Já tenho os aposentos prontos para vos receber. São três quartos, dois deles com cama de casal, o outro, duas camas de solteiro, os três com vista para a Bolsa de Valores. Podeis vir todos – tu, o teu companheiro Neli e os vossos parceiros público-privados. Vinde todos, mas, por favor, mantende-vos calmos. Nada de excessos. A castidade é de bom-tom e, para mais, já sois em número suficiente para encher uma casa de hóspedes. Se não conseguirdes manter uma distância de segurança uns dos outros, muni-vos daqueles dispositivos de cauchu que, bem usados, contribuem para um crescimento demográfico consentâneo com as capacidades do planeta e deitam por terra a tese do Malthus sobre progressões aritméticas, geométricas e o diabo a quatro. Em alternativa, elas que tomem qualquer coisa ou eles que se engenhem na difícil arte do interruptus (coïtus, obviamente). Podeis seguir venerando as leis do mercado, mercadejando a oferta e a procura, consoante a estação do ano. Privatizai tudo quanto possa dar ou vir a dar lucro, após o devido período de criteriosa gestão, levada a cabo por gestores públicos mais vocacionados para o privado. Afinfai tarifas exorbitantes a quem lucrar com a vossa bondade por meio do dumping ou do livre curso dado à circulação de capitais, mas fechai bem as torneiras da casa de banho, que foram anos e anos de seca. Abri os cordões à bolsa apenas quando em presença de gestores privados, accionistas e detentores de obrigações do Tesouro. E livrai-nos do comunismo. Amém.
(Deli é o petit nom da Democracia Liberal e Neli, do Neoliberalismo, como já toda a gente percebeu.)
Sempre a surpreender, o Francisco mostra, desta vez, e mais uma vez, que não é um qualquer Papa. Não só revela uma profunda humildade e compreensão do que é a condição humana e de tudo o que pode levá-la a ser melhor ou pior do que da humanidade se pode esperar, como até – se esmiuçarmos esta sua expressão de um sentimento de comunhão com o semelhante –, subtilmente, insinua o questionamento da natureza do seu Deus: que misericórdia é a Tua, que abençoas alguns com uma condição veneranda e condenas tantos à indignidade e à baixeza?
Ateu relapso que sou, felicito-te, Francisco, por seres quem és. Tu não me converterás, eu não te persuadirei, o que não obsta a que nos respeitemos e tratemos por tu. Eu, porque trato assim os amigos; tu, porque nos consideras a ambos filhos de Deus, logo, irmãos. E os amigos são irmãos que escolhemos.
Questionar a natureza do teu Deus pode ser considerado uma heresia pelos teus acólitos ou até por meros crentes, que são, às vezes, mais papistas do que tu. Por isso, cuida de ti e não deixes que os médicos do Vaticano te tratem da saúde. Não vá o Diabo tecê-las.
Já fiz de tudo para me safar deste mote e, sobretudo, da respectiva glosa: desde lavar lençóis guardados há anos e a cheirarem a mofo, não vá aparecer por aqui alguém, na época alta, a carecer de conforto para os sonhos das curtas noites de Verão, até limpar
o pó que, incansavelmente, teima em deixar provas da sua passagem sobre tudo quanto é móvel e bibelot, fora o resto. Acabei agora de estender a primeira máquina de lençóis, e a procura de molas no cesto em que renovam a força de trabalho despendida em anteriores jornadas revelou-se mais inspiradora do que o apagamento das impressões digitais poeirentas, pelo que corri rapidamente para aqui, na esperança de não extraviar as dicas ninfáticas (das ninfas) pelo caminho. Só que, no entretanto, a minha amiga Marie-Claude Devin Correia envia-me um texto do Bernard Pivot sobre a idade. Clarividente, ele disserta, em meia-dúzia de linhas, sobre o que é ter cinquenta, sessenta e, depois, setenta. O salto é qualitativo. Já não são só mais dez ou vinte; é a percepção (! …) de que os outros já olham para nós com aquela condescendência devida a quem corre sério risco de vida (digo vida para evitar o antónimo, como já percebestes, e aproveito para chamar a V/atenção para este meu uso da segunda pessoa do plural, objecto frequente de erros lamentáveis, sendo que até este humilde escriba também já passou por essa terrível provação, numa apresentação pública, ao lado do nosso Nobel da Literatura! (Fica aqui o registo, para memória futura, mas devo acrescentar que não me orgulho de nada disso, como não me orgulho de coisíssima nenhuma, ficai já a saber). Só para arrumar o assunto: é giro como nós usamos o eufemismo “idade” para nos referirmos aos velhos (sim: velhos e não aquele horripilante substantivo e adjectivo “idoso”, quando até o recém-nascido tem já uns segundos de idade, e ainda ignora o que é isso do orgulho). Tem razão o Bernard Pivot: « Vieillir, c’est chiant […] Sans m’en rendre compte, j’étais entré dans l’apartheid de l’âge».
