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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A Crise do Capitalismo, de António Avelãs Nunes, editora Página a Página

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A economia política é daqueles domínios do conhecimento que deveriam estar acessíveis ao maior número, tal é a sua importância para se compreender o mundo em que vivemos. Muito do que nos é dado ler nesta obra de Avelãs Nunes não é propriamente desconhecido dos cidadãos atentos aos fenómenos que condicionam o seu dia-a-dia, e o autor faz deles um enquadramento tão rigoroso e, simultaneamente, tão acessível que até os mais iletrados, no domínio económico, ou mais desinteressados (ainda que uns e outros sejam seriamente afectados pelas opções que os decisores políticos fazem em seu nome), até esses compreendem facilmente os laços que se entretecem entre visões do mundo, interesses de discutível legitimidade e condições materiais de existência dos povos.

Incapaz de fazer uma síntese capaz das duzentas e setenta páginas do livro, cinjo-me aqui a um breve apontamento, que oscila entre o resumo e a transcrição literal e que não vai além dos primeiros anos 90 do século passado.

Nas páginas iniciais do primeiro dos quatro capítulos do livro, «Do ‘capitalismo sem crises’ às crises do capitalismo», Avelãs Nunes mostra como o keynesianismo foi, nos trinta anos subsequentes à II Guerra, um poderoso activo do sistema capitalista na tarefa de “provar” a sua capacidade para ultrapassar as crises e a dispensabilidade do socialismo, uma vez que o capitalismo já incorporara muito do que o socialismo defendia. Porém, tal pretensão cai por terra nos anos 70, quando Nixon abandona o compromisso de Brenton Woods relativo à conversão do dólar em ouro e «as taxas de câmbio passam a ser fixadas pelos ‘mercados’». o que vai levar à financeirização da economia capitalista, com o desenvolvimento da especulação como modo de actuação do capital financeiro, sabedor de que pode ganhar autonomamente dinheiro. O capitalismo torna-se assim capitalismo de casino, desligado da economia real. Segue-se-lhe um período de estagflação (inflação elevada associada a desemprego e estagnação económica), que deixa os keynesianos sem saber que fazer e dá oportunidade a Hayek e demais apologistas do neoliberalismo de imporem os seus dogmas e a ideologia do pensamento único, ao mesmo tempo que se afirma a tendência para a baixa da taxa de lucro («causa primeira das crises do capitalismo»). O capital financeiro lidera, a partir de 1979-1980, a “revolução conservadora” encabeçada por Thatcher e Reagan: financeirização da economia capitalista, com o desenvolvimento da especulação como modo de actuação do capital financeiro, sabedor de que pode ganhar autonomamente dinheiro.

A estratégia para contrariar a tendência para a baixa da taxa de lucro atrás referida é desenhada, na passagem dos anos 80 para os anos 90, através do Consenso de Washington,

«plano americano (um verdadeiro diktat) para impor ao mundo o catecismo monetarista e neoliberal, plasmado nestes ‘mandamentos’ fundamentais: a liberdade plena de circulação de capitais; a desregulação dos mercados de capitais, incluindo o mercado de divisas; o combate prioritário à inflação e a desvalorização das políticas de promoção do emprego; o esvaziamento da contratação colectiva; a flexibilização do mercado de trabalho e a contenção ou redução dos salários reais; a privatização das empresas públicas, incluindo as que produzem e fornecem serviços públicos; a adopção de políticas tributárias favoráveis aos muito ricos e às grandes empresas; a rejeição de qualquer ideia de equidade e de quaisquer políticas de redistribuição do rendimento.»

Este ataque aos direitos dos trabalhadores vem associado à mundialização do mercado de trabalho, com a emergência de um “exército de reserva de mão-de-obra” barata e a consequente deslocalização de empresas.

