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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A autocensura jornalística no “caso” de Gaza

Estive agarrado à Antena 1, esta manhã, durante quase duas horas, entre as 10 e tal e o meio-dia menos pouco.

Num painel constituído por Miguel Szimanski (jornalista e escritor), José Manuel Rosendo (jornalista da RTP), Raul Manarte (psicólogo, activista dos direitos humanos, etc.), João Antunes (Médicos Sem Fronteiras) Manuel Serrano e Ana Cavalieri (ambos comentadores), sobre a situação vivida nos territórios palestinianos e, em particular, Gaza, ficaram bem patentes, por um lado, a divergência de perspectivas dos primeiros em relação a Ana Cavalieri; por outro, a adaptação do registo discursivo a que se obrigam jornalistas e comentadores, consoante de encontram num debate radiofónico ou nas suas intervenções televisivas. Pelo menos, no que toca a Szimanski, Rosendo e até, talvez, Antunes (dos outros, não tenho lembrança).

Quanto à divergência de perspectivas, de tão evidente, pouco haverá a dizer. Enquanto todos denunciavam acerbamente o genocídio em curso em Gaza, a pesarosa (…) complacência das democracias europeias e norte-americana e a imperiosa necessidade de pôr um termo à carnificina, Ana Cavalieri repetia incessantemente a toada do terrorismo e dos terroristas do Hamas, co-responsáveis pelos danos colaterais da política de defesa do governo de Netanyahu. Irmã gémea de Helena Ferro de Gouveia, ainda que menos imponente (aqui está algo que denuncia uma certa misoginia da minha parte e que me expõe ao risco de apanhar com um copo de água no frontispício!), Cavalieri debitou, com a proficiência própria de uma doutoranda em Ciência Política, o discurso formatado pelas Universidades que frequentou ou frequenta.

Porém, o que mais me impressionou foi a acutilância usada pelos demais na condenação inequívoca quer do governo de Israel, quer da passividade dos governos “ocidentais”, salvo raras excepções. Parêntesis: aqui, ocorre-me a imagem exaltante de Paulo Rangel na fronteira colombo-venezuelana, em Fevereiro de 2019, dando apoio ao autoproclamado Presidente interino, Juan Guaidó, e aos pobres Venezuelanos em trânsito na Ponte Internacional Simón Bolívar, intensamente bombardeada pela aviação e artilharia pesada sob as ordens de Nicolás Maduro. Os dentes daquele Rangel rangiam de indignação perante a ignominiosa barbárie bolivariana; já não rangem, que perderam o esmalte. Fim do parêntesis.

Quando os ouço e vejo na TV, percebo (mais com uns do que com outros; mais com Szimanski do que com Rosendo, por exemplo) que condenam a acção inqualificável do governo sionista. Mas fazem-no com luvas de veludo, de modo a não machucar com aspereza a sensibilidade dos tele-espectadores, do Conselho de Administração e do Ministro da pasta. Na rádio, apesar de pertencente aos mesmos patrões, abriram as comportas, sem dizer água-vai. Resultado: fiquei agarrado à rádio.

Enfim, tudo isto para dizer que o lápis azul daquela sacro-santa instituição se salazarenta descorou, porque foi metabolizado e está hoje dentro das nossas cabeças, sempre pronto a adaptar o nosso discurso à circunstância, e dando razão, mais uma vez, a Ortega, que parafraseio: o comentador é ele mais a circunstância em que comenta.

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL (IV)

IV

(As personagens da primeira cena, na mesma esplanada, tomando outro café)

Socidemo – Mas … a privação das liberdades individuais, as restrições à liberdade de expressão, a estatização dos meios de comunicação, a concentração da economia na esfera do Estado, a Sibéria?!

Marlen – E as criancinhas ao pequeno-almoço e a injecção atrás da orelha! E o Staline, meu Deus! O Pacto germano-soviético?! O Fidel!! E o Chávez e o Maduro?! (dois comunistas, como o Allende!). E a Coreia do Norte?! Livra!

Socidemo – Isso, goza! Se passasses por isso, não ias gostar!

