PORQUE SOU COMUNISTA, isto é, PORQUE SOMOS COMUNISTAS?
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A primeira associação que ocorreu a este leitor, ao folhear o livro de Pedro Tadeu e ao ver que todos os capítulos têm uma epígrafe do Manifesto Comunista foi a do livro Porque é que Marx Tinha Razão, de Terry Eagleton, onde todos os capítulos têm uma espécie de epígrafe (do próprio autor) que consiste na reprodução de uma crítica ou acusação frequentemente feita a Marx. Neste último caso, o autor refuta essas acusações; no primeiro, Pedro Tadeu expõe o seu pensamento sobre questões da actualidade, à luz do marxismo e a partir de passos do Manifesto relacionados com essas questões. É possível que aconteça com muita frequência os autores recorrerem a epígrafes convenientes já depois de terem o capítulo, ou os capítulos, redigidos. Pode muito bem ter acontecido isso com ambos estes marxistas, ou apenas com um deles, ou nenhum, e isto não tem relevância na apreciação dos respectivos livros. Trata-se de um aspecto formal, de estruturação do livro, mas com pertinência didáctica. De facto, a epígrafe nunca é inocente; mantém com o texto que se lhe segue uma relação de significação e de implicação mútua que deve ser apreciada. Na entrevista «A democracia ocidental está ferida de morte» de Ana Marques Gastão a José Saramago, no Diário de Notícias de 25 de Março de 2004, entrevista subsequente à publicação do Ensaio sobre a Cegueira[1], a dada altura, a entrevistadora formula a seguinte pergunta ao escritor:
Há um fio entre as epígrafes de História do Cerco de Lisboa («Enquanto não alcançares a verdade, não conseguirás corrigi-la. Porém se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes.»), de Ensaio sobre a Cegueira, na qual se diz «Se podes olhar, vê» e de Ensaio sobre a Lucidez: «Uivemos, disse o cão.» Acha que devemos uivar?
A esta pergunta, Saramago responde:
Digo, às vezes, que o mais importante nas minhas obras são as epígrafes. Peço ao leitor que não se limite a ficar por aí; que leia e pense […]
A entrevista é riquíssima. Vinte e um anos depois, é ainda mais verdadeira. Vale a pena revisitá-la, pelo que anexo digitalização das suas quatro páginas. Passados estas anos, as coisas talvez não se tenham encaminhado no melhor dos sentidos, e Pedro Tadeu pede-nos que leiamos, que pensemos e já agora… que uivemos. Porque urge corrigir a verdade, sem nos resignarmos, e não fingirmos que não vemos, quando podemos olhar.
Outra observação que não tem particular relevância prende-se com o título Porque sou Comunista. Ele suscita imediatamente uma dúvida, pelo menos a quem se preocupa exageradamente com questões de relativa importância, talvez por efeito de deformação profissional: este “Porque” é interrogativo, explicativo ou causal? A resposta está no início de cada capítulo, onde um antetítulo pergunta “Porque sou comunista?” e, logo a seguir, se responde com o título: “Porque os comunistas querem muito mais do que liberdade”, “Porque os comunistas são combatidos, mas não se calam”, etc.
Para esgotar o rol de minudências que não interessam a ninguém, o escriba arvorado em crítico observa que Pedro Tadeu usa o símbolo da foice e do martelo desde a capa até à última página do livro, perto de quarenta vezes. Para um “jornalista burguês” que se “confessa” (as palavras são dele, logo na capa), é obra. Melhor dizendo: é desafio ao sistema que se pretende democrático e respeitador da liberdade de expressão, mas que tantas e tantas vezes claudica deliberadamente na execução prática do que alardeia; é quase provocação; é, sobretudo, afirmação, reiterada vezes sem conta, de adesão a um ideal que a muitos valeu prisão, sofrimento e morte.
Em abono da verdade, Pedro Tadeu esclarece tudo aquilo que atrás se enuncia em termos mais ou menos dubitativos, num primeiro capítulo de natureza prefacial, intitulado “Porque é que eu, no século XXI, sou comunista?” Fica-se a saber quando, como e porquê Pedro Tadeu aderiu ao PCP, como surgiu a ideia de escrever este livro, que conteúdos o integram, por que razão, no subtítulo, se intitula “jornalista burguês”, etc.
