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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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A autocensura jornalística no “caso” de Gaza

Estive agarrado à Antena 1, esta manhã, durante quase duas horas, entre as 10 e tal e o meio-dia menos pouco.

Num painel constituído por Miguel Szimanski (jornalista e escritor), José Manuel Rosendo (jornalista da RTP), Raul Manarte (psicólogo, activista dos direitos humanos, etc.), João Antunes (Médicos Sem Fronteiras) Manuel Serrano e Ana Cavalieri (ambos comentadores), sobre a situação vivida nos territórios palestinianos e, em particular, Gaza, ficaram bem patentes, por um lado, a divergência de perspectivas dos primeiros em relação a Ana Cavalieri; por outro, a adaptação do registo discursivo a que se obrigam jornalistas e comentadores, consoante de encontram num debate radiofónico ou nas suas intervenções televisivas. Pelo menos, no que toca a Szimanski, Rosendo e até, talvez, Antunes (dos outros, não tenho lembrança).

Quanto à divergência de perspectivas, de tão evidente, pouco haverá a dizer. Enquanto todos denunciavam acerbamente o genocídio em curso em Gaza, a pesarosa (…) complacência das democracias europeias e norte-americana e a imperiosa necessidade de pôr um termo à carnificina, Ana Cavalieri repetia incessantemente a toada do terrorismo e dos terroristas do Hamas, co-responsáveis pelos danos colaterais da política de defesa do governo de Netanyahu. Irmã gémea de Helena Ferro de Gouveia, ainda que menos imponente (aqui está algo que denuncia uma certa misoginia da minha parte e que me expõe ao risco de apanhar com um copo de água no frontispício!), Cavalieri debitou, com a proficiência própria de uma doutoranda em Ciência Política, o discurso formatado pelas Universidades que frequentou ou frequenta.

Porém, o que mais me impressionou foi a acutilância usada pelos demais na condenação inequívoca quer do governo de Israel, quer da passividade dos governos “ocidentais”, salvo raras excepções. Parêntesis: aqui, ocorre-me a imagem exaltante de Paulo Rangel na fronteira colombo-venezuelana, em Fevereiro de 2019, dando apoio ao autoproclamado Presidente interino, Juan Guaidó, e aos pobres Venezuelanos em trânsito na Ponte Internacional Simón Bolívar, intensamente bombardeada pela aviação e artilharia pesada sob as ordens de Nicolás Maduro. Os dentes daquele Rangel rangiam de indignação perante a ignominiosa barbárie bolivariana; já não rangem, que perderam o esmalte. Fim do parêntesis.

Quando os ouço e vejo na TV, percebo (mais com uns do que com outros; mais com Szimanski do que com Rosendo, por exemplo) que condenam a acção inqualificável do governo sionista. Mas fazem-no com luvas de veludo, de modo a não machucar com aspereza a sensibilidade dos tele-espectadores, do Conselho de Administração e do Ministro da pasta. Na rádio, apesar de pertencente aos mesmos patrões, abriram as comportas, sem dizer água-vai. Resultado: fiquei agarrado à rádio.

Enfim, tudo isto para dizer que o lápis azul daquela sacro-santa instituição se salazarenta descorou, porque foi metabolizado e está hoje dentro das nossas cabeças, sempre pronto a adaptar o nosso discurso à circunstância, e dando razão, mais uma vez, a Ortega, que parafraseio: o comentador é ele mais a circunstância em que comenta.