Marlen – Repara: não há como negar as evidências históricas. Há como compreendê-las. Compreendê-las é, necessariamente, contextualizá-las – coisa que não é nada do agrado de quem tanto se empenha em obliterar a profunda iniquidade de um regime assente em princípios desumanos que propugnam a rivalidade, a concorrência, a meritocracia chico-esperta dos que singram à custa do esforço alheio. Ora, compreender tais evidências é reconhecer que a implantação de um sistema estruturalmente diferente do sistema em vigor implica fatalmente o recurso a meios que impeçam a antiga classe possidente de retomar o poder, quer através dos seus próprios representantes, quer através de revolucionários posteriormente convertidos às doutrinas que antes combatiam.

Socidemo – Esqueces-te de que, em democracia e num Estado de direito, todos os cidadãos podem votar livremente! Se os eleitores preferem viver neste sistema, por que razão insistes em conduzi-los para o teu redil comunista?

Marlen – Olha! Nós esquecemo-nos rapidamente das lições da História. Aquando da (burguesa) Revolução Francesa, o Terror de Robespierre foi um abrir e fechar de olhos na linha do tempo da sociedade feudal que condenava milhões de camponeses à privação e à morte lenta. A morte, quando é lenta, não aterroriza, mas não deixa, por isso, de matar. O comandante-em-chefe do Exército de Itália viria, anos volvidos, a impor o seu consulado e posterior coroa imperial à França republicana. Revolução e contra-revolução. A violência proletária de 1917 e, sobretudo, do período posterior à morte de Lénine foi angustiante para muitos e injusta para alguns. Mas (odiada adversativa…) foi o meio necessário para que as grandes mudanças estruturais da sociedade russa pudessem concretizar-se. Houve excessos? Houve erros? Ninguém os nega. Mas a História nunca foi desenhada a régua e esquadro no estirador de um arquitecto. E, mais tarde, a experiência de construção do socialismo sucumbiu. Mas o sonho comanda a vida, e o mundo pula e avança.

Socidemo – Ok, mas a liberdade de escolha?!

Marlen – Referes-te à opção entre Republicanos e Democratas? Entre Biden e Trump ou entre Kamala Harris e Trump? Bela liberdade de escolha que os meios de comunicação inteiramente nas mãos do capital te proporcionam!

Socidemo – Olha, eu partilho a posição do Camus sobre esta questão. O eleitor tem sempre a possibilidade de se revoltar. Não temos é o direito de impor.

Marlen – O humanismo de Camus, que saúda a revolta e condena a revolução?! Foi justamente apodado de “burguês” por Sartre, que bem sabia da náusea de um sistema podre a carecer da varredela organizada e vigorosa das massas. A revolta é salutar, mas não chega para mudar. E o voto continua a ser o “piège à cons”, óptimo instrumento de condução do rebanho, qual rafeiro que instintivamente sempre leva as ovelhas ao redil do dono. Ignorantes da sorte que as espera. Socidemo, meu querido, a história da humanidade é mesmo a história da luta de classes. Tem avanços e recuos. E tem contradições, como as que vivemos presentemente, com o avanço da extrema-direita, ao mesmo tempo que se vai afirmando uma nova ordem mundial, com as potências emergentes a ganharem terreno na luta contra a hegemonia imperial euro-americana.

Socidemo – Reparei que resumiste a contextualização histórica a umas vagas considerações sem nada de concreto…

Marlen – Claro! Íamos ficar aqui a tarde inteira a esgrimir factos e números, sem chegarmos a acordo. Além disso, íamos alongar exageradamente uma peçazinha que não aspira a galhardetes.

Socidemo – Bela desculpa!

Marlen – Tá bem, deixa! Aconselho-te a procurar fontes que não sejam exclusivamente os órgãos de comunicação dos detentores do capital. Quanto mais não seja, para teres uma ideia da diversidade que tanto aprecias.

Socidemo – Bem pregas tu, mas quem te ouve? Já agora: em quem vais votar no domingo?

Marlen – No próximo domingo, vou votar CDU. Como sempre. Depois, continuarei a imitar o Padre António Vieira. Pregando aos peixes. «E posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte a costumada graça. Ave Maria.»

(Pagam e saem. Desce o pano, onde se pode ler:

COM A CDU, A TUA VIDA IMPORTA, O TEU VOTO CONTA!)