Metódico e cauteloso, lá me embrenhei em neuronal prospecção, por não querer enveredar por caminhos sinuosos e desembocar num Sahara de dificuldades sob sol escaldante. Para não destoar dos habituais, constantes e irritantes parêntesis próprios da divagação, como bem lhes chamou o Mário Jorge Martins (outro primo), reparem que escrevi “sob”, e não “sobre” facto de que não me orgulho nem um bocadinho, muito embora veja e ouça muita gente com responsabilidade, na comunicação, a confundir orgulhosamente o “sob” com o “sobre”. Não me espantaria ouvir um jornalista da TQT (na verve do Alfredo Barroso) a relatar o sofrimento atroz de um migrante subsahariano sobre um sol escaldante. O profissional teria razão se o pobre homem estivesse mesmo em cima da nossa estrela condenada à extinção daqui a não sei quantos milhares de milhões de anos – caso em que teria (eu) de escrever Sol, com maiúscula. Só que tal hipótese não resiste ao crivo do mais elementar bom senso, como diz quem fala e escreve bem. Este nosso Sol está a 150 milhões de quilómetros de nós, e os migrantes costumam ficar por outros países de acolhimento, mais próximos, menos quentes e muito dados à proclamação (universal) dos direitos de (uns quantos) homens e mulheres, justamente orgulhosos de terem posto em pé uma civilização superior a todas as outras que já viram a luz do tal Sol.
(A continuar com estes desenvolvimentos, vão-se preparando para um roman-fleuve. Quatrocentos posts, no mínimo, para mostrar ao Gabriel que lhe posso fazer concorrência, trocando Solidão, Amor e Morte por Maçada (com ç): Cem Anos de Maçada, A Maçada nos Tempos de Cólera, e o mais sucinto Crónica de uma Maçada Anunciada. Pronto; já chega, que a vossa paciência para com tanta erudição e picardia há-de ter limites e não vos quero desperdiçar).
Vamos ao tema: Orgulho? De quê?
Muito sinceramente, não sei, mas julgo saber que há muita, muita gente a sentir-se orgulhosa de alguma coisa ou de alguém, a começar por si mesmo. Eu cá, não.
Desmancha-prazeres, não sei o que é o orgulho; melhor, entendo que o orgulho é sempre preconceito, como no conhecido romance daquela britânica. É que, quando nos orgulhamos do que fazemos, do que temos ou do que somos, forçosamente experimentamos um sentimento de diferença para melhor em relação a quem nos rodeia, nos ouve ou nos lê. É um sentimento inexpresso, mas não deixa de fazer sentir o sujeito que o experimenta de algum modo superior ao vizinho. Talvez o sujeito seja bom naquilo que faz, caso para se dizer que é um sujeito com predicados. Por exemplo: é um virtuoso, ou virtuose, do violino. Ok. Se eu o fosse, eu que sou nulo em artes, como em tantos outros domínios (isto é só para vos dar a oportunidade de exclamar “eh pá! Olha que tu até escreves com alguma piada!”, o que deveria deixar- me orgulhoso. Lamento. Agradeço, mas só fico satisfeito e grato). Retomando a frase começada lá para trás: se eu fosse um virtuoso do violino, sentir-me-ia feliz com essa capacidade e destreza, mas – vamos lá ver! – já se viu algum assistente operacional de limpeza das ruas (na novilíngua da democracia liberal) orgulhoso por despejar as nossas ruas do lixo que lá depositamos diariamente? Acho que não. Talvez nem muito satisfeito com o salário e condições de vida. E, no entanto, eles / elas são virtuosos da arte sanitária. Nem o violinista nem eu os dispensamos.
