Foi o Dr. Miguel Arruda ostracizado pelo partido do Dr. Coiso. Motivo: ter, alegadamente, furtado umas quantas malas nos aeroportos de Ponta Delgada e de Lisboa.
O Dr. Coiso, em Washington, imediatamente se desdobra em declarações tonitruantes q.b. para sublinhar a sua condição de Português de bem.
A comunicação e as redes sociais esmeram-se num chorrilho de piadas sobre o Dr. Miguel Arruda, como se ele fosse um qualquer delinquente de direito comum.
Eu mesmo, levado pela vozearia da populaça e sem que ninguém soubesse, planeava parodiar aquela cantiga de outrora, que era assim: «Olha a mala, olha a mala / Olha a malinha de mão, etc.», mas trocando algumas palavras, o que dava uma coisa deste gabarito:
Olha a mala, olha a mala,
mala que nem é de mão,
não é tua nem é minha,
nem daquele grande aldrabão.
De quem será esta mala,
isso é coisa que se apura
pondo a polícia no encalço
do Arruda e do … Coiso.
São apenas dezassete,
menos do que os deputados
que na magna Assembleia
ainda ficam sentados.
Agora, quarenta e nove,
quando eram cinquenta.
Temos de arranjar mais malas,
pois ninguém os aguenta.
Olha a mala, olha a mala,
uma para cada um,
urge mandá-los embora,
que não fique lá nenhum.
O Dr. Arruda, mesmo sem tomar conhecimento dos meus confrangedores versos confessa-se abalado pelas acusações infamantes e descola para o seu arquipélago, na mira de aconselhamento médico e reconforto familiar.
Pronto (ou Prontos!, se quiser). Chegado aqui, quero protestar a minha indignação pelo rigor injusto e cruel a que o Dr. Arruda está a ser sujeito pelas pessoas, em geral, e por mim, em particular.
Acto de contrição:
Não sou militante nem simpatizante (Deus me livre!) da coisa a que o Dr. Arruda pertencia nem perfilho as ideias ou qualquer outra manifestação de actividade gastro-entérico-cerebral dos dirigentes e militantes da referida agremiação (perdão: era “instituição” que eu queria dizer). Isso não me impede de verberar com veemência a injustiça de quem sentencia um humilde representante do povo com o estigma infamante de ladrão.
Como é do conhecimento de todos, a inteligência artificial é hoje um instrumento de descomunal utilidade na criação de imagens e textos que não só mimetizam a realidade como a criam. É, pois, de admitir que o Dr. Arruda tenha sido vítima da IA (em inglês, AI) e que tudo não passe de uma fake (em português, aproximadamente, falsidade). Ademais, estranha-se que roubar malas seja acto digno de tão unânime reprovação e censura, quando milhões de honestos contribuintes e cidadãos, em geral, são despojados das suas magras posses por quem dispõe dos instrumentos legais necessários (dotações orçamentais segundo critérios convenientes, isenções fiscais, operações de capitalização de instituições bancárias colocadas em pré-falência, etc.) para com elas se locupletarem ou as canalizarem para amigos.
Devemos prestar homenagem a este humilde Português de bem, que se contenta com tão pouco e, não obstante, é vilipendiado na praça pública e nos pátios privados.
Acresce um aspecto muito positivo naquilo que o Dr. Arruda fez ou no que se diz, maldosamente, ter ele feito: é que foi uma oportunidade de ouro para o Dr. Coiso mostrar a sua estupefacta indignação para com alguém apodado de corrupto – ele que tanto se esforça por encostar os corruptos à parede.
Uma última alegação a favor do injustiçado: sabe o que é a cleptomania, não sabe? Ora, o Dr. Arruda sofre, provavelmente, dessa tão incomodativa perturbação. Só pode! E, sendo assim e parecendo que é sua intenção consultar um psicólogo ou psiquiatra, é de crer que o tenhamos de volta ao areópago da democracia não tarda.