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL (III)

Acto III

(Mesmo local, mesmas personagens, no intervalo seguinte)

Marlene – Como eu te dizia há bocado, em 18 de Maio, vamos exercer mais uma vez o direito de voto conquistado em 1974 (porque até aí vigorou o direito da chapelada). A um lado, temos um conjunto de forças políticas que, com diferenças pouco significativas, defendem o sistema democrático parlamentar como o pior, excluindo todos os outros; para piorar tudo, temos um partido extremista de direita, que tem singrado graças às políticas pouco diferenciadas dos Partidos da social-democracia mais ou menos bem-intencionada e que singra pelo mundo inteiro, precisamente porque explora a falácia das alegadas diferenças de linhas políticas das facções da social-democracia, desde a mais ténue, do PSD, à mais “trabalhista” e histórica, pré-blairiana, do Livre e do BE. Do outro lado, e reduzido à expressão mais simples, o PCP, que resiste e não se “moderniza”, como o Marcelo lhe sugeriu, em tempos de comentador, preocupado que estava com a perda de eleitorado comunista.

Cristiana – Como é que explicas essa desafeição? Se calhar, o Marcelo tinha razão!!

Marlene – Para o Marcelo, “modernizar-se”, como fizeram os outros PCs europeus, talvez com excepção do grego, seria social-democratizar-se e passar a ser mais um.  A desproporção entre as votações do PCP e a dos dois maiores Partidos do sistema é óbvia, mas as razões desta desafeição são múltiplas e dariam para uma ou mais teses de doutoramento. O que importa é apenas dizer que, em 18 de Maio, vamos reincidir – e, quando digo “vamos”, refiro-me aos amigos que até poderiam votar PCP / CDU, ou que até já o fizeram, noutras ocasiões, mas vão votar no PS, para evitar uma vitória do PSD / CDS. É evidente que este plural não me inclui.

Cristiana – Ó pá, o Pedro Nuno Santos é inspirador: tem um historial de rebeldia, de ruidosa oposição ao pagamento da Dívida (“Não pagamos!”), de diálogo com a esquerda à sua esquerda…

Marlen – Olha: eu até me lembro de o ter visto na Festa do Avante!, há muitos anos, com um filho (suponho) às cavalitas. Tem esse historial, é verdade. Mas quem também foi à Festa do Avante! e até ouviu a Odete Santos a chamá-lo de longe foi o …: - «Ó Marcelo!», e aqui é que bate o ponto. Qual é a utilidade, para quem quer uma mudança efectiva, de votar nos Partidos que vão continuar a promover privatizações, a desmantelar o SNS, a implementar a militarização da Europa, a encharcar-nos em propaganda pró-NATO, a degradar as nossas condições de vida, uns às escâncaras, outros em modo sonso, todos atentos à mensagem de Francisco e seus venerandos, mas dissimulando a condenação inequívoca que o defunto Papa fez desta “economia que mata”, e que é, sem margem para dúvidas, a economia capitalista, na sua versão 2, 3, ou 4.0? Francamente! Ponhamos a mão na consciência (preferentemente, a de classe): queremos mesmo mudar, ou queremos que tudo continue na mesma – mais arroba, menos quintal?

Cristiana – Eh pá! Eu acho o tipo tão giro!

Marlen – Pois, pois! Por essas e por outras é que não saímos da cepa torta. Uns, é pelos lindos olhos ou porque têm charme; outros, porque são bem-falantes, e assim por diante. Tudo menos consciência política e conhecimento de causa.

Cristiana – Então, tu, que tens isso tudo, diz-me lá qual é o verdadeiro voto útil, na tua opinião.

Marlen – Olha, o voto no PS, em 18 de Maio, é um voto útil, sim, mas de uma utilidade perversa. Como já te disse, a social-democracia anda a duas velocidades: a mais discreta avança com pezinhos de lã; a mais desbragada corta a eito. Por conseguinte, o voto no PS é, sobretudo, útil para quem goza de um certo bem-estar e acredita que, pouco a pouco, os que estão na mó de baixo vão entrar no elevador social.

Cristiana – Ora aí está! Estás a ver?! Para quê convulsões sociais, se podemos lá chegar de elevador?!

Marlen – Deixa-me acabar.

Cristiana – Acaba, acaba, que vai tocar.

