Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

...

 

3.ª PARTE

CONCLUSÃO

 

O levantamento operado na farsa Quem tem farelos? e em La vida de Lazarillo de Tormes, segundo as três linhas de orientação definidas como sendo “a fome”, “as opiniões valorativas do moço sobre o escudeiro” e “a honra” parece-me demonstrar, pelo menos, três coisas:

 

1.º, que a parelha literária é historicamente verosímil, que o decoro foi respeitado, que a sua caracterização cabe dentro dos parâmetros definidos pelos historiadores, poetas e críticos (16);

 

2.º, que as relações entre o moço e o escudeiro, se bem que determinadas por factores económicos equivalentes, diferem profundamente, levando as da narrativa espanhola a palma da amizade e da compreensão;

 

3.º, que a farsa, ainda que anterior à narrativa apontada comummente como ponto de partida do género picaresco, se revela, quando observada especialmente do lado das relações sociais e da caracterização do moço, mais intensamente picaresca;

 

Não me deterei nas duas primeiras ilações, que me parecem amplamente demonstradas. Quanto à terceira, há que explicitá-la.

 

Vimos que La Vida de Lazarillo de Tormes aparece em meados do século XVI numa Espanha que, apesar das contradições assinaladas, consegue impor uma imagem de poder e de grandeza sob o báculo do grande pastor, o Imperador Carlos V. No entanto, o sonho de glória e a política universalista algum tempo acarinhada começam a desvanecer-se perante a banca-rota de 1557, provocada pelos gastos enormes em mercenários e cortes de vice-reis, seguida mais tarde pela derrota da Armada Invencível (1588) e pela revolta e subsequente secessão dos Países Baixos. Neste contexto, a tonalidade levemente pessimista da obra pode ser sentida como o reflexo da decomposição dos sonhos de grandeza, que lavrava, e a oposição moço / escudeiro como o tratamento literário da contradição económico-social entre o velho mundo cavaleiresco da Espanha medieval (encarnado pelo escudeiro) e o novo mundo burguês, decididamente voltado para o lado concreto da vida e empenhado em aproveitar as  as potencialidades materiais  (encarnado pelo moço). O facto de o moço aparecer na narrativa socialmente subjugado pelo escudeiro é mais um indício de que as estruturas da Espanha medieval pesavam ainda grandemente sobre os germes de modernização. Mas a filosofia prática e a ironia temperada de Lázaro são também indícios de que a burguesia  se afirma confiante no seu desenvolvimento. Não se afigura pertinente, por outro lado, assimilar uma narrativa em que o pessimismo e a sátira se manifestam tão moderadamente com o desencanto profundamente enraizado das novelas picarescas do século XVII, em que o criado, de positivista passa a cínico, atitude esta que tra­duz a descrença nos valores humanos que impregna o barroco. Acontece que é o Guzmán de Alfarache, publicado no último ano de Quinhentos, que vem a ser cha­mado o Pícaro, por antonomásia, consagrando o aspecto infra-humano, a visão fragmentária da vida (enfoque exclusivo do pícaro) e a frieza sentimental como características def­inidoras do termo e do tipo social. Assim sendo, se tivermos presentes os levantamentos operados comparativamente na farsa e na novela, não podemos deixar de concluir que a primeira se apresenta, pela atitude do moço perante a vida e o amo, mais intensamente picaresca. Como afirma Gili y Gaya, “el picarismo es una actitud ante la vida más que un género literario definible por el asunto o por otros caracteres  externos […]. De aquí resulta una restricción y al mismo tiempo una ampliación del concepto de lo picaresco. Restricción en el sentido de que sólo serán picarescas las obras o los momentos de una obra en que el autor ponga de relievo la visión estrecha y particular con que el pícaro enfoca la vida. Ampliación enquanto pensemos que la actitud  picaresca, profundamente humana, rebasa los límites de nuestra novela del siglo de oro, penetrando en otras épocas y géneros literarios.” (17)

 

 

 

 

 

NOTAS:

  1. Vide Tratado I, p. 86: “mi madre me encomendo a él, diciéndole como era hijo de un buen hombre, el cual, por ensalzar la fé, había muerto en la de Gelves [expedição a Djerba em 1520]”; Tratado III, p. 142: “Y fue, como el año en esta tierra fuese estéril de pan, acordaron el ayuntamiento que todos los pobres extranjeros se fuesen de la ciudad, con pregón que el que de allí adelante topasen fuese punido con azotes” (estas expulsões ocorreram entre 1540 e 1550; Tratado VII, p. 170: “Esto fue el mesmo año que nuestro victorioso Emperador en esta insigne ciudad de Toledo entró, y tuvo en ella Cortes [1539].”
  2. Podemos apontar-lhe antecedentes na época latina (O Satyricon, de Petrónio, e O Asno de Ouro, de Apuleio), assim como na Idade Média (Roman de RenartFabliauxLibro de Buen Amor, do Arcipreste de Hita, …)
  3. A Estrutura do Romance, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva
  4. Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores, Lx.ª, 1972, p. 324
  5. Introdução de M. Bataillon à edição citada do Lazarillo, p. 28
  6. Idem, p. 27
  7. É curioso notar o termo “lazeira”, já que a busca da sua etimologia nos levaria, segundo o dicionário, até Lázaro. Lázaro miserável, Lázaro mendigo, foi pois, tudo leva a crer personagem folclórica, antes de entrar na literatura.
  8. “… sachons admirer que la solitude conventionnelle de Lazare en face de ses deux premiers maîtres ait eu pour suite le tête-à-tête vrai avec le troisième, dans la solitaire « maison sans meubles ». Marcel Bataillon, Introdução ao Lazarillo de Tormes, ed. citada, p. 42
  9. Samuel Gili y Gaya, ‘Introducción' ao Guzmán de Alfarache, ed. Espasa-Calpe, Madrid, 1968, pp.11/12
  10. Lázaro habla de sus amos con alegre vivacidad de muchacho, a veces hasta con simpatía, tomando sus defectos como motivo de regocijo y sin recargar demasiado las tintas sombrías de la sátira, Samuel Gili y Gaya, op.cit., p. 11
  11. Samuel Gili y Gaya, i bidem, p. 9: "Los graciosos del teatro clásico […] en au papel de contrafiguras del héroe, de llamadas constantes de la realidad destinadas a limitar los ensueños del caballero a quien sirven, llegan a veces muy cerca de la psicología del pícaro.”
  12. , na p.9 deste trabalho, a citação de MarceI Bataillon.
  13. 1.ª Parte, item 4.1.
  14. “Honra, expressão com que nesta época (século XV) se designava não só o lustre social, mas também os meios materiais com que ele se sustenta” António José saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, vol. 2, p. 267
  15. p. 16 deste trabalho
  16. Ver 1.ª Parte, pontos 4. e 5.
  17. Samuel Gili y Gaya, ibidem, p.9

 

BIBLIOGRAFIA

  • Anónimo, La Vida de Lazarillo de Tormes, edição bilingue (espanhol-francês), Aubier-Flammarion
  • Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, Ulmeiro
  • António José Saraiva, Para a História da cultura em Portugal, vol. II, Europa-América
  • Gil Vicente, Obras Completas, vol. V, Sá da Costa
  • Mateo Alemán, Guzmán de Alfarache, com Introdução de Samuel Gili y Gaya, Espasa-Calpe
  • Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores
  • Pierre Vilar, Histoire de l’Espagne, collection Que sais-je?, PUF
  • Vítor Manuel de Aguiar e Silva, A Estrutura do Romance, Almedina

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.