Como todos sabemos, Fernando Pessoa tinha vários amigos no Facebook. Entre eles, um engenheiro naval, formado na Escócia, com quem o próprio Pessoa se compara, dizendo ser o tal engenheiro naval, “o mais histericamente histérico” de si mesmo, Pessoa[1]. Nunca gostei muito deste amigo do Pessoa, desde que li uma onomatopaica Ode Triunfal que, invariavelmente me fazia lembrar a Marcha sobre Roma, o Marinetti, o D’Annunzio e outras personagens pouco recomendáveis, tudo muito bem acomodado no pacote da sociedade industrial e na exaltação da beleza da guerra[2]. Por força do exercício profissional, tive de o ler, o tal engenheiro naval, mas andei sempre saltitando, escusando-me a lê-lo de fio a pavio. Por essa razão também, nunca lhe pedi amizade, o que, aliás, não serviria de nada, já que ele atingiu os cinco mil amigos e o fb não permite ir além disso. Em contrapartida, sou seguidor de outros amigos do Pessoa, como sejam o Reis e o Caeiro (trato-os assim porque nos damos bem, embora longe de concordarmos em tudo). O Caeiro é o meu preferido. De tal modo que até os meus filhos adormeciam como bem-aventurados (“há metafísica bastante em não pensar em nada”), ouvindo o pai ler-lhes O Guardador de Rebanhos. Bons tempos.
Ora o Pedro Jubilot, que não deve partilhar deste meu preconceito (terá outros, que, nisto de preconceitos, quem nunca os teve que me atire a primeira pedra, parafraseando o defensor oficioso da Maria Madalena), obrigou-me a ler o Álvaro de Campos (é este o nome do tal engenheiro) de uma ponta à outra, o que certamente contará um dia para a remissão dos meus pecados, quando chegar ao primeiro círculo do Inferno, (ou ao sexto, que é o dos heréticos, segundo um predecessor de poetas mórbidos, que viveu em Itália e escreveu uma comédia dita divina, porque é deprimente q.b., séculos antes de il Duce chegar ao poder)[3]. E obrigou-me por que razão? Porque publicou mais um livro de poemas ou de prosa poética (dêem-lhe o nome que quiserem, que eu até o acho inclassificável, mas leiam-no), com o título Veneza de Tédios, e “Veneza de tédios”, diz-nos a Introdução de Marco Mackaaij, é uma expressão usada por Álvaro de Campos no segundo dos dois “Excertos de Odes”[4].
Li ou reli, pois, as Poesias de Álvaro de Campos, para aí encontrar a tal expressão e respectivo contexto e para descortinar a eventual inspiração de Jubilot. Mas tenho de confessar que não a encontrei, a inspiração. Não. O Pedro Jubilot, sobre quem já escrevi[5], é um escritor que alia a sensibilidade culta do poeta ao gosto das formulações próprias do pensador, ao amor pela paisagem e para com as pessoas que a habitam. Não há em Veneza de Tédios aquele frenesim da maquinaria, na Ode Triunfal, nem a exaltação da “maravilhosa beleza das corrupções políticas”, dos “deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos”, dos “progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos”, da
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política criada para eles!»
(Já agora, o resto da estrofe:
Como eu vos amo a todos porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Não sei se este engenheiro leu Nietzsche, mas poderia ter subscrito o que o bigodudo escreveu n’ O Anticristo, para me ficar por uma só citação: «Que é que eu odeio mais entre a escória dos nossos dias? A escória socialista, os apóstolos de Chandala que minam o instinto, o prazer, o contentamento do operário que leva uma vida humilde – que tornam o operário invejoso e lhe ensinam a vingança…»[7]. Nada de mais afastado da atitude de Pedro Jubilot nos seus textos, um hino discreto que, em surdina, combina a paisagem natural com a paisagem humana, não menos natural, pontuando o todo com notas de uma convivialidade própria das gentes do Mediterrâneo ou redondezas, mesmo quando se expande até à californiana Venice.