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Para quem se ocupa frequentemente com a problemática do mito e da religião e que até dirigiu, em Fevereiro de 2022, uma mensagem privada a Pedro Tadeu, na sequência de um «Radicais Livres» em que Jaime Nogueira Pinto afirmava a incompatibilidade da crença religiosa com a afirmação de ideais marxistas, enquanto Pedro Tadeu redarguia que o comunista, enquanto homem livre, podia ter as crenças que quisesse, foi surpreendente ler o primeiro capítulo do livro «Porque sou comunista? Porque os comunistas ultrapassam a religião.»
A religião é um assunto que me embaraça. […] Mas o meu embaraço é provocado por outra razão: pelas muitas pessoas que amo ou respeito e, genuinamente, têm fé num Deus, algumas delas comunistas. Há uma boa parte da personalidade delas que não entendo, que não atinjo, e isso cria um fosso e uma distância inultrapassáveis entre nós. É uma angústia. (p. 13)
O meu camarada Pedro Tadeu respondeu-me gentilmente, com referências aos clássicos e à atitude de Lénine, durante o processo que culminou na Revolução de Outubro. É um facto que nunca os comunistas da época, como os de hoje, fizeram do ateísmo uma condição para a adesão ao Partido ou a participação nas lutas sociais. Consideram, sim, a crença como um assunto privado e defendem a separação das esferas da Igreja e do Estado. O contrário seria absurdo. Em O Socialismo e a Religião, Lénine escreve:
A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.
Contudo, no tal «Radicais Livres» de há três anos e meio, quem tinha razão, do ponto de vista meramente filosófico, era mesmo Jaime Nogueira Pinto: a crença religiosa é intrinsecamente idealista, logo, contraditória com os princípios do materialismo dialéctico, filosofia que enforma o marxismo e que assenta, obviamente, na ideia de que a matéria é o princípio primeiro, e não um qualquer espírito – imaterial, por definição. Pedro Tadeu expende, depois, uma série de considerações sobre a crença religiosa, o presente e o futuro da humanidade que concitam, suponho, a inteira adesão de qualquer comunista. Por vezes, recorre à ironia, como quando imagina o que poderá acontecer na hora da morte, sabendo-se quão propícia é ao abandono do ateísmo por parte de alguns ateus[2]: «Talvez, quando chegar a minha vez, acabe por fazer o mesmo. Acho que não, mas… e se Ele existe? Ficará muito zangado comigo? Afinal, eu até sou bom rapaz. E uma eternidade no inferno é uma carrada de tempo… Que embaraço!» Não é de crer que Pedro Tadeu dê o dito por não dito. Se o fizesse, eu não o deixaria sossegar, quando nos encontrássemos para os lados do Sexto Círculo, onde Dante situa os heréticos…
Onde PT faz uma síntese muito feliz do assunto é quando escreve:
Deveríamos encontrar o divino em nós, na capacidade colectiva de construirmos um presente digno para as nossas vidas e um futuro esperançoso para a perpetuação da Humanidade, guiados pela justiça, pela bondade, pela busca incessante da felicidade. Pelo bem de todos nós, não para o bem de Deus. Para o bem da comunidade, como acham os comunistas. (p. 15)
E, aqui, não posso deixar de citar Giorgio Agamben, que me foi dado a conhecer por Albino Matos[3], em tradução de Amanhã, a Idade Média:
Há quase dois séculos - quando Hegel e Nietzsche lhe declararam a morte - o Ocidente ficou sem o seu deus. Mas aquilo que perdemos foi só um deus a que pudéssemos dar uma identidade e um nome.
A morte de Deus, em verdade, tem a ver com a perda dos nomes divinos (‘faltam os nomes divinos’, lamentava Hölderlin). Para além dos nomes, sobra o mais importante, o divino. Enquanto formos capazes de perceber como divinos uma flor, um rosto, um pássaro, um gesto ou uma fibra de erva, poderemos prescindir de um Deus que possamos nomear.
Basta-nos o divino, importando mais o adjectivo que o substantivo. Não é bem ‘um Deus’, mas antes: ‘só o divino nos pode salvar’.
