Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A corja

 

 

“O abade, lidas as duas notícias vindas no mesmo correio, expectorou uma palavra obscena, muito repreensível, mas única em língua de homens, adequada ao assunto. Depois, repetiu o vocábulo desobstruente seis vezes, carregando muito nos rr, e ficou mais aliviado. Há exclamações que laxam a alma, que a descarregam das opilações timpaníticas.”
Camilo Castelo Branco, A Corja
 
Recebo com muita frequência emails de amigos com denúncias de situações que perturbam qualquer cidadão cujo sentido de justiça e de moralidade não esteja definitivamente embotado. São denúncias inflamadas, demonstrativas de que a capacidade de nos indignarmos ainda está viva, maugrado os tratos de polé a que tem sido sujeita. Alguns exemplos:
Um email intitulado “Realidade escandalosa” informa que Inês de Medeiros, deputada do Partido Socialista pelo Círculo de Lisboa, tem residência em Paris. Por esse motivo, recebe diariamente da Assembleia da República, ou seja, dos contribuintes que somos todos nós, 528€ de ajudas de custo. Além desta “ajuda de custo”, tem direito ainda a uma viagem de ida e volta a Paris todos os fins-de-semana. Algumas expressões de emotividade do email: “COMO É POSSÍVEL ACEITAR-SE ISTO! E assim a corja vai somando lucros fáceis... ACORDEM PORRRA!”
Num outro, intitulado “Mais uma golpada”, diz-se que Jorge Viegas Vasconcelos, que era presidente da ERSE, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, recebia 18 mil euros mensais, ou seja, mais de 120 contos por dia, sem contar o subsídio de férias, o subsídio de Natal e as ajudas de custo. Ora o senhor pediu a demissão do seu cargo porque, segundo consta, queria que os aumentos da electricidade ainda fossem maiores. Em consequência deste pedido, Jorge Vasconcelos vai para casa com 12 mil euros por mês - ou seja, 2.400 contos - durante o máximo de dois anos, até encontrar um novo emprego. Estranho, uma vez que o senhor se despediu por sua própria iniciativa? Não tanto. Segundo esclarece o Ministério da Economia, «o regime aplicado aos membros do conselho de administração da ERSE foi aprovado pela própria ERSE» e, «de acordo com o artigo 28 dos Estatutos da ERSE, os membros do conselho de administração estão sujeitos ao estatuto do gestor público em tudo o que não resultar desses estatutos».  Ou seja, sempre que os estatutos da ERSE forem mais vantajosos para os seus gestores, o estatuto de gestor público não se aplica.  “O senhor Vasconcelos (que era presidente da ERSE desde a sua fundação) e os seus amigos do conselho de administração, apesar de terem o estatuto de gestores públicos, criaram um esquema ainda mais vantajoso para si próprios, como seja, por exemplo, ficarem com um ordenado milionário quando resolverem demitir-se dos seus cargos. Com a bênção avalizadora, é claro, dos nossos excelsos governantes.” E o autor do texto remata com estas perguntas e sugestão: “Até quando o povo português, cumprindo o seu papel de pachorrento bovino, aguentará tão pesada canga? E tão descarado gozo? Políticas à parte, estou em crer que perante esta e outras, só falta mesmo manifestarmos a nossa total indignação.” Mas políticas à parte porquê, amigo? Não será isto o resultado de opções políticas feitas por responsáveis políticos?
Silva Lopes, de 77 anos de idade – informa um terceiro email –, é beneficiário de pantagruélicas reformas, uma das quais do Banco de Portugal, de que foi governador, e saiu há pouco do Montepio Geral, com uma “indemnização” de mais de 400.000€. Pois, apesar da sua provecta idade, longe de ir para casa gozar um merecido descanso, foi agora nomeado administrador da EDP Renováveis, o que lhe permitirá arredondar a modesta conta bancária. “Silva Lopes foi o tal que afirmou ser necessário o congelamento de salários e o não aumento do salário mínimo nacional, por causa da competitividade da economia portuguesa.” “Quanto a FERNANDO GOMES, mais um comissário político, recebeu em 2008, como administrador da GALP, mais de 4 milhões de euros de remunerações. Acresce a isto um PPR de 90.000 euros anuais, para quando o "comissário" for para a reforma.” “Estes senhores (senhores?!) não têm vergonha na cara!!!” – desabafa o autor.
Não recebi até hoje nenhum email sobre os 2 milhões de euros anuais que o prometedor jovem Rui Pedro Soares estava a ganhar na PT. Estava e, se calhar, ainda está. Como Armando Vara, que nunca deixou de receber o seu vencimento na CGD. Sobre ele, escreveu Ana Gomes, citada por José Manuel Fernandes no Público de 19 de Fevereiro passado: “um boy sem cv que aos 32 anos foi alçado a administrador executivo da PT pelo Estado, a ganhar escandalosamente mais num ano do que o meu marido ganhou em toda a vida, ao longo de 40 anos como servidor do Estado nos mais altos escalões”. Eu, que acho a bitola do salário mínimo nacional bastante mais representativa da nossa realidade do que o vencimento do marido da senhora, diria, feitas as contas, que o portento (e maravilha fatal da nossa idade) saído da Juventude Socialista – esse mesmo partido a que a senhora se mantém apegada – ganha mais num ano do que um trabalhador com o s.m.n. ganharia em 4000 anos (se não fora, para tão longo sofrimento, tão curta a vida…).
Mas se Rui Pedro Soares ganha 2 milhões, quanto não ganharão Granadeiro e Zeinal Bava e os Penedos pai e filho, e tantos outros Soares e Granadeiros e Bavas e Lopes e Penedos e Ulrichs e Silvas que medram por esse país fora, qual polvo gigante, mais ou menos indiferentes à pobreza e à infelicidade de tantos e tantos milhares de concidadãos? Aliás – pior do que indiferentes – cinicamente escarninhos dessa pobreza e infelicidade, ou não se dessem ao luxo suplementar de alvitrar congelamentos quando não descidas de salários desses mesmos concidadãos. Tudo isto num país com 2 milhões de pobres, de smn a menos de 500€, de mais de meio milhão de desempregados, a maioria dos quais sem direito a subsídio de desemprego. Eles proliferam nesse caldo de cultura perfeito cujos ingredientes são os grandes grupos económicos, por um lado, e as empresas público-privadas e os partidos do chamado arco do poder, por outro. Arco do poder – expressão curiosa pelas virtualidades significativas: se remete para a imagem pagã de Cupido alvejando corações desprevenidos, é antes a desgraça dos povos que este arco tem em mira e, com igual propriedade, lhe poderíamos chamar círculo, em vez de arco – círculo de amigos.
E ainda há quem se queixe dos malandros que recebem o rendimento mínimo.

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.