Enfim, é no livro do Pedro Jubilot que temos de nos focar. Assim sendo, aqui vai:
Em Veneza de Tédios, Parte I, Jubilot vagueia por largos, jardins, igrejas, ruas, praças, miradouros, travessas, pontes, mercados da Veneza algarvia – que é Tavira, por acaso, a terra natal do engenheiro (e cá voltamos nós à vaca fria). Vagueia, interioriza a paisagem, pressente-lhe «uma poesia marítima, húmida e reticente» (p. 9), põe sempre lá alguém que vive ou já viveu («até os mortos dançam no seu vetusto jardim por entre os arcos e as colunas revestidas a hera» (p. 10), lobriga o engenheiro, dactilografando febrilmente num dos quartos da Residencial Secqua (p. 11), vislumbra Fernanda Guerra, na Nova Aurora, «debruçada sobre afazeres de prazeres», vivendo «ao sabor de saberes», naquele «templo abandonado aos que ainda crêem e lêem» (p. 12), enfim, percorre, calcorreia tudo o que pode e, de tudo o que capta pelos sentidos, devolve-nos a imagem fugaz, mas impressiva, associada a reflexões sobre o tempo que «até se esquece de inexistir» (p. 14), e «o relógio de madeira já tão antigo» lembra que «custa recuar na clareza perturbadora do passado e é temeroso tentar vislumbrar muito à frente de agora, no que parece uma pura e degradante incerteza» (p. 16). O tempo faz-se poesia «nem que seja só por aqueles momentos em que dura a passagem das palavras para a mente, e depois soltá-las na ímpia observação dos dias que se insurgem» (23).
Álvaro de Campos (outra vez!) está quase sempre presente, de uma maneira ou de outra, citado textualmente ou lembrado na sua personalidade literariamente forjada, ainda que emocionalmente sentida pelo seu criador. Mas não é o único. Outros poetas (Fernando Cabrita, Eugénio de Andrade, Emiliano da Costa, Yvette Centeno), o actor Vítor Correia, o cineasta César Monteiro, o Mediterrâneo – aqui tão perto – estão presentes nestes curtos textos que não podem ser lidos a eito, mas têm necessariamente de ser delibados (que palavra mais bonita!) – como licor que são.
A Veneza a que me venho referindo é apenas a algarvia, mas o livro de PJ contempla mais duas – a italiana, obviamente, e a californiana Venice, que referi atrás. Se na primeira abundam as referências a artistas, as duas outras recidivam: Albinoni, Byron, Ezra Pound, Stravinsky, Bellini, Max Ernst, e tantos outros e outras, na Veneza primacial – chamemos-lhe assim, que, de facto, é Venezia; Jim Morrison, Bukowski, Lana Del Rey, Ferlinghetti e muitos outros e outras na Venice, LA, Califórnia. Sempre na estreita cumplicidade da paisagem com as gentes que as habitaram ou que nelas se inspiraram ou que por lá passaram, isto porque
no ensejo de percorrer paisagens, ficamos enlevados, perdidos na comoção que é estarmos apaixonados, nesta atmosfera de plantas halófitas, que entre labirínticos esteiros espalham um aroma agridoce
sabemos, quem sabe, mas não queremos ver, aos locais a que estamos ligados emocionalmente não vemos defeitos, como nas pessoas que queremos ter para amar, apenas vemos nelas toda a perfeição que vai para além da beleza (Isola di Sant’Erasmo / Laguna Veneta, p. 51)
Não. Definitivamente. Neste livro, nem as Venezas, nem as ruas, nem os canais, nem o autor dão sinais de tédio. Os leitores, esses, devem, como já se disse, ler estes “postais” ou “telegramas” – como noutras ocasiões Pedro Jubilot intitulou outros dos seus livros – aos tragos, degustando cada um deles, isoladamente, espaçadamente, como um escanção faria com os melhores vinhos. E, no intervalo de cada degustação, perguntar-se-ão:
para que servem os poetas nesta era? qual é o uso da poesia? Quando a resposta imperecível se adivinha: porque o estado do mundo clama que ela o salve (Lincoln Blvd., Venice, p. 74).
[1] Carta a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935
[2] Devo dizer que o meu amigo no Facebook e camarada noutra rede social (não pertencente à Meta) chamado Domingos Lobo me escreveu, em resposta a pedido meu de 14/11/2022, que “Pessoa foi o mais lúcido dos seus companheiros da Orpheu, daí ter percebido a tempo que o salazarismo era um retrocesso civilizacional e um embuste. Ao contrário de Almada, que esteve sempre encostado ao poder fascista, e o serviu, Pessoa teve a coragem de saltar da carruagem e denunciar, até com algum sentido de humor, que o Salazar e apaniguados estavam a construir uma sociedade retrógrada e sinistra.” Aproveito, aliás, a oportunidade para republicar, já a seguir, o excelente texto de Domingos Lobo a propósito dos cem anos da revista Orpheu, publicado no jornal Avante! de 26/03/2015.