Bonita, esta ideia de Agamben: não é nenhum deus, mas sim o divino (enquanto adjectivo: aquilo que é divino) que nos pode salvar. É o divino que os comunistas perseguem, na sua luta pela concretização da utopia da sociedade sem classes, porque só ela nos pode salvar.
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No capítulo «Porque os comunistas querem muito mais do que liberdade», o A. questiona a autenticidade (ou a relativa vacuidade) do conceito de liberdade na sociedade capitalista. É a velha dicotomia do formal e do substantivo: a democracia liberal brande sistematicamente as suas liberdades – de expressão do pensamento, de reunião, de associação, de circulação, de comércio, de tudo e mais alguma coisa. É uma gritaria enorme que tem como objectivo ensurdecer os cidadãos e obliterar a real falta de liberdade substantiva, porque, de facto, as liberdades reais estão nas mãos da classe possidente e esta classe detém os meios necessários e suficientes para induzir na maioria o pensamento único que condiciona o voto e conduz à reprodução ininterrupta do sistema. Isto, desde a educação recebida na família aos conteúdos ministrados no ensino e à “informação” veiculada pelos media. A burguesia tudo controla, e apresenta-se como um sofisticado big brother, capaz dessa proeza, sem ter de assumir a forma caricatural do 1984 orwelliano, no fundo, no fundo, muito pouco imaginativo. Como diz P.T.:
Para alguns, porém, há algumas liberdades decisivas na vida de todos, mas são relativas à economia: a liberdade de movimento de produtos e mercadorias, a liberdade de movimento de serviços ou a liberdade de movimento de capital. As liberdades dos fazedores de dinheiro dominam a sociedade, mas condicionam muitas outras liberdades e limitam a própria democracia. (p. 20)
Uma problemática afim desta surge mais lá para o fim do livro, a páginas 113 e seguintes, num capítulo sobre a chamada democracia liberal onde P.T. denuncia a contradição flagrante entre a pretensa bondade do sistema e a realidade da violência racista, da exploração da força de trabalho, do colonialismo, dos privilégios de classe, do fim da vida privada.
São, depois, enumerados alguns casos de discriminação de militantes comunistas que, pela sua qualidade intrínseca, assumem cargos de algum relevo no actual sistema democrático-liberal. Discriminação persecutória imbuída do ódio próprio de quem vê nos comunistas os defensores mais estrénuos de uma sociedade em que os privilegiados são privados das suas prebendas. Esses actos de malevolência e de maledicência compreendem-se no quadro da luta de classes e do ódio visceral já referido, ideia que é reforçada no capítulo “Porque os comunistas têm um partido”, no qual se denunciam os desvios que sofreu o processo de construção de um sistema verdadeiramente democrático, que era o anunciado pela Revolução de Abril.
Vem, depois, o feminismo de salto alto, isto é, a crítica do discurso libertador da mulher (libertador, relativamente à cultura da sociedade patriarcal), mas que enferma de uma contradição insolúvel: a mesma feminista, que defende a libertação da mulher das amarras culturais sexistas, mantém comportamentos que traem a dependência, ainda que inconsciente, dessas amarras.
No mesmo capítulo, a denúncia do wokismo de esquerda, que, graças ao radicalismo do policiamento censório da língua, acabou por «fazer sair do armário» (p. 41) racistas, sexistas, etc., que se sentiram, por assim dizer, desculpabilizados. De facto, as mudanças vocabulares, as novilínguas, não reflectem necessariamente mudanças da realidade para melhor, podendo até ser contraproducentes, na perspectiva da esquerda.
O capítulo sobre o jornalismo equaciona a possibilidade de um jornalismo isento, num contexto em que se confunde cada vez mais informação com opinião e em que os meios de comunicação de massa estão concentrados «num número cada vez menor de capitalistas ou de grupos económicos» (p. 51). A pandemia de Covid-19 foi, e a guerra na Ucrânia é, entre outros acontecimentos, motivo para um condicionamento dificilmente escamoteável das restrições à liberdade de informação. No caso desta última, o cancelamento de canais de informação do “inimigo” tornou-se banal e passa hoje despercebido pela maior parte do público.