Nos anos 80, partidos e governos socialistas e social-democratas, particularmente europeus, alinham-se com as teses neoliberais e perfilham o dogma de que não há alternativa: there is no alternative (TINA). Está aberto o caminho que levará à criação do Acto Único Europeu, da União Europeia, da moeda única, etc., e reina o ‘deus-mercado’.

A liberdade absoluta da circulação de capitais à escala mundial consagra a supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo, e o Estado capitalista afirma-se hoje como ditadura do primeiro, sendo que a globalização neoliberal é essencialmente um projecto político promovido pelos donos do mundo acolitados pelos meios de difusão da ideologia dominante que consagraram «o totalitarismo do pensamento único».

Mas o consenso de Washington veio também consagrar a especulação como a atividade-rainha do grande capital financeiro, desviando para os jogos de casino uma boa parte da riqueza gerada nas atividades produtivas. Esta a origem e a essência da economia de casino, divorciada da economia real e da vida das pessoas comuns. O montante das transações financeiras internacionais é dezenas de vezes superior ao valor do comércio mundial. Milhões e milhões de dólares circulam diariamente no mercado cambial único em busca do lucro fácil e imediato.

Os chamados produtos financeiros derivados foram criados como instrumentos de gestão dos riscos inerentes à instabilidade das taxas de juro e das taxas de câmbio e transformaram-se em instrumentos destinados apenas a alimentar as apostas na bolsa (o grande casino do capital financeiro), dada a pequena percentagem do capital investido em relação aos ganhos possíveis. E revelaram-se um novo e poderoso factor de instabilidade dos mercados financeiros. Trata-se de produtos virtuais, mal conhecidos, que não têm qualquer relação com a economia real e com as atividades produtivas criadoras de riqueza. É capital puramente fictício, cujo valor é fixado em função dos ganhos que os apostadores prevêem que podem obter, chamando a si uma parte significativa da riqueza criada pela economia real. A financeirização da economia capitalista, com o desenvolvimento da especulação como modo de actuação do capital financeiro, sabedor de que pode ganhar autonomamente dinheiro, faz do capitalismo um capitalismo de casino, desligado da economia real.

AINDA AS PALAVRAS

Engana-se quem pensa que seres vivos são apenas os animais e as plantas. Não. As palavras, também. Mas seres vivos de uma particular espécie. São estritamente dependentes de nós e, em certa medida, de outros animais. Vivem connosco, não numa relação de parasitismo, mas em simbiose – regra geral, para nosso benefício. Acontece que, às vezes, pregam-nos partidas. É que, assim como eu sou eu mais a minha circunstância (Ortega y Gasset), a palavra é ela mais a sua. E a sua circunstância é coisa que está sempre a mudar, porque, neste caso, ela é o contexto linguístico, relacional, interpessoal.

Sem o sapiens, as palavras nunca teriam chegado a existir. Darwin não as contemplou na sua árvore da vida e da evolução, mas, se mais tivesse vivido, talvez lá tivesse chegado. Estou a brincar. Colegas de outras áreas já se tinham debruçado sobre a questão, de modo mais sério do que o meu. O facto é que, como os outros organismos vivos, todas elas começaram por ser unicelulares, ou monossilábicas, ou simples urros (uh!).  Foram-se complexificando – como todos os animais e plantas que provêm de um tronco, ou de vários – e deram origem às diferentes línguas. Cada língua é um ramo (ou espécie) de um tronco (ou género) comum.

Elas dispõem de um poder que, no fundo, as torna nossas semelhantes.

Vejamos:

Eu digo ou escrevo: «Passe bem!», duas palavras (verbo e advérbio) aparentemente inócuas, iguais, à primeira vista ou audição, para qualquer um de nós. E, no entanto, eis que, para A, elas se comportam como uma simpática marca de afecto, enquanto B as recebe com o desagradável sabor do sarcasmo. As mesmas duas palavras. Nada as diferencia, na sua composição fonética ou gráfica, mas elas gozam dessa particular capacidade que têm os seres vivos de se comportarem de diferentes modos em diferentes circunstâncias. São vivas.