Marlen – Olha: alguns até sabem que o elevador tem uma capacidade muito limitada, mas, que diabo!, não vão infernizar uma vida, no fim de contas, bem agradável só porque o elevador tem uma capacidade mínima! Logo, tomai lá, sem grandes questionamentos morais, o voto que assegura o prosseguimento das políticas neoliberais de privatização do que ainda está na esfera do Estado, de degradação dos serviços públicos, de desregulação da legislação laboral, de promoção do capital financeiro, em detrimento do produtivo, de acentuação das desigualdades sociais. Feito este trabalhinho tão útil ao capital, a União Europeia oferece ao esforçado governante um lugar ao sol (um sol ainda mais reconfortante), e o nosso esforçado governante socialista mancomuna-se alegremente com as ilustres figuras de topo da social-democracia europeia ou até da direita democrática europeia, eventualmente, mesmo, da extrema-direita europeia bem-comportada.

Cristiana – Estás a ser injusta! Ele foi vítima daquela conjura entre o Marcelo e a Lucília!

Marlen – Eu até gostava de acreditar nisso, Luciana, mas o António estava tão desejoso daquela deslocalização que tenho sérias dúvidas! Desconfio que houve ali um triângulo – amoroso, talvez não, mas amigável, sim.

Cristiana – Ora! Querias que ele assobiasse para o lado como o ex-sócio-gerente da Spinumviva?

Marlene – Não. Vista de fora, sem grandes preocupações interpretativas, foi uma atitude correctíssima. Eu é que procuro sempre esmiuçar.

Cristiana – Ainda bem que o reconheces!

Marlene – Bom, mas isso são favas contadas: o homem está na “Europa” a fazer um bom trabalho, ao serviço do capital e da defesa dos valores ocidentais. Particularmente, os valores da transatlântica indústria armamentista e afins. Retomemos o fio da nossa conversa sobre a alternância democrática, que vira o disco e toca a mesma política antidemocrática de sempre. É como um rondó: o estribilho não falta. Com uma agravante: é que parece fechar os olhos ao efeito que isso tem na ascensão do neofascismo e na emergência de uma nova ordem internacional que já não obedece a esta cartilha gasta, velha e revelha. Por isso, bom seria seguirmos o exemplo de Ulisses: amarrarmo-nos ao mastro do navio, não cedendo ao canto das sereias.

Colega – Olha o que tu foste buscar! As sereias somos nós, pá! E o Pedro está mesmo a pedi-las, mulher!

Marlen – A pedi-las?! A pedir-nos, queres tu dizer!

(amanhã há mais)

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL (II)

Acto II

(Sala dos professores da escola. Marlen e Cristiana, sentadas, conversam amigavelmente)

 

Marlen – Pois é. Já lá vão quase cinquenta anos, desde a aprovação da primeira Constituição democrática.

Cristiana – Com as tuas ideias, achas a Constituição democrática?!

Marlen – Acho. É uma Constituição progressista, razoavelmente consagradora da centralidade do trabalho na nossa sociedade, mas paulatinamente sujeita a revisões e adaptações que lhe vão deixando à vista as reais intenções da classe dominante.

Cristiana – Ah, bom! Então, será mais uma Constituição democrática burguesa!...

Marlen – É isso. Tu lá vais desvendando os mecanismos da maquinaria social. Mais umas conversas e alinhas comigo! Realmente, os Partidos alternantes na cúpula do Estado sempre se congraçaram para manter o poder entre as mãos bem tratadas de governantes ditos socialistas, ou social-democratas, de discurso mais ou menos inçado de galanteios aos mais desfavorecidos, mas igualmente inócuos, na melhor das hipóteses, quanto aos efeitos nas condições de vida do povo-povo.

Cristiana – Essa do “povo-povo” lembra-me qualquer coisa.

Marlen – Lembra-te a feliz reduplicação do Visconde de Almeida Garrett, liberal dos quatro costados, num tempo em que o liberalismo não tinha os contornos que tem hoje.

Cristiana – É isso! E mais: ele diz que o Cristianismo foi a revolução do mundo antigo e que a Revolução é o Cristianismo do mundo moderno.

Marlen – Não. Isso foi o Antero, nas Causas da Decadência…

Cristiana – Tens razão. Vê-se que tens a lição bem estudada. Achas que estamos preparados para este Cristianismo moderno?

Marlen – Acho que não. Acho que andam por aí uns pregadores do pensamento único que conseguiram converter um sem-número de infiéis à religião do deus TINA.

