Manuel Alegre, rosas vermelhas e Francisco Lopes

Andava eu pelos 17 anos e tinha dois grupos de amigos: um, mais antigo, constituído por colegas do Liceu e por um primo (todos sensivelmente da mesma idade), tinha por cimento aglutinador apenas a amizade resultante do convívio continuado e das celebrações próprias da adolescência – andanças pela cidade em busca do desconhecido e em particular do desconhecido estimulantemente revestido de formas femininas; outro, mais recente, constituído pelo Mário, pelo Fernando, pelo Morim e pelo Artur. Eram todos um pouco mais velhos do que eu (um ano ou dois, se bem me recordo), excepto o Fernando, que devia ter vinte e tal anos e, creio, era gráfico. Mais tarde, emigraríamos todos para França (ainda cheguei a encontrar-me com o Morim e o Artur, em Paris, em 1967), excepto o Mário. O Fernando e o Morim escreviam poesia. Lembro-me relativamente bem da do Morim, porque me enviou muitos poemas por correio, quando já ambos estávamos em França (eu em Lyon).
Por esta altura, reuníamo-nos frequentemente em minha casa ou na do Mário, na Rua de Cedofeita, para seleccionarmos textos, geralmente poéticos, que enviávamos para o República (Juvenil), ao cuidado do Mário Castrim. Mas esta actividade literária era apenas a ponta do iceberg, porque dela partíamos para as mais variadas conversas em torno dos escritores neo-realistas, de filmes como o “Rocco” (graças ao Cine-Clube do Porto, onde conheci o Egito Gonçalves), de poetas como Neruda e da filosofia marxista. Foi numa destas tertúlias que o Artur nos falou de um livro do Manuel Alegre que tinha oferecido à mãe. O texto de abertura do livro chamava-se “Rosas Vermelhas” e começava assim:
“Nasci em Maio, o Mês das rosas, diz-se. Talvez por isso, eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
“E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.”
E acabava deste modo:
“ (...) em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.
“No dia 12 não acordei com o beijo da minha mãe.
“Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? – às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.”
Este livro era, claro, a Praça da Canção, e o Artur falava-nos, com emoção, da emoção com que a mãe lera o texto introdutório.
Doze anos volvidos sobre este episódio, estávamos em 1977. Manuel Alegre, porta-voz do Governo, jura perante as câmaras de TV: “Como diz o nosso povo, ainda eu seja ceguinho se o PS se coligar com o CDS”. Pouco tempo depois, PS e CDS estão juntos no governo.
Ora, apesar de nunca ter sido socialista – na acepção de membro, apoiante ou simpatizante do Partido (que se diz) Socialista –, sempre, desde os tempos a que me referi atrás, tive grande simpatia, primeiro pelo autor da Praça da Canção, depois por uma das vozes que, nos tempos em que Cavaco Silva, segundo reza a sua ficha na PIDE, estava “integrado no actual regime político, não exercendo qualquer actividade política”, faziam chegar aos portugueses, através da rádio (neste caso, a “Voz da Liberdade”, emitindo de Argel), “notícias do meu país” (para citar um dos belíssimos versos da “Trova do vento que passa”), notícias da “pátria, lugar de exílio” (para citar Daniel Filipe, outro grande poeta da resistência ao fascismo). Senti-me atraiçoado, obviamente não pelo PS, mas pelo poeta da liberdade que o Artur me dera a conhecer e que tingira de vermelho os sonhos de liberdade dos meus dezassete anos.
Trinta e quatro anos volvidos, estamos em 2011. Manuel Alegre, por quem mantenho a simpatia literária, manteve-se fiel à rosa. Eu mantive-me fiel à cor das rosas que a mãe lhe levava pela manhã de cada 12 de Maio.
P.S. - “É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse, sabendo que algures, na noite, há homens que batem, há homens que gritam?” – escreve ainda Manuel Alegre no mesmo texto. Pego nas palavras dele para justificar o meu próprio voto em Francisco Lopes.
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