[3] Esta minha apreciação, tão radical, não invalida o reconhecimento da genialidade do poeta. Subscrevo as palavras de Domingos Lobo, no artigo que refiro na nota anterior: «Não duvidamos da necessidade de um movimento literário que espelhasse os novos tempos, criador de rupturas com uma literatura vinda da tradição realista do século XIX, ou espelhando ainda restos do romantismo, pouco concernente com os primórdios da revolução industrial – consubstanciada nos escritos de Júlio Dantas, tendo este servido de bombo de feira para as arruaças polémico-revisteiras de Almada Negreiros no seu célebre Manifesto Anti-Dantas. Uma poesia que reflectisse a civilização industrial que se começava a esboçar, da nova era da máquina que na Europa e nos Estados Unidos ia criando estruturas de movimento criador autónomo, a par com o dadaísmo. Álvaro de Campos, um dos heterónimos pessoanos, exprimiria, com a genialidade conhecida, essa nova vertente poética.»
[4] p. 158 da edição da Ática, 1969: “(…) cada rua é um canal de uma Veneza de tédios (…)”
Eu entrevistador: Bom dia e obrigado por ter aceitado receber-me em sua casa.
Eu entrevistado: Ora essa! Isso vai de si, como há-de compreender.
Eu entrevistador (surpreso): Vai de mim?!
Eu entrevistado: Olhe, vai de nós! Temos de ser uns para os outros, mesmo quando a destrinça entre um e outro se torna difícil de enxergar.
Eu entrevistador: Pois, estou a ver, ou a enxergar, já agora, se me permite reduplicar...
Eu entrevistado: Por quem é! Reduplique, sempre que quiser.
Eu entrevistador: Muito agradecido. Enfim, para começar, gostaria de saber de quando data o seu interesse pela escrita.
Eu entrevistado: Que engraçado! Já reparou que começa pelo fim?!
Eu entrevistador (novamente surpreso): Começo pelo fim???
Eu entrevistado: Sim. Acabou de dizer: “enfim, para começar”. Mas não ligue. Sou eu que estou sempre em busca destas bizarrias da comunicação. Passemos à frente. Olhe, a minha estreia nas Letras deu-se, andava eu pelos sete anos, quando escrevi isto, ou mais ou menos isto:
Mãe,
eu gosto de ver a Lua,
porque vejo no brilho dela
a luz do teu bondoso olhar.
Como vê, trata-se de uma estreia nas Letras, com maiúscula, praticamente contemporânea da estreia nas letras do alfabeto e nas contas de somar. Eu estava orgulhoso, muito orgulhoso, não só do domínio da escrita, mas sobretudo do recorte literário da coisa, e corri a mostrá-la a pai e mãe, que me não pouparam elogios e beijos. Pergunto-me se não terá sido esse incentivo que ainda hoje me motiva, para desgosto de quem me lê, se é que alguém faz questão de malbaratar o seu tempo (riso irónico).
Eu entrevistador (algo subserviente): Modéstia sua… E continuou nesse registo lírico?
Eu entrevistado (com entusiasmo): Mais ou menos. Ainda por essa idade, voltei-me para a epistolografia. Numa página de um caderno da escola, redigi uma carta de cujos termos me esqueci. Sei, apenas, que era dirigida à minha irmã. Acontece que, ao verificar um meu qualquer “dever” (antiga designação do TPC) no caderno, a saudosa Dona Sofia, minha professora da 1.ª à 4.ª classe, deu com a carta e, sabendo que eu apenas tinha um irmão, interpelou-me com estranheza: «Mas… tu não tens nenhuma irmã!» A minha resposta simples e inocente, qualquer coisa do género: «Não tenho, Senhora Professora, mas gostava muito de ter, para brincar com ela.» De facto, ela veio a nascer uns meses mais tarde, mas sem habilitações literárias.
Eu entrevistador: Portanto, esse gosto pela criação literária foi-se sedimentando sem interrupções…
Eu entrevistado (irónico): Olhe, entre “sedimentando” e “cimentando”, o meu coração literário palpita. E hesitaita. Agora fora de brincadeiras: o apelo das Letras deve ter sofrido um apagão nos anos seguintes, pois só guardo registo de produção escrita de quando já ia nos quinze, dezasseis anos. Por essas alturas, vertia um fervor poético egotista, provável resultado da leitura de românticos e ultra-românticos, em cartas que enfermavam todas daquele mal a que se refere Fernando Pessoa na versão Álvaro de Campos. Lembro-me de algumas destinatárias: a Guidinha (lembra-se das «Redacções» do Sttau Monteiro?), a Ana, a Helena e a Aida. Ainda terei para aqui uma ou duas sobreviventes (Deus sabe onde!), no meio de outros papéis que o tempo consentiu em poupar.