Pior: jornalistas que tentaram noticiar o que se passava do outro lado do campo de batalha foram perseguidos e um deles foi mesmo preso durante dois anos e cinco meses: o espanhol Pablo González, que ao serviço do jornal Público de Espanha foi preso pelas autoridades da Polónia, supostamente por espionagem, sem que lhe tivesse sido feita uma acusação formal ou, sequer, apresentado provas concretas dessas alegações. (p. 48)
O que não obstou a que o inestimável José Milhazes, comentador residente da SIC, sem referir qualquer prova, se tenha servido precisamente deste caso para denunciar a malignidade do livro de Pedro Tadeu, nome que lhe custou pronunciar, mas bizarramente fazendo a sua publicidade e reincidindo na ridícula actuação que o caracteriza, movido por uma sanha irracional.
Guerras são coisas de que os comunistas não gostam, até porque são delas vítimas frequentes – eles e os povos cujos direitos eles defendem. A guerra faz, todavia, parte da história da humanidade. Em particular a guerra de classes. «A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes.», lê-se no Manifesto Comunista, citado pelo A. a p. 59. Mas os comunistas sabem distinguir as guerras, e, no caso da Ucrânia, como no da Palestina, não se ficam pelas datas convenientes àqueles que as fomentam. Se reconhecem a invasão da Ucrânia pela Rússia, também sabem identificar o contínuo processo de cerco montado pelos EUA/NATO/UE à Federação Russa, renegando a Aliança Atlântica compromissos assumidos por dirigentes dos países que a integram, por ocasião da dissolução da URSS e do Pacto de Varsóvia. Do mesmo modo, sabem que o infindável tormento do povo palestiniano não começou com o acto condenável de Outubro de 2023, mas, no mínimo, com a implantação de um Estado num território sob domínio colonial, à custa do esbulho do povo autóctone. E se, de um lado, há terrorismo tout court, do outro, há terrorismo de Estado – expressão não autorizada na comunicação social libérrima que temos.
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A “dilatação da fé e do Império” – que serviu de justificação oficial ao colonialismo português, que “deu novos mundos ao mundo” e que Camões canta na epopeia nacional – faz parte da nossa história. Não podemos nem devemos apagá-la. Mas podemos encará-la com a devida distância e sem a pretensão de que os “heróis do mar” foram ou são uma espécie de semideuses, resultantes do cruzamento entre Júpiter e Maria Ermelinda, natural de Miragaia (qualquer semelhança com pessoa existente é pura coincidência). Que nos baste a mítica recompensa que Camões nos ofertou no seu Canto IX. Assim, vandalizar a estátua do Padre António Vieira, que defendeu os índios do Brasil, mas não se compadeceu com os africanos escravizados nos engenhos do açúcar, não é coisa que se faça. Mas também não é justo escamotear o tráfico dos negreiros, que arrancou tantos milhares de seres humanos das suas terras, “transplantando-os” para um continente desconhecido e sujeitando-os a toda a sorte de maus-tratos. Pedro Tadeu escreve:
Porém, vou continuar a ter orgulho de ser português, mesmo se cortarem a cabeça ao Infante D. Henrique: qual é, afinal, o povo que não homenageia gente discutível do seu passado colectivo? Qual é, afinal, à luz da moral dos dias de hoje, o povo com uma história totalmente inocente de maldade?... (p. 62)
É verdade, Pedro Tadeu, no tocante à crítica daqueles que se indignam com a vandalização de certas estátuas e se congratulam com a destruição de outras. Também na apreciação do passado colectivo dos povos: grandezas e misérias, como no título de Aquilino. Mas, camarada, esse sentimento de “orgulho” não o perfilho: prefiro constatar que o povo A fez isto, no contexto X, enquanto o povo B fez aquilo, no contexto Y. Constato, objectivamente; descrevo as circunstâncias históricas X e Y em que os povos A e B fizeram o que estava ao seu alcance. É de crer que, noutras circunstâncias, nomeadamente temporais, o que o povo A fez poderia ter sido feito pelo povo B ou C ou D. Exaltar um por ter feito o que fez é sempre, de algum modo, menosprezar o outro, por não o ter feito. Quando, afinal, é tudo obra do homem. E nós até somos internacionalistas. E o Manifesto, assim como o livro de P. T., até termina com o apelo «Proletários de todo o mundo, uni-vos!» Teremos um bem melhor motivo de orgulho, quando os proletários do mundo inteiro se unirem na construção de uma sociedade sem classes, sem guerras, sem desigualdade, sem injustiça.
