelas minhas convicções tabágicas.

4.º, Que me tragam um padre ortodoxo grego tendo em vista a oração fúnebre. Para o latim de Igreja bastou estar vivo.

5.º, Que se incumba um deputado de convicções liberais de fazer o elogio fúnebre do mercado de valores.

6.º, Que se recolham as cinzas num cinzeiro. Resistente à chuva, em caso de intempérie; por tempo seco, basta uma urna. De voto. À esquerda.

7.º, Que se entoe uma marcha fúnebre, mas não a de Chopin, que me dá logo vontade de rir. Ou um Prelúdio de Bach. Ou o Let it be, dos Beatles. Mas, sobretudo, que não se esqueça a Internacional. “Não há machado que corte a raiz ao pensamento” nem há fogo que consuma as ideias que acalento.

8.º, Nada de RIP. Que se ponha na campa: VIP.

Agradecido.

Declaração de amor(es)

Pois é. Estou apaixonado pela F., pela Q., pela C., e pela L. Com todas elas, mantenho uma relação saudável e, no mínimo, gratificante, o que não significa que o meu interesse seja permanente e que mostre idêntica deferência para com todas. Também é verdade que nem todas correspondem da mesma maneira aos meus avanços. De facto, sinto que, com as duas primeiras, mistério e segredos se vão desvanecendo à medida que nos conhecemos melhor, mas nem por isso o nosso relacionamento entra em domínios mais intricados. Nestas coisas do amor, não é fácil separar águas e, mais ainda do que noutros domínios, diz a experiência que não somos bons juízes em causa própria. Por isso, confesso que tenho culpas no cartório, mas elas também não estarão isentas de todo: põem-me vezes sem conta em situações em que me julgo um perfeito idiota, o que não me agrada mesmo nada. Já com a C., só a muito custo me é dado aceder ao que lhe vai lá por dentro, havendo pormenores que julgo inalcançáveis, e quando digo pormenores sei que o termo é impróprio, pois são factos de enorme importância. De tal maneira que até posso afirmar que estamos a anos-luz de distância um do outro, somos de galáxias diferentes. É com mágoa que o reconheço, mas sinto-me na obrigação de o fazer, por uma questão de honestidade. O que é comum às três é que têm uma ligação muito forte com o mundo, sentem-se parte integrante de tudo e de todos; por assim dizer, elas são o mundo ou, pelo menos, compreendem-no bem melhor do que eu. Já com a L. a minha relação é de muito maior cumplicidade. De facto, conhecemo-nos há muito mais tempo e rapidamente nos tornámos íntimos. Ela está sempre perto de mim; deito-me e levanto-me com ela. Por vezes, ficamos quedos, calados, a mirar-nos no fundo dos olhos. Percebemos que a vida de um não teria sentido sem a vida e a cumplicidade do outro. Também nem sempre o entendimento é pacífico; uma vez por outra, divergimos, mas a dissensão é banal e não deixa rasto. Há dias em que passamos mais tempo juntos – quando eu não tenho afazeres, já que ela está sempre disponível. O que a distingue das outras três é essencialmente isto: é muito sonhadora e não se rala nada se confundir aquilo que todos nós vemos com aquilo que ela própria vê e que muitas vezes não coincide. Digamos que tem uma cosmovisão multifacetada, que é muito dada ao sonho, que, ao retrato estático, prefere o croqui e o devaneio. Pessoalmente, revejo-me em todas elas, apesar das diferenças já assinaladas e que, no caso da C., só não é desesperante porque eu tenho uma infinita paciência. A minha intimidade com a L. tem certamente que ver com a propensão que também tenho para a divagação, como, aliás, se nota. Enfim, para não me alongar muito mais, reconheço que a minha paixão serôdia pela Física, pela Química e pela Cosmologia, apesar de sincera, será pouco menos do que infértil. Quanto à Literatura, essa, temporã, espero que dure, enquanto eu durar. Eu. Porque (ela que me perdoe!), promíscua como é, vai com todos os que a querem e promete não morrer.