Para além das cartas, porém, é desses anos que datam alguns poemas que conservo. Alguns, anódinos, revestem a forma clássica do soneto, aprendida no Liceu, reproduzem clichés inspirados provavelmente em poetas e escritores como António Nobre, Guerra Junqueiro, Júlio Dinis, e traem uma visão classista pequeno-burguesa, o que não é de espantar (novo riso irónico):
Terra amada
Quantas vezes relembro a aldeia velhinha
onde estanciava na minha longínqua infância.
Lá, era o fidalgo, e a minha mãe, a rainha,
como se, para o ser, bastasse a nossa ânsia.
E como nos adorava aquela gentinha!
E como comentavam a nossa elegância!
Como choravam quando, depois, à tardinha,
nós lhes deixávamos vazia a estância.
Quantas e quantas vezes relembro, saudoso,
aquela gente, a aldeia e os pinheirais!
E fico depois triste, tão triste, invejoso.
Não porque já não somos pessoas reais,
mas porque eu amo a aldeia e o campo airoso,
sinceramente, como eles, tanto ou mais.
Eu entrevistador: Já revela aí um certo domínio de processos que não são assim tão fáceis de usar. As formas fixas impõem uma disciplina rígida…
Eu entrevistado: Sim, talvez. Mas isto enferma de um formalismo que já não há pachorra... (hesitação).
Eu entrevistador: E essa referência à aldeia onde estanciava…
Eu entrevistado: Lá está! Não só a idade era pouca como os tempos eram outros. Olhe: ainda me lembro de que “aquela gentinha”, como lhe chamo, mais por comiseração do que por sentimento de superioridade, eram os caseiros de um autêntico senhor feudal minhoto e trabalhavam arduamente em courelas (as leiras), para apenas assegurarem a sua sobrevivência. No tempo das colheitas, lá iam entregar ao suserano, que os recebia numa dependência majestática e sentado num imponente trono, a parte dos produtos da terra que lhe era devida como proprietário. Não foi assim há tantos anos que os nossos camponeses saíram da Idade Média. Enfim, isto já é história séria de mais para ser aqui tratada.
Eu entrevistador (cordato): Tem razão. Está a tornar-se chato.
Eu entrevistado: Quem? Eu?
Eu entrevistador: Não. A abordagem dessas questões delicadas em contexto de farsa.
Eu entrevistado (incomodado): Farsa, farsa, não será propriamente o caso. Você usa o vocabulário de que dispõe com alguma displicência, o que não me é particularmente grato.
Eu entrevistador (pesaroso): Peço-lhe desculpa. A intenção nunca foi essa. Falta-me tarimba, sabe? E não é nada fácil entrevistar alguém que, estando tão perto de nós, ora se desvenda sem recato, ora se esconde por detrás de um tapume translúcido.
Eu entrevistado: Olá! O seu estilo melhorou bastante desde o uso daquele plebeísmo de há pouco. Parabéns.
Eu entrevistador: Não sabe como lhe fico grato pela felicitação. Mas voltemos à sua poesia. Tem outros poemas, de diferente cariz?
Eu entrevistado: Claro! Tenho outros mais autênticos, alheios àquela preocupação formal, esteticista, quase academicista, diria eu, a merecer aquele “Pim!” com que o Almada esfaqueia o Dantas, e que não escondem a presença avassaladora da Helena, mocinha franzina, lourinha, bonita e muito aprumada. Eu estava francamente apaixonado, e a puberdade explica o arrebatamento de coisas como estas:
Convite
Ó Lena, e se tu me deixasses
navegar
todas as enseadas
do teu corpo?
E se enfunasses,
com o vento dos teus cabelos fúlvidos,
as velas do meu desejo?
E se fosses minha,
como o sexo
é do amor?
Ó Lena,
todo o vento é a favor.
Geografia concisa
Algumas enseadas
que os meus dedos navegam,
duas colinas erectas
e uma larga baía
doirada.