Cristiana – O quê, a Albertina?!

Marlen – Não, mulher! Não me digas que não conheces a sigla?

Cristiana – Quem é a Sigla?!

Marlen – A sigla TINA, mulher! There Is No Alternative!

Cristiana – Ah! Desculpa lá. Estava noutra onda.

Marlen – Olha! Vamos ter, em 18 de Maio, uma nova oportunidade de votar útil. A concentração dos votos de esquerda no PS poderá, talvez, dar-lhe a maioria e contrariar a permanência do PSD / CDS no poder. O problema é que os Partidos de esquerda, com a excepção do PCP, são todos Partidos reformistas, Partidos que afirmam (claro que não desta maneira tão crua) a possibilidade de melhorar o capitalismo e, com isso, as condições de vida do povo, à semelhança do que aconteceu nas social-democracias do centro e norte da Europa. Os social-democratas verdadeiros (este adjectivo carece de escrutínio rigoroso!) acreditam mesmo na possibilidade de se chegar a uma sociedade em que o bem-estar geral é possível, sem que haja necessidade de avançar no sentido da eliminação progressiva das classes sociais. Acham que os interesses dos detentores dos grandes meios de produção e os interesses dos trabalhadores não são antagónicos, inconciliáveis, mas sim harmonizáveis, no contexto da negociação e concertação social. Partilham a doutrina social da Igreja e a crença numa Terceira Via blairiana. Esqueceram-se em absoluto da perspectiva dialéctica do desenvolvimento em espiral, que vê na luta dos contrários (tese – antítese - síntese) o motor da História e ignoram a lição de Marx: a história da humanidade é a história da luta de classes. Os falsos social-democratas (desconfio muito destes adjectivos…) servem-se da designação, apenas, para dar um ar de legitimidade às suas reais intenções, que não são nada dignas de respeito.

Cristiana – Espera lá! Queres tu dizer que temos uma dança de cadeiras, a que chamam alternância democrática, e que redunda na permuta cíclica de um Partido social-democrata de discurso mais à esquerda (a privatizar a ritmo mais lento, a ceder eventualmente um pouco mais nas negociações sindicais, a defender causas um pouco mais inovadoras) por outro Partido social-democrata de discurso mais à direita, sendo que o primeiro é tendencialmente mais eficiente nas questões de natureza cultural ou civilizacional (IVG, eutanásia, ideologia de género, casamento homossexual, etc.) e o segundo mais eficaz na promoção dos interesses materiais dos detentores dos grandes meios de produção: privatizações, baixa do IRC, “reforma” da TSU (lembras-te do Passos Coelho a fazer marcha à ré?), etc.

Marlen – Nem mais. Assim é que é falar! Até já pareces eu! Lembras-te do Passos Coelho a fazer marcha à ré?!!! … Queres preencher já a ficha de adesão ao Partido?

Cristiana – Agora não, que vou ter aula já a seguir, mas lembro-me dessa do Passos Coelho. Quem não se lembra! Ouve lá uma coisa: achas mesmo que não há diferenças entre eles?

Marlene – Há. Algumas. São consistentes, duradouras, conducentes a uma mudança efectiva nas relações de produção, nas relações sociais, na defesa e promoção de uma ordem mundial consentânea com os superiores interesses da humanidade enquanto um todo? Seguramente, não. Os desafios do tempo são sempre diferentes e complexos. Os do nosso tempo são-no mais, porque o nosso tempo é mais veloz e porque o nosso potencial de destruição supera o nosso poder criador, que é já muito grande.

Cristiana – Sabes que mais? Está quase a dar o segundo toque. Vamos ficar sem clientes.

(amanhã, há mais)

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL

(Peça previsivelmente em quatro actos, que não são de malvadez, talvez mais de lucidez, pese embora possam causar alguma azia, por via da sua acidez, pelo que se recomenda a seguinte posologia: tomar um acto por dia, entre o almoço e o jantar, com um copo de vinho a amenizar)

Personagens do acto I:

Socidemo: espécie de gentleman, alto, anafado, bem-humorado, seguro de si e do seu estatuto, crente de que é possível melhorar substancialmente a sorte da humanidade através do diálogo e sem convulsões sociais.