Do mesmo modo, sentir orgulho pela acção civilizadora do Portugal das chamadas descobertas? Mas em que consistiu exactamente essa acção? Irmos por mares nunca de antes navegados dilatar a fé, o império, a escravatura? Exportar os ignotos povos indescobertos para outros continentes, em porões apinhados? Sacar-lhes as riquezas naturais? Chamar-lhes primitivos e bárbaros quando, em alguns casos, comiam com pauzinhos, enquanto nós comíamos civilizadamente com as mãos? Conceder-lhes os benefícios do colonialismo? Pôr-lhes um pau em forma de sinal de adição entre as mãos calejadas e ensinar-lhes a repetir obsessivo-compulsivamente uma espécie de xácara morna, triste e enfadonha?
Patriotismo, amor à Pátria, orgulho de ser português (para o caso, qualquer outro etnónimo serve). Mas que é a Pátria? Lugar de exílio, onde a invenção do amor pode ser um risco e onde o vento cala a desgraça numa praça da canção fechada ao trânsito?
Conheceis aquela frase atribuída a Chris Marker, a Breton, a Robbe-Grillet e que diz assim: “A pornografia é o erotismo dos outros”? Mais tarde, há uns anos, o António Guerreiro, crítico literário do Expresso / Ípsilon, adaptou-a: “O nacionalismo é o patriotismo dos outros”, e o Jaime Nogueira Pinto, no Radicais Livres da Antena 1, ao Sábado, debatendo com o Pedro Tadeu, dizia: “O populismo é a popularidade dos outros”. Invertendo a simetria destas frases, diria eu: “O rebaixamento dos outros, a altivez, a arrogância – é o nosso orgulho”. O que é válido para o orgulho supremacista branco, caucasiano, é-o também para o etnocentrismo cristão ocidental e iluminista, que teve méritos indiscutíveis, mas ficou embevecido a tal ponto que ainda lhe custa perceber as realidades alheias, as idiossincrasias de cada comunidade, a urgência do respeito pela caminhada única e pelo tempo único de cada um. Ademais, não se enxerga ao espelho da sua casa de banho, logo, não vislumbra as suas contradições. E elas só admitem um qualificativo: inqualificáveis.
Exceptuo as manifestações estapafúrdias do orgulho gay. Admito que possam contribuir para a aceitação de uma realidade que vem da horda primitiva (poderia recuar ainda mais) e para o reconhecimento da liberdade de cada um fazer o que lhe dá na real gana com aquilo que é seu e do ou da parceira, desde que este ou esta,maior de idade, vacinado eventualmente munido de preservativo, esteja na mesma onda. Se é conjuntural, instrumental, ‘tá bem. Mas, vá lá, despachem-se: vistam-se, tirem as maquilhagens e mostrem-se na rua como qualquer um(a). Desfilem à civil.
Tirando alguns trogloditas (lembro-me logo de uns cinquenta – agora quarenta e nove – que emporcalham certo edifício público, mas, na verdade, são bem mais numerosos), a malta já não liga a ponta de um corno a isso. A agenda já nada tem de fracturante.
Pelo menos, para já. Daqui para a frente, veremos: se lograrmos resistir, enquanto sapiens, ao despautério que assola o mundo, talvez até venha a sentir-me orgulhoso de ser um digno herdeiro do chimpanzé, meu avô, que me legou a quase totalidade dos genes e o gosto pela banana (sobretudo, a da Madeira, que está pelos olhos da cara).
E, para atenuar o negativismo de muito do que precede, deixem-me dizer-vos que me fascina o que tantos dos meus semelhantes fizeram e fazem nos domínios da ciência, da filosofia, das artes, da construção, da agricultura, da indústria, do ensino, da saúde, da transformação do mundo. Operários em construção, ou desbravadores do desconhecido, nem eles nem elas desistem da utopia. Só nos dizem, cada um à sua maneira, que a complexa e contraditória condição humana dispensa o orgulho, mas carece de ser preservada no que tem de melhor.
Foi bom estar convosco. Orgulhosamente acompanhados.