O resto é o frémito do amor;
mais nada.
E mais este, reincidente na geografia e na navegação (já vê que falhei a vocação de marinheiro…):
Não importa
Não importa que esses teus golfos
se tenham fechado à minha
navegação.
Não importa que o vento
dos teus cabelos
sopre em paragens diversas.
Não importa que os barcos
das tuas palavras
tenham recolhido a estaleiros
inefáveis.
Não sou bom marinheiro,
não tenho portulanos,
mas não importa.
As marés mudam,
os sistemas de altas pressões
e de baixas pressões
deslocam-se,
e eu conheço
a tua situação geográfica.
Eu entrevistador: Estou a ver a testosterona aos saltos!...
Eu entrevistado: Tem razão. O que não obstou ao despontar de uma certa lucidez. Repare nesta espécie de contrição formatada em soneto:
Recordação
Naquele tropel insano, inconsciente,
de sílabas de amor mal murmuradas,
ficaram mais ‘quecidas que lembradas
ternuras ideais que tinha em mente.
Envoltos no amor, canção dolente,
qual rochas, almas grandes naufragadas,
passou por nós o tempo, em grãs passadas,
passou por nós a vida, que não mente.
Mas sendo, enfim, libertos da apatia
que em noite ia tornando o claro dia,
qual tinta preta caindo em neve pura,
Depressa vimos, logo demos conta
que o Sol é grande quando mal desponta,
mantém-se grande em qualquer altura.
Eu entrevistador: Sim, senhor. Julgo ver aqui um equilíbrio que diria clássico.
Eu entrevistado: É capaz de ter razão. Faz lembrar um pouco o Sá de Miranda, descontando o atrevimento da comparação, não acha?
Eu entrevistador: Exactamente. Aquele soneto “O sol é grande, caem co’a calma as aves”…
Eu entrevistado: Confirmo. Vejo que temos referências semelhantes…
Eu entrevistador: Lisonjeia-me que diga isso, ainda que vá de si... como já vimos. E continuou nessa toada genericamente sentimental durante muito tempo?
Eu entrevistado: Felizmente, não. Pouco depois, as preocupações político-sociais irrompem, como resultado do convívio com jovens ligados à resistência antifascista. Escrevi, então, coisas como estas:
Carta
(para o Artur Monteiro, preso pela PIDE)
Amigo,
daqui,
deste negro e húmido
cárcere sem grades,
te envio a luz
de dez milhões de vozes.
E, porque nem sempre
amanhece de noite,
talvez amanhã
o algoz já não te açoite.
Eu entrevistador: Ai! essa rima de “noite” com “açoite”! Se bem me lembro é uma das que o Eugénio de Castro fulmina no Oaristos.
Eu entrevistado: É, sim senhor: “sol” com “rouxinol”, “caminhos” com “ninhos”, etc. Mas não deixa de ser uma bela rima. Não acha?
Eu entrevistador: Com certeza. E rica! – substantivo com verbo… ainda que “açoite” também possa ser substantivo.
Eu entrevistado: Estou a ver que a gramática não lhe é estranha…
Eu entrevistador: Oh! Ainda me lembro de umas coisitas…
Eu entrevistado: Já agora, oiça lá mais isto, que é da mesma altura:
Data
Chorei.
E, muitos meses depois,
continuei a chorar
de alegria.
Uma bandeira
cor de paixão
foi hasteada
nesse dia.
Eu entrevistador: Lá está: “alegria” com “dia”; outra rima pobre…
Eu entrevistado: Sim, tem razão, mas repare naquela “bandeira cor de paixão”. Há ali uma contiguidade osmótica, sinestésica, entre o domínio das sensações visuais, o dos sentimentos e ainda o da política, que redime o poema da pobreza rimática.
Eu entrevistador: Sem dúvida. A minha observação vinha apenas na sequência do que estávamos a dizer a propósito do Oaristos… E para além destes poemetos em registo mais ou menos enigmático?
Eu entrevistado: Para além destes poemetos, um ou outro afasta-se da linguagem cifrada e envereda pela narrativa de experiências reais ou imaginárias, irrelevantes, mas desencadeadoras de associações humorísticas. Quer ouvir?
Eu entrevistador (entusiasmado): Claro que sim!