De resto, o capítulo «Porque os comunistas detestam o pensamento único» (p. 66) é bem exemplificativo do que a classe dominante portuguesa e as suas congéneres mundiais congeminam e praticam, em detrimento da maioria das suas populações, mas em benefício do chamado “bloco central de interesses” (expressão sinónima de classe dominante): destruição de “inúmeras produções na indústria, na agricultura e nas pescas” (p. 67), por efeito da adesão à CEE; enriquecimento da banca, nomeadamente através da generalização do crédito bancário à habitação; entrega da «soberania portuguesa ao directório europeu» (p. 68), etc., etc. Tudo isso con-sen-sual-men-te, porque a tal classe é hábil em tornar natural, necessário, indispensável e incontornável todas as políticas que servem os seus interesses, independentemente da nocividade que representam para a maioria das populações.
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No PCP, pode parecer haver “pensamento único”, mas só para quem não entende nada do que é o PCP, onde o centralismo democrático representa a assunção pela generalidade dos militantes de uma decisão decorrente do confronto de opiniões múltiplas e do reconhecimento individual de que a transformação social não se compadece nem com um questionamento teórico ininterrupto nem com o exercício de uma liberdade individual estéril, porque inviabiliza a unidade na acção transformadora. O debate ocorre, mas não se cai no erro dos monges bizantinos: discutir o sexo dos anjos com os bárbaros às portas da cidade não é a atitude mais acertada, quando o objectivo é transformar o mundo.
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No capítulo «Porque os comunistas rejeitam a sociedade da traição», P.T. começa por expor o seu sentir relativamente à traição generalizada na nossa sociedade, lançando mão de um exemplo que, à partida, nos pareceria falho de pertinência, dada a sua banalização: a traição em contexto de relação amorosa ou conjugal. Rapidamente, contudo, passa deste registo para o da política. E se, no amor, «um remoto pudor […] nos obriga a encontrar um álibi para a traição […] – a carência, […] na profissão e na política, a traição tem outro álibi – “projecto”» (p. 76). Foi sob pretexto de «salvar a democracia» (p. 76) que Mário Soares, em 1978, meteu o socialismo na gaveta, convidando o CDS, «único partido que votou contra a Constituição de 1976» (p. 77), e que o fez nomeadamente porque o «caminho para uma sociedade socialista» (p. 77) era coisa que não interessava, nem interessa, ao partido do Centro Democrático Social. Com a mesma falta de coerência e abundância de insídia, «o CDS, em 1978, meteu três ministros no II Governo que juraram cumprir com lealdade as funções que lhes foram confiadas, apesar de, dubiamente, o seu partido garantir ter como objectivo primordial da sua acção política liquidar a Lei Fundamental» (p. 77). Os exemplos de traição da direita e de alguma esquerda abundam, mas será difícil encontrar algum no PCP, que «pode errar, às vezes gravemente, mas não trai» (p. 77).
Vem, depois, o capítulo da luta de classes (p. 78) que, a dada altura, me assusta. É agora que me vou zangar com o meu camarada? Pois não é que ele escreve que um «mundo capitalista minimamente leal» teria um leque salarial mais equilibrado e uma melhor distribuição da riqueza. Isso seria «um capitalismo mais aceitável» (p. 79) Um capitalismo leal?! Um capitalismo aceitável?! Ó Pedro, por favor! Mas o Pedro, que nem me ouviu, põe logo os pontos nos ii:
mas não está na sua natureza submeter-se à exigência de repartição da riqueza, a não ser quando se sente ameaçado – e por isso a luta de classes é mesmo necessária.
Respiro de alívio.
Como não vai acontecer um “mundo capitalista minimamente leal”, como isso nunca acontece, como isso não surgirá… como poderei eu acreditar no capitalismo? Como posso deixar de achar que a solução está no comunismo? (p. 79)
Segue-se o inventário das lealdades e aceitabilidades do capitalismo, desde a nossa entrada para o euro: as imposições relativas ao défice – válidas para países como o nosso, mas perfeitamente ultrapassáveis para países como a Alemanha; a crise financeira de 2008, resultante da utilização por grandes banqueiros das poupanças de inúmeros depositantes e investidores em operações financeiras tão credíveis quanto as da dona Branca; para acabar, o reforço do Orçamento da Defesa, que pode desfalcar o OE sem problema.