Sim, Eldad Mario Neto. Estamos a viver num mundo que já pouco tem a ver com o que nos coube em herança da II Guerra Mundial. É, de facto, um mundo multipolar que se afirma, com lógicas de índole económica e geo-estratégica em que, por vezes, é difícil perceber até que ponto as divergências são compatíveis com alianças até há pouco improváveis. Já sabíamos que a História é um processo dinâmico, alheio à linearidade, mas o materialismo histórico dava-nos (e continua a dar a alguns de nós – eu, por exemplo) um vislumbre de uma evolução consentânea com a designação algo presunçosa da nossa espécie. Alguém perguntou a Hawking se, no caso de haver vida inteligente noutro planeta, além da Terra, seria semelhante às formas que conhecemos, ou diferentes. Ele retorquiu: «Há vida inteligente na Terra?» É certo que o somos, sapiens, mas a nossa cachimónia foi-se formando por etapas e conservando frescas e vivas as sucessivas camadas, da reptiliana até ao neocórtex. Somos, hoje, o produto de um demorado ontem. No meio de tudo isto, há um largo espaço para a preocupação que manifestas e que subscrevo. E o que mais me preocupa é que, volvidos três quartos de século (é o cartão de cidadão a azucrinar-me), tantos dos meus semelhantes continuam a ingerir acriticamente doses cavalares de informação que não questionam, não problematizam, mas metabolizam com a preciosa ajuda de bactérias que passam por boas, quando são agentes patogénicos infiltrados. Tentar levá-los a pôr no xadrez geopolítico todas as peças, dos proeminentes rei, rainha, bispo, torre e cavalo, aos mais indiferenciados peões, é coisa que choca com a muralha de aço do conformismo e da alienação. A utopia é distópica para muitos, cujo alcance visual não ultrapassa a acuidade pretensamente realista do Fukuyama e da TINA. Albino Matos, há dias, equacionava aqui a necessidade, não de Deus, mas do divino, citando Giorgio Agamben, a propósito de uma entrevista de Heidegger, em 1976: «Enquanto formos capazes de perceber como divinos uma flor, um rosto, um pássaro, um gesto ou uma fibra de erva, poderemos prescindir de um Deus que possamos nomear. Basta-nos o divino, importando mais o adjectivo que o substantivo. Não é bem ‘um Deus’, mas antes: ‘só o divino nos pode salvar’». Penso que a utopia cabe bem nesta reflexão sobre o divino. Só ela nos pode salvar. Um abraço fraterno.
Sei muito pouco sobre o humano, apesar de o ser, garantidamente.
Lamento já quase só me lembrar do título da Condição Humana, do Malraux, que li já lá vão uns cinquenta anos, ou à volta disso. Já agora, desculpe, se é que me está a ler. Vou dar uma espreitadela à Wikipedia e já volto. É só um instantinho.
Pronto. Já cá estou. Do enredo, ainda tinha uma vaga ideia: os guerrilheiros chineses na via sacra (então, pá, e as maiúsculas?! pra que servem?!) da acção revolucionária dos anos 20, que acabaria por ter êxito em 1949. Sossegue! Não o vou maçar com informação que temos debaixo das falangetas. Deixe-me só dizer-lhe que, em 68, o Malraux deixou gente de esquerda (não sei ao certo quanta) desconcertada, porque a bota da Condition Humaine não batia com a perdigota do alinhamento com o De Gaulle, por muito louvável que tenha sido (acho que foi) o comportamento do General, imediatamente antes (appel du 18 juin 40) e durante a Ocupação nazi (France Libre). Outro parêntesis (este não assinalado graficamente, mas exigido pelo estendal desta erudição dos diabos): «Uma Europa do Atlântico aos Urais!». Bravo, mon Général! Como diz a Ana Paula Ferreira, «O ser humano é uma criatura complexa, marcada por emoções, pensamentos e interacções sociais».