Eu entrevistado: Então, aqui vai:
O simples
Conheço-o, e é triste conhecê-lo,
porque ele é como uma manhã sem sol.
Se nos conta as mágoas, coitado, é vê-lo
desfiando-as, como num novelo,
enunciando-as, como a ler um rol.
Quando eu entro no café, de manhã,
mal me vê e lá vem ele ter comigo:
«Bom dia, Sr. Poeta, como está?»
Respondo, converso como me dá,
e, intimamente, amo-o como a um amigo.
Pede-me pra lhe ver o totobola,
às vezes. (Não sabe ler nem escrever).
E, enquanto o fumo do café se evola,
eu lá lhe vou corrigindo a bola,
pois, como ele, preciso de espairecer.
Mas, se são grandes as preocupações,
esquece tudo e fala-me só delas.
Abre-se-lhe o coração e, em turbilhões,
brotam-lhe mágoas, pragas, emoções:
«Ah! Minhas grandes ladras, putas, cadelas.»
Ah! Engraxador, ah! Meu bom amigo,
tu também és, como eu, revoltado.
Dá-me a tua mão, vem junto comigo,
e ambos, à procura de um abrigo,
sonhemos, que todo o sonho é alado.
Agora, o humor:
Um dia, roubei uma flor
no jardim de Carlos Alberto.
Corri a todo o vapor
para casa,
que não era longe,
mas perto.
Chegado a casa, guardei-a
numa caixa de madeira,
mas só lá cabia meia,
não cabia lá inteira.
E é daí que resulta
aquilo em que eu matuto:
não sou completamente poeta
e só sou meio maluco.
Eu entrevistador: É giro. Faz um pouco eco de certos poemas modernistas… Mudando de assunto: eu sei que sofre de uma tendência irrefreável para a iconoclastia, coisa que nem sempre é bem recebida pelo público.
Eu entrevistado: Tem toda a razão. Isso foi um pouco mais tarde, quando já emigrado em França. Um ateísmo pertinaz levou-me a criar blasfémias deste jaez, onde suspeito subjazerem influências de Brassens, de Ferré e de Ferrat:
Dieu fait l’amour
C’est curieux que je me perds
dans l’océan des désirs,
moi, qui ne connais point les mers
et qui ne fais que dormir!
Pourtant, c’est vrai, je te le dis:
toute la journée je ne pense qu’à toi.
Quoi que je fasse (rien faire compris),
ta pensée me revient sans cesse, cent fois.
Mais le pire, encore, c’est que je t’aime
d’un amour impur et disgracieux.
Figure-toi : je t’imagine à Jérusalem,
toute nue devant le Patriarche des Cieux.
Et puis, sous la pluie de la colère divine,
qui va s’apaisant devant tes grâces,
je m’imagine chantant une hymne
à tes longues cuisses lasses.
Le dernier comble du scandale,
c’est quand moi, fou de ton désir,
me couche sur ton corps, glorieux mâle,
et te fais doucement évanouir.
Alors Dieu, magnifique dans sa bonté,
fait venir Marie-Madeleine et le Christ.
«Voyez, mes enfants – qu’il leur dit, mouchant son nez –
ce que c’est que les rouges, les communistes.»
Il faut dire qu’il était assez ironique
que ses yeux étincelaient, sa bouche écumait.
Et le dimanche suivant dans le céleste pique-nique,
Marie-Madeleine était moins vierge que jamais.
Eu entrevistador: E depois do seu regresso a Portugal?
Eu entrevistado: Ah! Aí, as coisas complicaram-se. Os anos de exercício profissional raramente me permitiram o exercício desta exaltante actividade artística, a que só esporadicamente dei asas. Já aposentado, sim, voltei a escrever. Arredado, definitivamente, o lirismo versificatório, dediquei-me a produzir umas prosas que me encheram daquele mesmo orgulho que senti aos sete anos, no tal poema da Lua e do “bondoso olhar”. Nós temos quase sempre tendência para acreditar que somos interessantes e que temos algo a dizer aos outros. Sabe como é: nunca se é bom juiz em causa própria. O facto é que eu percebi, mesmo sem mo dizerem, que os meus raros leitores acharam tudo aquilo sensaborão e bom para acender a lareira. Dediquei-me, então, a criticar os escritos de quem tem mesmo talento.
