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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe

Um narrador autodiegético chamado Serapião (volto às maiúsculas nos nomes próprios porque não vejo vantagem no desrespeito da norma, a não ser que a infracção tenha valor simbólico, o que, salvo erro, não foi demonstrado), o seu pai Afonso, para quem “uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada (…), ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros”, a sua mãe, que mal falava com os filhos “porque lhe saíam coisas de mulher boca fora, e barafustar, como fazia, era encher os ouvidos dos homens com ignorâncias perigosas” (21), a irmã Brunilde, que “tinha onze anos quando foi para a casa [dos senhores] ” (22), o irmão Aldegundes, “capaz de pintar sobre madeiras as mais reais aparições” (110), uma vaca chamada Sarga, que dá o nome a toda a família (“era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que deus lhe desse” (35), dom Afonso e dona Catarina, “velha de carnes, descaída e dada às maleitas” (24), Ermesinda, “a mais bela das raparigas que existiam” (28), Teresa Diaba, que “parecia uma cadela no cio, farejando, aninhada pelos cantos das árvores e dos muros, à espera de ser surpreendida por macho que a tivesse” (34), Teodolindo, amigo com quem Serapião aprendera muito sobre “essas coisas de capturar raparigas” (34), uma mulher queimada que conhece “segredos da natureza que se desaproveitam por ignorância” (146), el-rei e Dagoberto, “um homem mirrado de tanta falta de corpo que, mais constipação lhe desse, morte certa lhe viria” (168) – eis o naipe de personagens que interagem neste esplêndido romance de valter hugo mãe (vhm, com minúsculas, pois cada um é dono de seu nome), autêntico ensaio sobre a boçalidade humana, para adoptar a designação com que Saramago crismou o seu Ensaio sobre a Cegueira, com o qual, aliás, a narrativa de vhm mantém alguma afinidade temática.

 

Não é, contudo, nesta vertente temática que centrarei esta pequena reflexão sobre o romance que acabo de ler. A esse respeito, apenas direi que as citações de que me servi para uma breve caracterização das personagens dão só uma pálida imagem da rudeza que delas é apanágio (sobretudo das masculinas). A tal ponto que se tem, por vezes, vontade de acelerar a leitura, de chegar ao fim. Não apenas pela curiosidade do enredo que tantas vezes nos assalta na leitura da ficção, mas sobretudo porque apetece abandonar rapidamente tão execrável companhia. O romance de vhm é a ilustração mais eloquente da misoginia judaico-cristã na sua versão mais boçal, uma espécie de carta de guia de casados, mas em versão totalmente alvar. E, se for verdade – como julgo ser – que muitas vezes a realidade ultrapassa a ficção, há razões de sobra para se lamentar a sorte dos seres humanos, e sobretudo das mulheres, que povoaram o planeta nas eras volvidas para que remete a temporalidade diegética, com infelizes reminiscências em eras bem mais recentes, qual seja a nossa, a julgar pelos eventos que a violência doméstica teima em fazer tema de notícia.

 

Sem desvalorizar a semântica da acção e da personagem, o que equivaleria a desprezar a substância do conteúdo (Hjelmslev), deter-me-ei em dois ou três aspectos que reputo de igualmente relevantes no romance de vhm e faço-o com o arrojo próprio dos ignorantes, que se abalançam a enunciar observações e a tirar conclusões a partir de uma leitura corrida e de uma reflexão incipiente. Assumida a culpa e actualizado o topos da humildade com que se congraça o leitor, eis os aspectos em questão:

 

1.     A linguagem

 

Diz um texto impresso na contracapa do livro: “Um romance que é também uma aventura da linguagem, ficcionando um português antigo que, não o sendo de facto, cria a ilusão de estarmos ao tempo de uma idade média tardia (…)”.

 

A linguagem de vhm neste romance é, de facto, sujeita a um processo de distorção que lhe confere uma feição de sociolecto a um tempo arcaizante e popularizante, quer no léxico, quer no agenciamento sintáctico. Apreciem-se, por exemplo, estes excertos, em que destaco a negrito as expressões que me parecem afastar-se da nossa norma:

 

“era eu, por sorte ali distinguido, um moço como outro qualquer, mas dos sargas, sem estropios do corpo nem maleitas de cabeça, escorreito nos trabalhos e incumbências, ao serviço de um grande senhor, protegido assim por deferência divina, como garantido no tempo que me restasse de vida, e assim ela se teria, guardada em asa de grande senhor, para cumprir vezes de mulher pobre mas digna de carnes e direcção.” (29)

 “(…) esperei pela voz dela que veio no momento em que fui levado a sua casa a pedir-lhe a mão. sem condição nem honrarias que me levassem ali refinado ou melhorado, o que faria senão deixar que o meu amor se notasse, há tanto fulgurado para o interior de mim e intenso para sair à brancura do seu ser. e lho disse assim, depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos outros. casai comigo formosa, tanto quanto meus olhos algum dia poderiam ver.” (49)

 

A nível sintáctico, esta toada discursiva insinua-se como eco de narrativas dos séculos XV e XVI – e penso exactamente em Fernão Lopes (ainda que sem as marcas de oralidade coloquial e de visualismo) e em Bernardim Ribeiro (sem o planger da saudade), de cujas obras transcrevo os seguintes passos:

 

“Porque se o dom da formosura, de todos muito preçado, fez a algumas ganhar perpetual nome, deste houve ela [Leonor Teles] tão gram parte, acompanhado de prazível graça, que aquela que o mais desejar pudesse seria assaz de contenta do que a natureza a ela proveu.” Fernão Lopes, Crónica de El-Rei D. João I, de Boa Memória.