Ou seja: quem, no final, pagou a crise de 2008/2010 provocada pelos ricos foram os trabalhadores, os pobres. Quem no futuro vai pagar a crise actual serão os mesmos trabalhadores, os mesmos pobres… (p. 81)
E o capítulo acaba com P. T. a desancar a “meritocracia”, essa espécie de talismã do nosso tempo, que não passa de um disfarce linguístico para obnubilar a desigualdade económica e social.
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Impossível falar de luta de classes ou de comunismo sem falar de greves. Na nossa democracia liberal, o direito à greve é reconhecido constitucionalmente como um direito inalienável, mas sistematicamente denunciado como um atentado às liberdades individuais e à boa saúde do país, o que gera um discurso esquizofrénico: sendo um pilar da democracia, devemos prescindir dele, porque gera sempre inconvenientes para alguém. Muito dificilmente prescindível em qualquer tipo de construção, parece que a democracia liberal se sustentaria com um pilar virtual, uma espécie de fato nem sequer domingueiro – para usar apenas uma vez em cada ano bissexto.
O direito à greve foi assim transformado numa inalienável hipocrisia constitucional: um grevista é sempre, a priori, acusado … de estar a fazer mal ao país. E em qualquer empresa privada quase ninguém faz greve pois arrisca, logo, o desemprego (p. 84)
Em certas empresas (a Autoeuropa é um bom exemplo), explica P. T., recorre-se a processos que, apesar de conhecidos de ginjeira, continuam a produzir resultados, isto é, o condicionamento dos trabalhadores por outros trabalhadores, que se dispõem a prestar esses serviços ao capital. A Comissão Permanente da Concertação Social, por sua vez, logra obter um desiderato semelhante, mas a nível nacional, através da central sindical UGT, sempre disposta a acatar as decisões responsáveis, razoáveis e benfazejas de sucessivos governos do seu espectro político “socialista” e “social-democrata”. Tudo isto poderia fazer algum sentido, se os dados relativos ao aumento da riqueza das pessoas acompanhassem de perto os relativos ao aumento da riqueza do país. Mas não. Pedro Tadeu dá-nos os números da Pordata, que mostram uma realidade um pouco diferente: o aumento do Rendimento das Famílias, entre 1985 e 2019, foi um pouco mais de metade do aumento do PIB nacional – respectivamente 7,6 vezes e 12,3 vezes.
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No capítulo sobre a Festa do Avante! somos levados a visitar teóricos que se debruçaram sobre a natureza da festa e sobre a distinção entre festa e espectáculo, de Bakhtine a Duvignaud e aos Enciclopedistas franceses, entre outros. A Festa do Avante! distingue-se do espectáculo e da festa burguesa, na medida em que é a festa de um Portugal novo, uma festa em que «os participantes se celebram a si próprios, celebram o facto de estarem juntos, de reconhecerem a capacidade de se juntarem, se reunirem, de, enfim, serem o que querem ser» (p. 96, em citação de Bakhtine, que retoma, salvo erro, a caracterização de Rousseau).
Seguem-se capítulos sobre o culto da personalidade, que o PCP sempre manteve à margem da sua prática política, e a Revolução de Outubro, pelo contrário, sempre celebrada pelos comunistas portugueses, porque, para além do voto universal (já existente em países do Norte da Europa e na Nova Zelândia), ela trouxe direitos até então ignorados:
habitação, assistência médica e educação gratuitas, legalizou-se o divórcio, terminou a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, promoveram-se direitos das crianças e dos idosos, proibiu-se o trabalho infantil, as jornadas de trabalho foram limitadas a oito horas diárias, houve férias pagas, segurança social, estabeleceu-se salário igual para trabalho igual entre homens e mulheres (p. 106).