Marlen: esguia, enverga um macacão azul escuro, ostenta algum cansaço, mitigado pela convicção que põe no que diz, firmemente convencida de que serão as condições materiais da existência a mudar radicalmente as relações entre os homens (lato sensu).

 

Acto I

(Esplanada de um café da cidade, perto de escola. Socidemo e Marlene, professores, estão sentadas, um diante do outro, e sorvem periodicamente um golo de café)

 

Socidemo – O teu voto ideológico cheira-me a imperativo categórico. Não admites que o voto possa obedecer a imperativos meramente circunstanciais e não, obrigatoriamente, a um arquétipo de virtude, tipo compromisso moral com uma humanidade idealizada, estilizada, adaptada ao teu dogma?

Marlen – Ena, pá! Onde tu já vais! Há circunstâncias, na vida política, em que se justifica, de facto, o recurso ao voto num Partido, ou numa pessoa, que não aqueles em quem confiamos.

Socidemo – Qual é o Partido em que confiamos?

Marlen – Em princípio, é aquele que defende os nossos interesses ou os interesses da classe a que pertencemos, ou os interesses da classe que entendemos ser a que empunha a tocha do futuro. Bem sabes que, para mim, essa tocha é a da justiça social, da igualdade, da fraternidade. Se chamas a isto imperativo categórico, é lá contigo. Eu não navego muito pelas minhas circunvoluções cerebrais para chegar à conclusão de que, sendo o mundo o que é, há que mudá-lo. E mudar é, necessariamente, ir contra o que está mal e aqueles que pretendem reproduzir incessantemente o que está mal.

Socidemo – Reparei que falaste de justiça social, igualdade, fraternidade. Só te esqueceste da liberdade!

Marlen – Estás enganado! Só falei da liberdade! A liberdade nada mais é do que a justiça social, a igualdade e a fraternidade. Ou acharás tu que há liberdade sem justiça social, igualdade e fraternidade, quando, tantas vezes, a liberdade a que te referes é só formal?! A mim, interessa-me a liberdade substantiva: a paz, o pão, habitação, saúde, educação, .... Conheces, não conheces? Sem isso, onde está a liberdade?!

Socidemo – Pois! … Olha que, afinal, não estamos assim tão distantes um do outro.

Marlen – Talvez não. Também já votei útil – em Mário Soares e em Jorge Sampaio, pelo menos. Engoli sapos vivos, uma ou outra vez, e a má digestão inspirou-me dúvidas sobre a real utilidade desses votos. Aquando da liça Mário Soares / Freitas do Amaral, a coisa até me parecia líquida e mesmo dispensadora de um Congresso convocado e realizado no curto espaço entre as duas voltas. É que, apesar da relação espúria de Mário Soares com o Frank Carlucci, Freitas do Amaral representava a facção mais reacionária do espectro político. Não havia que hesitar na deglutição do sapo. E, no entanto, não só a digestão foi difícil como o antagonista se veio a revelar um homem capaz de mudar a agulha a concepções políticas inaceitáveis para a esquerda e assumir comportamentos bem mais digeríveis, condenando, p. ex., os bombardeamentos da antiga Jugoslávia e o seu desmembramento pelos EUA/NATO, no final do século XX. O demónio reaccionário que tinha justificado o voto útil em Mário Soares acabou ministro de Sócrates (outro reputado socialista…) e até tive vontade de votar útil nele (Freitas), caso voltasse a candidatar-se à Presidência.

Socidemo – Votar no Freitas?!

Marlen – Sim, sim! Não foi ministro do teu Partido?!

Socidemo – Bom, mas, então, sempre reconheces a utilidade do voto útil?

Marlen – Reconheço, sim. Mas olha que o voto em Mário Soares talvez tenha sido, sobretudo, uma reacção visceral de defesa perante um perigo que não seria tão iminente quanto parecia: o socialismo tinha sido, há muito, metido na gaveta. Aliás, a metáfora nem faz sentido. De socialismo, só no PREC se vislumbrou algum lampejo.

Socidemo – Então, e o Jorge Sampaio?

Marlen – O Jorge Sampaio defrontou um rival que era de todo em todo intragável. Quase nem se punha a questão política; a repulsa era, e é, ainda mais visceral, e nem vale a pena gastar cera com tão mau defunto.

(Continua amanhã)