Voltando ao Humano: há uma frase no artigo da Wikipedia que diz tudo, se é que, sobre o Humano, é possível dizer tudo, que não é: «La singularité du roman (aquele a que me venho referindo) réside en ce qu'il fait coexister la conscience de l'absurde avec la certitude de pouvoir triompher de son destin, grâce à l'engagement dans l'Histoire». Camus, que conheceu pessoalmente Sísifo e o viu a empurrar o rochedo pela encosta acima para logo desabar até ao sopé da montanha, viu nele o herói absurdo – o que não surpreende, ou não fosse aquela tarefa um castigo imposto pelos deuses, useiros e vezeiros nestas manigâncias para com os humanos. Mas, dado a reflexão sobre o comportamento do seu semelhante, Camus atarda-se a observá-lo num momento de efémero descanso e conclui: «A luta pelos cumes é quanto basta para encher um coração de homem. Temos de imaginar Sísifo feliz». Cá está: como dizia Fernando Birri (não conheço), citado por Eduardo Galeano (conheço), por sua vez citado por Eldad Mario Neto (conheço, claro!), que seja a UTOPIA a fazer-nos caminhar! Não posso estar mais de acordo. É «triunfar sobre o destino graças ao compromisso com a História».
Mas «nós temos alguma importância?», pergunta retoricamente a Cecília Pedro. Tenho lido umas coisas sobre o absurdo da condição humana, não só em Camus (com quem mantenho uma relação de amor-ódio, passe o exagero melodramático); também em gente que aborda a questão sob um olhar menos literário (Nietzsche, Freud, Sartre, Morin, Harari, …), e penso que sim. Temos alguma importância, ou estes fulanos não se teriam dado ao trabalho de se debruçar sobre o absurdo da nossa condição.
A questão do Humano está estreitamente ligada à do sentido da vida – coisa que não existe, como não existe natureza humana (Sartre). Admitir uma “natureza humana” é pressupor que fomos concebidos pelo detentor de um projecto original e que, no fundo, cumprimos um destino – concepções idealistas que repugnam ao materialista. Claro que seria mais estimulante (será que seria?) acreditar que alguém de condição superior à nossa se deu ao trabalho de nos criar, a nós e a tudo o que existe (segundo certas fontes, no prazo de uma semana). O que existe é, de facto, tanto que apetece perguntar se temos alguma importância. O Jorge Raposo responde muito poeticamente que «Somos alquimistas frustrados e magníficos, inventores de mundos que nunca existiram, de amores que transcendem o impossível, de eternidades que duram o breve instante de um suspiro». Que bonito e quão verdadeiro! A Paula Raposo, aparentemente, subscreve: «Não quero ser o ser humano / que guerreia, mata inocentes / a eito, desfaz cidades / e em atroz ferocidade / deixa meio mundo às cegas.» Já o Luís Lapa faz do Humano uma pintura tão disruptiva que nem o Bosch. É verdade, todavia, que «De humano a desumano, por vezes, basta um simples passo», conforme se queixa a Maria Carvalho Amador.
Quanto à vida, como o Humano, ela é aquilo que cada um faz dela, no uso que dela faz, sendo que dispõe sempre da angustiante liberdade da escolha. Não escolher é já fazer uma escolha (que banalidade, meu deus!)
Bom, para não me eternizar por estas bandas, até porque a hora do jantar se aproxima e me interpela a consciência estomacal, quero inverter o rumo atabalhoado desta reflexão com um complemento que, como o resto, nada tem de original e que se inspira em Morin, cujo se inspira também em muitos outros, isto porque o humano é muitíssimo inspirador. De modo mais emotivo, a Mar Maria Frazão diz que «ser humano é a capacidade de iluminar a noite / resgatar do choro um riso largo / e fazer brotar a gratidão de um coração ferido». Subscrevo, e, continuando a ignorar o apelo do estômago, acrescento, desajeitadamente, que o homem, no seu percurso existencial, se depara com inúmeras dificuldades a superar. (Já viram bem esta propensão para tratar o assunto como quem redige um protesto no Livro de Reclamações?!) A realidade é demasiado dura para a podermos suportar em permanência. Daí a necessidade da fantasia, do sonho, do mito, da festa, da celebração. E da utopia. Homo faber, Homo sapiens, Homo demens, diz o Morin. O humano é essa enorme complexidade, e sabê-lo é meio caminho andado para uma convivência sã e pacífica, em que a Sara Mafra parece não acreditar: «encontramos amigos para a vida / e fodemo-los, para não variar / porque a raiva importa mais / do que uma língua que solta poesia / e que finalmente nos complete esta merda de vida vazia / que é a alma / que nos obriga a uma procura idiota por sentido, / ou, provavelmente, uma ligeira e ténue calma / só que somos humanos / e sabemos, sem nunca nos contarem / que nessa busca, nessa eterna agonia, / encontraremos / apenas / a beleza nojenta da nossa porcaria.»