As conquistas da Revolução Bolchevique condicionaram o desenvolvimento do sistema capitalista no sentido de travarem a atracção exercida sobre os seus trabalhadores pela nova sociedade em construção no Leste da Europa. O que não obstou, naturalmente, a que tudo o que de menos bom ou mau se passou na URSS tenha sido habilmente e insidiosamente usado para desacreditar o primeiro país do mundo a encetar a construção de uma sociedade assente em princípios radicalmente diferentes dos seguidos até então. Um dos casos mais badalados pelos críticos do socialismo é o da fome do início dos anos 30 do século passado, sempre usada como crime deliberado contra milhões de ucranianos, escamoteando-se o facto de também terem morrido um milhão de russos e de tal se ter devido, até segundo um conhecido historiador anticomunista – Robert Conquest – ao facto de Estaline ter privilegiado o “interesse soviético”. Aos críticos da URSS e das ocorrências mais dramáticas da Revolução, conviria debruçar-se um pouco sobre as questões da violência e das medidas de defesa inevitáveis num processo revolucionário que os governos dos países capitalistas, naturalmente, combateram.
Um capítulo sublinha a “originalidade” do PCP, no tocante à abordagem, nomeadamente em momentos congressuais, dos reais problemas dos trabalhadores; outro, explica a diferença entre o 25 de Abril libertador e o 25 de Novembro que alguns pretendem equiparar-lhe; outro ainda, sublinha o papel desempenhado pela 5.ª Divisão e a sua Dinamização Cultural; outro, põe em evidência o carácter revolucionário do PCP, característica que o distingue de todos os outros partidos nacionais, incluindo da esquerda dita radical, que sempre recorrem ao bordão da responsabilidade, para assegurar a sobrevivência de um sistema caduco; um, ainda, que denuncia o sonso processo de destruição do SNS e de entrega da saúde aos negociantes da doença, processo em que a comunicação social participa activamente, ou não fosse propriedade da classe dominante; depois, um que explica a diferença entre ser putinista e ser comunista, ao mesmo tempo que evidencia a grande paciência de P. T., ou não fosse esta amálgama um dos procedimentos de que a comunicação social dominante faz sistematicamente uso, na sua magna tarefa de condicionamento da opinião, como os fascismos históricos sempre fizeram.
A recensão já ultrapassou os limites do razoável, mas não há como fugir a um penúltimo capítulo sobre a recusa do despotismo norte-americano pelos comunistas:
Confirmou-se que a Europa Ocidental se transformou numa colónia informal dos Estados Unidos da América. (p. 152)
A frase é curta e ocorre logo no início de um capítulo extenso que equaciona os desenvolvimentos ocorridos no mundo, nos últimos anos, com a emergência de outra globalização e de um mundo multipolar em que os BRICS, com potências diversas do chamado Sul Global a eles progressivamente aliadas, disputam com os EUA a capacidade de decisão a nível geopolítico. P. T. não esconde a sua dúvida quanto à natureza futura desta nova realidade, que poderá, eventualmente, vir a substituir uma globalização por outra, mantendo, contudo, os princípios do neoliberalismo. O que não o impede de verberar quer a política belicista da União Europeia, quer a atitude de muita gente dita de esquerda que alinha sistematicamente com a direita em questões candentes quais sejam a Ucrânia, a Venezuela, Cuba, a deposição de Evo Morales, na Bolívia, etc., esquecendo-se de contextualizar devidamente cada uma destas situações.
E, finalmente, a alternativa: impérios e regimes caíram, ao longo dos séculos, sem que a história se tenha esgotado ou chegado ao fim, como pretendia Fukuyama. No presente, a classe dominante tem logrado induzir em parcelas significativas de trabalhadores a ideia de que são «colaboradores» ou «empreendedores», segundo o léxico conveniente da novilíngua neoliberal. Esses trabalhadores não têm consciência de classe, o que inviabiliza a sua participação num combate unitário por uma alternativa à globalização neoliberal e à sociedade de classes. Mas essa alternativa existe e chama-se comunismo.
[1] Entrevista de que guardei cópia dentro da primeira edição do romance pela Caminho.
[2] Leia-se O Drama de Jean Barois, de Roger Martin du Gard, e Fátima (Cartas ao Cardeal Cerejeira), de Tomaz da Fonseca, que cita Renan. Todos eles (a personagem de Martin du Gard, Tomaz da Fonseca e Renan) tomaram as necessárias precauções, enquanto lúcidos ateus…
[3] Facebook, 21 de Março de 2025