– Balelas! – oiço gracejar o linguista, o gramático e o cidadão sem formação nestas áreas – estamos, novamente, perante um caso de percepções, como acontece com a violência ligada à imigração com i.

– Vejamos!, repito eu. Não raras vezes, acontece-nos emitir uma correcção do que anteriormente disséramos, por receio de termos sido excessivos ou menos corteses ou irónicos… em demasia. Essa autocorrecção pareceu-nos necessária, não por duvidarmos da cognição ou da perspicácia do nosso interlocutor, mas apenas porque, subjectivamente, a entendemos como marca de deferência para com ele, reconhecimento de que nem sempre somos capazes de nos exprimir da melhor maneira. Ela é, todavia, sentida pelo interlocutor como significativa da sua incapacidade para descodificar cabalmente a minha mensagem. Sentindo-se ofendido, ele reage, dizendo, por exemplo «Eu percebi, eu também sou capaz de entender isso!». O advérbio “também” é tremendamente significativo, porque exprime a reivindicação de um estatuto de igualdade entre os dois interlocutores: «Achas-te mais esperto do que eu?!» Ora aí está! O “também” que, noutra circunstância, teria um comportamento neutro («– Ele foi ao cinema e eu também»), ganha aqui uma carga de agressividade inesperada e surpreende o receptor, que opta, eventualmente, por não acusar essa agressividade sentida, numa espécie de exercício de autopunição, para não piorar as coisas.

No fundo, estou apenas a baralhar e voltar a dar. São tantos os que, de modo poético, se pronunciaram sobre esta vida das palavras. No meu texto de 2018 “As palavras”, que reproduzo a seguir, cito alguns, que lhes chamam “seixos”, “cristais”, “punhais”, “incêndios”, “cometas”, lhes atribuem um dorso e alegam até, despudoradamente, deitar-se com elas. Se isso não é vida, digam-me lá o que é.

***

AS PALAVRAS

Chegam-nos palavras que logo se desvanecem. Como corpos frágeis, não resistem ao impacto; desintegram-se no alvo. Outras percutem-nos com força e ressoam – palavras-diapasão. "As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem", diz Ruy Belo. E não agem sós as palavras. Organizam-se em bandos – por vezes, gangues, quando enveredam por sintaxes criminosas. Outras vezes, insurgem-se contra regras que as não deixam dar asas à sua busca de infinito. E são sensíveis, as palavras. Se as acolhes de braços abertos e lhes mostras regozijo, à chegada, elas entregam-se-te num esplendor de significados. Ficam tristes, macambúzias e interditas, se à recepção falta calor. "São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio", diz Eugénio de Andrade – que elas brilham, sabemos, mas às vezes ferem e matam. São como tijolos também, as palavras. Com elas edificamos as casas onde moram nossos sonhos. Umas, janelas, levam-nos o olhar demasiado preso ao aqui para paisagens de ali. São sóis e são mares. Cometas, diz o Adão Contreiras. São cascatas de sílabas que se despenham em horizontes de azul. São muros, algumas. Muralhas. Espreitam-nos pelas ameias. Cavalos fogosos, tomam o freio nos dentes e levam-nos à desfilada por temporais de granizo. Fazem-nos esperas, se as desfeiteamos, e não toleram a indiferença. Algumas, comedidas, dissimulam-se na timidez dum gesto; outras, insinuantes, fitam-nos com arrojo. São curiosas como crianças vorazes. Levemo-las, pois, a ver as coisas que elas dizem. E andemos sempre com elas. "Com elas eu me deito, me levanto", diz o Egito Gonçalves. Palavras leva-as o vento, diz toda a gente. Convém, por isso, resguardá-las. E não só no tempo frio, que são outros os frios que as flagelam.

Com palavras eu me digo, eu te digo. Com palavras me chego a ti. A ti e a ti. E muitas ficam por dizer.