Julgo ter compreendido, tanto quanto me é dado compreender, o que é o Humano: uma refrega permanente entre contrários que se digladiam. Bom apóstolo, prego o diálogo e a tolerância, sem abdicar das minhas convicções e da liberdade de as defender com unhas e dentes. Mas sem ofender, que as unhas andam quebradiças e os dentes têm melhor uso à hora dos repastos (isto está a tornar-se obsessivo!). Enfim. Uma dessas convicções é a de que a compreensão e a tolerância têm de ser ponderadas, para se não dar azo a que a incompreensão e a intolerância assumam proporções desumanas e acabem por levar o sapiens de regresso à caverna, que não a de Platão. Desta ponderação pode resultar, pois, uma ilação contraditória com o espírito de tolerância que, há instantes, se reclamava. Contraditória? Não sei. O humano é contraditório. Por condição. Não por natureza.
Vão em paz.
------------------------------
(Contributo para uma discussão sobre o Humano, a convite do Eldad Mário Neto, na sua página do Fb)
Vai hoje chegar a meio a série de 12 episódios de Corrida de Fundo, «série norueguesa de 12 episódios que conta a incrível história de Gro Harlem Brundtland, a primeira mulher primeira-ministra da Noruega» (RTP Play), nos anos 70/80 do século passado.
Como se diz nos créditos iniciais, a série é «baseada na verdade, em mentiras e na fraca memória». Não conhecendo a história política da Noruega, não me atrevo a sopesar a parte relativa de cada um destes condimentos, mas inclino-me fortemente a crer que guionista, realizador e produtor quiseram tomar a dianteira, na eventualidade de acusações incómodas. Assumiram, à partida, que aquilo não correspondia necessariamente à dura crueza dos factos. É o que fazem os romancistas, quando dizem que a eventual semelhança das suas personagens e respectivas acções com a realidade é pura coincidência. Às vezes, é; às vezes, não é; às vezes, é e não é, como o gato de Schrödinger. Se um cineasta encenasse um filme em que um deputado, vamos imaginar, de um partido com cinquenta dos duzentos e trinta assentos, num qualquer parlamento europeu, roubava malas em aeroportos, é natural que advertisse os espectadores: – A minha história mantém uma escassa e modesta relação com a realidade. Os espectadores acreditariam, pelo menos até a história vir a público em todos os órgãos de comunicação e a personagem em causa ser fortemente indiciada daquele irrepressível impulso apropriador.
Para mim, a parcela dominante será a da verdade, não só porque me dá jeito, crítico que sou da social-democracia, mas igualmente porque a realidade das sociedades democráticas liberais (infelizmente, não só) é mazinha e não pára de nos mostrar que a realidade é muito mais imaginativa do que a ficção.
Mas não era bem isto o que eu queria dizer. O que eu queria dizer era que esta série me fez recordar o Há Lodo no Cais do Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, na versão brasileira, menos eufemística e também menos metafórica). Rodado em 1954, este grande filme põe a nu a realidade dura de organizações mafiosas que, sob a capa do sindicalismo operário, faziam tudo menos defender os legítimos interesses dos trabalhadores. Até o padre que intervém na acção, merece a minha circunspecta admiração, pela honestidade e coragem que revela.
Só falta dizer que, já no início do século XXI, o actual secretário-geral da NATO, o líder trabalhista Stoltenberg, foi primeiro-ministro durante vários anos, alguns deles numa coligação de “centro-esquerda”, “vermelha e verde”. É bom de ver que este vermelho estava muito debotado e o verde não tinha aquele gás característico do Alvarinho. Já o Stoltenberg é um guerreiro de fibra, digno herdeiro dos viquingues de outras eras. Basta lembrarmo-nos da atitude corajosa que teve, quando, sentado ao lado do Trump, este repetiu, alto e bom som, que tencionava anexar a Gronelândia. Enfim, tudo boa gente.