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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Aníbal Mubarak Silva – ou o coitado do paizinho

“Eu amo Mubarak. Se ele passasse agora aqui, eu beijava o chão que ele pisasse. Mas, mesmo que ele tivesse cometido erros, que fazemos quando o nosso pai erra, ou nos decepciona? Pomo-lo fora de casa?” Era nestes termos que um egípcio pró-Mubarak exteriorizava o seu desgosto pela hostilidade que os egípcios anti-Mubarak manifestavam ruidosa e pacificamente na praça Tahrir, segundo relata Paulo Moura em reportagem publicada no Público do passado dia 3.

 

Estes desabafos, reveladores de um respeito acrítico pela figura tutelar do homem providencial, põem a nu, por um lado, o infantilismo político próprio de quem ainda não matou o pai, para usar a metáfora que, em psicanálise, remete para o processo de maturação da personalidade. Se o progressivo desvanecimento da imagem idealizada do pai é inseparável da entrada na idade adulta, este manifestante parece permanecer fiel, se não ao pai biológico da sua infância, a um pai de substituição, na ocorrência político.

 

Mas creio que esta veneração pela figura tutelar anda ainda associada a laivos de religiosidade. Conforme escrevi em 24 de Janeiro de 2010, “o poder e os poderosos infundem o medo, mesmo se esse medo é mais ou menos difuso e inconsciente, e actuam sobre os míseros humanos como um sortilégio – afinal, se os poderosos o são, se exercem o poder, se podem decidir dos nossos destinos, só pode ser porque são de alguma maneira superiores a quem não detém o poder. E essa superioridade há-de vir-lhes de algures ou de alguém – quem sabe se do próprio Deus. No fundo, no fundo, estamos bem próximos de Luís XVI e dos soberanos de direito divino – a Revolução não foi assim há tanto tempo…” Por outras palavras, se o poder político é uma decorrência do poder divino, vale mais usar com ele de respeitinho e não correr riscos desnecessários.

 

Ora este comportamento não é exclusivo do egípcio que o repórter encontrou na praça Tahrir. Entre nós, ainda há bem pouco tempo, pudemos assistir a reacções semelhantes, por ocasião da campanha eleitoral para as presidenciais. Tendo a comunicação social divulgado factos relativos ao património de Cavaco Silva – incómodos para o visado –, para além de múltiplas intervenções desculpabilizantes vindas do seu entourage político (o que é compreensível), pôde também assistir-se a reacções de veneração solidária por parte de eleitores desgostosos com a denúncia dos telhados de vidro do seu ídolo. Alguns alinhavam perfeitamente com o discurso crítico da situação que o país atravessa e até com a identificação dos seus responsáveis. Excepto no momento em que a figura tutelar do professor se perfilava como um deles. Aí chegados, alto lá e pára o baile: “coitado do Cavaquinho!” Ou não dissessem as Tábuas da Lei: “Não porás o paizinho fora de casa, nem descobrirás os podres da divindade.” Ámen.

 

Imagens:

Hosni Mubarak: https://farm4.static.flickr.com/69/204746771_adb86a1efc_t.jpg

Cavaco Silva: https://farm4.static.flickr.com/3038/2630244167_71900d16d2_t.jpg