 

“Arima que ia então tão formosa como o ela era, e para o que ela não cuidava, dizendo escassamente um sim, alevantou como de boamente a estas palavras a vista contra Avalor, à maneira de acrescentando o desejo ao pedido, que muitas vezes ouvira já falar dele.” Bernardim Ribeiro, Menina e Moça.

 

No domínio da morfologia, assinale-se o recurso à formação de neologismos por prefixação (desmedar, desvoados,…) e por sufixação (enganamento, p. 202), procedimentos que lembram, por vezes, a escrita de Mia Couto, e as construções estranhamente passivas (“e por isso estava mandada a chamar o nosso aldegundes”, p. 212).

 

2.     As relações com a picaresca

 

O romance picaresco, que floresceu no século XVI, particularmente com o Lazarillo de Tormes e o Guzmán de Alfarache, teve múltiplos afloramentos em narrativas posteriores de diversas literaturas. Sem pretender filiar o livro de vhm no género que celebrizou Mateo Alemán, chamo a atenção para os seguintes pontos de contacto:

a)     Forma autobiográfica, “por si só factor de realismo” (Marcel Bataillon, in “Introduction” ao Lazarillo, Aubier-Flammarion, Paris, 1968);

b)    Vagabundagem do protagonista (que, no entanto, contrariamente ao pícaro, não é criado de muitos amos, mas só de um);

c)     “Visão estreita e particular com que o pícaro enfoca a vida” (Samuel Gili y Gaya, in “Introduccíón” ao Guzmán de Alfarache, Espasa-Calpe, Madrid, 1968);

d)    “Visão da sociedade (…) fragmentária e deliberadamente limitada” (idem).

 

Se nestes aspectos a proximidade parece evidente, já a psicologia do protagonista é refractária ao espartilho do “espírito sarcástico, duro, feito só de desenganos e de negações que caracteriza o romance picaresco peninsular” (prefácio de António José Saraiva à Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1961). No romance de vhm, Baltazar, a contracorrente de uma boçalidade assumida, que se dá boa consciência, travestida de sabedoria resultante da experiência e da “deferência divina”, é capaz de sentimentos que contrariam a definição do anti-herói pícaro:

 

            “abracei meu amigo dagoberto e apontei-lhe a ermesinda como glória imensa que me tivesse saltado do coração e ele sorriu sem queixa ou suspeita perante o aspecto dela. orgulhei o peito, inchei-me de felicidade e vi bem a minha doce amada, agora tão longe e protegida de homem ou mulher que lhe desviasse corpo de meus afazeres apaixonados (…) quase senti remorsos pela firmeza da minha bondade.” (250)

 

Aliás, o discurso de Baltazar atinge por vezes um grau de elaboração e de requinte tal (entendam-se estas qualidades num quadro de inversão de valores) que faz periclitar a verosimilhança da personagem, como acontece nestes passos, onde chegam a aflorar sinais de platonismo:

 

            “(…) na cabeça das mulheres muita coisa se incompleta de raciocínio, como se a sua inteligência fosse apenas uma reminiscência da inteligência verdadeira, assim como se lembrassem de algum dia terem sabido o que isso é, mas sem o saberem realmente.” (110)

            “e ali ficava, um anjo nu e perfeito como, dizia, poderia ser o retrato da alma, o retrato de dentro.” (122)

                       

3.     O realismo mágico

 

A partir do aparecimento da mulher queimada, e sobretudo quando Baltazar e Aldegundes encetam a sua caminhada de regresso, na companhia de Dagoberto, o romance envereda por um rumo ficcional que tem alguma relação com o realismo mágico. Com efeito, as três personagens são alvo de uma feitiçaria que as condena a terem de permanecer juntas todo o tempo, sem o que tudo à sua volta se estiola:

 

“e o dagoberto apontou, de verdadeiro o que acontece é que seremos os três como um, a mexer em cada coisa sem distância dos outros, diferente disso o que houver por perto vira pernas para o ar ou cara para cu esturricando de calor.” (183)

 

Ora este dado parece-me configurar aquilo a que Selma Calazans chama “um tipo de discurso narrativo em que [realismo e magia, ou maravilhoso] se misturam sem solução de continuidade e sem criar tensão (como acontece no género vizinho, o fantástico).” (Dicionário Electrónico de Termos Literários, www.edtl.com.pt). O que, a confirmar-se a pertinência da minha observação, colocaria vhm no lote de escritores pós-modernistas [entre os quais Saramago] que, num contexto histórico totalmente diverso daquele em que floresceu o realismo mágico latino-americano, “ usam as possibilidades de transgressão que o realismo mágico abriu para a ficção e o fazem bem, porém dentro de um novo esquema de pensamento. Pois o realismo mágico mesmo surgiu numa época extremamente utópica (e em nada pós-moderna) e traz no discurso as suas marcas.” (ibidem)

 

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