Eu entrevistador: Que pessimismo! E que tal correu a experiência de crítico literário?
Eu entrevistado: Olhe, foi muito positiva, no plano do conhecimento das pessoas. Que é que eu quero dizer com isto? Percebi que, regra geral, os escritores esperam que a crítica lhes seja favorável, porque se consideram sempre dignos dos maiores elogios. Quando se assinala algum aspecto menos positivo do que escrevem, ficam zangados. Parecem não compreender que a visão do crítico é uma visão pessoal e que será naturalmente marcada pelos conceitos, pelos preconceitos e pelo gosto do crítico, não necessariamente coincidentes com os de outro crítico ou escritor. Por isso, desisti da carreira. Mas tenho pena, porque, se tivesse insistido – quem sabe! – talvez pudesse aspirar a um túmulo na Igreja de Santa Engrácia, … graças ao mérito literário e ao serviço prestado à nação …
Eu entrevistador (lamentoso): Ah bom! Assustou-me! Receei que fosse na sequência de homicídio cometido sobre si por algum escritor descontente.
Eu entrevistado: Não. Nenhum deles chegou ao ponto da ameaça de morte. O que é curioso é que algumas das minhas maiores vítimas, caso do Gonçalo M. Tavares e do António Lobo Antunes, por exemplo, não tugiram nem mugiram. Dei-lhes forte e feio (sobretudo, ao primeiro) e eles fecharam-se em copas. Já outros, muito menos conhecidos, foram aos arames, como se costuma dizer. Enfim… águas passadas.
Eu entrevistador: Já que falou de passamento: é uma ideia que o atormenta, preocupa, incomoda, sei lá …
Eu entrevistado: Bom, a ideia de que tudo continuará para lá de nós não deixa de ser desagradável. É a derradeira desfeita que a vida nos faz. Afinal, não somos tão importantes quanto sempre nos pareceu sermos, mesmo os que menos podemos aspirar a essa classificação. De resto, estamos sempre a ouvir coisas do género “todos somos únicos e insubstituíveis para alguém”, “se não existisses seria preciso inventar-te” (como diria o Dostoievski, mas a propósito de outra pessoa …). Enfim…
Eu entrevistador: Pois. E quanto à sua própria criação?
Eu entrevistado: Bela associação que acaba de fazer: depois do passamento, a criação; é o mundo às avessas …. Ora, como já lhe disse, entrei em poisio. Pode ser que o torrão recupere alguma fertilidade…
Eu entrevistador: Não me diga! Fez mal! Ao que consta, o seu último livro foi um êxito de vendas…
Eu entrevistado: Tem toda a razão! Olhe: só eu, num só dia, comprei cinquenta exemplares. Já está a ver…
Eu entrevistador: E teve feed-back?
Eu entrevistado: Eu gostei. Gostei até bastante. Dos amigos a quem ofereci o livro, houve um ou dois que o acharam interessante, mas não se lembravam do título nem de nenhum texto em particular. Dos outros, não voltei a ter notícia.
Eu entrevistador: Disse “interessante”, não foi?
Eu entrevistado: Sim: “interessante”.
Eu entrevistador: Não deixa de ser elogioso!...
Eu entrevistado: Claro. Para voltarmos à sua estimada gramática, é um adjectivo com uma carga semântica aparentada com a de interjeições como “ai!”, “ui!”, “safa!”, indício do pavor do examinando que não sabe responder.
Eu entrevistador: Que exagero! Olhe, acredite que já li todos os seus livros e gostei de todos. Por mim, dava-lhe mesmo o Nóbel.
Eu entrevistado: Não é Nóbel, é Nobel. O Senhor diz “pápel” ou “papel”? Diz “ánel” ou “anel”? Diz “cínzel” ou “cinzel”?
Eu entrevistador: Já percebi. Muito obrigado pelas suas correcções e pela sua amável disponibilidade em falar de si.
Eu entrevistado: Não tem de quê. É sempre com imenso gosto que falo de mim comigo. Dá-me a sensação de que existo (cenho franzido).
Eu entrevistador (subserviente): A sério?! Engraçado: acontece-me sentir o mesmo. Somos tão parecidos, se me não leva a mal…. Obrigado! Obrigado!
Eu entrevistado: Não tem de quê. (À parte): Olha qu’esta! Pró qu’havia de me dar!