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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A ciência, um bule de chá, Deus e outras minudências (resposta a um post do site Freud & Nietzsche)

Suponho que as definições de ciência dadas pelos dicionários e pelos compêndios escolares dirão todas mais ou menos isto: conhecimento obtido a partir da observação e da experimentação. A observação, só, não chega: os nossos antepassados observavam a Terra e achavam-na plana (alguns nossos contemporâneos parece terem ainda essa crença), ainda que muitos já tivessem percebido que não era assim, muito antes da viagem de circum-navegação, que foi uma espécie de experimentação.

Peter Atkins, autor do interessante (e difícil) livro “Como surgiu o universo” (Gradiva), escreve o seguinte, a este respeito: «A ciência é severa: uma única consequência que entre em conflito com a observação basta para condenar uma hipótese à enorme sucata de ideias inúteis da História que se foi acumulando ao longo dos tempos; uma única consequência verificada mais não é do que um incentivo para perseverar na demanda, e não uma garantia de validade. As hipóteses amadurecem tornando-se teorias, à medida que as suas implicações – e nalguns casos previsões – se multiplicam e conformam com a observação, mas mesmo uma teoria que tenha sobrevivido até uma meia-idade confortável pode ser condenada por uma única consequência falsa.

Todas as ideias, em ciência, vivem na precariedade.» (p. 45)

Subscrevo inteiramente esta “descrição” e acrescento que a falibilidade, em ciência, é sinónima, ou factor, de credibilidade. Nada mais contrário à crença religiosa, cuja irracionalidade Tertuliano (pelo menos, é a ele que a frase é, geralmente, atribuída) assumiu com absoluta clareza: “credo quia absurdum”. Eu acredito na ciência porque sei que ela é falível e tem a honestidade de mo dizer, do mesmo modo que confio no médico que me diz receitar-me determinado medicamento ou propor-me certa cirurgia por estar esperançado, tendo em conta a sua experiência, de que resulte comigo. Pode não resultar? Pode. Mas a alternativa (sofrer indefinidamente ou morrer) não é satisfatória. Estando eu debilitado, se ele me prescrevesse uma sangria (como se fazia in illo tempore, e não me refiro à bebida com o mesmo nome), estaria, no fundo, a imitar Tertuliano: acredito que isto o vai curar porque é absurdo.

O que acontece com a “neurose obsessiva universal” (designação que, como saberá, Freud deu à religião, sendo que a vulgar neurose de qualquer um de nós é uma espécie de “religião individual”) é que me pede que acredite porque sim: Deus existe porque só assim se entende a existência do universo e, como somos todos pecadores, há que expiar os nossos pecados, batendo no peito, rezando muito, fazendo penitência, pagando o dízimo ou a indulgência. Enfim, não me alongarei, pois sabe isso tão bem ou melhor do que eu. O que também saberá é que Freud explicou a origem de tudo isto muito bem explicado em textos como “Totem e Tabu”, “Moisés e o Monoteísmo”, “Actos Obsessivos e Práticas Religiosas”, “O Futuro de uma Ilusão”. Obras que também nos permitem compreender a importância das crenças religiosas em geral para uma grande parte da humanidade, que, privada de mitos e fantasias, e não lhe bastando os contos de fadas infantis ou a ficção romanesca, talvez não aguentasse o impacto permanente de uma realidade nem sempre agradável. Quem escreve seriamente sobre isto, também, é Edgar Morin, que cito:

«A formidável colonização da vida humana pelo mito, pela magia, pela religião, testemunha a amplitude e a profundidade de uma solução neurótica, sem a qual a humanidade talvez não tivesse sobrevivido. A fórmula de T. S. Eliot ainda não deixou de ser verdadeira: «human kind cannot bear very much reality» (o género humano não pode suportar muita realidade).» (“O Paradigma Perdido”)

Igualmente com uma posição clara a este respeito, os materialistas dialécticos nunca isolam os aspectos “espirituais” dos puramente materiais. Eles sabem (como os existencialistas ateus) que a existência precede a essência, ou seja, que a infra-estrutura material, o ser social, é determinante, em última análise, da super-estrutura (consciência, ideias, crenças,…). Pragmaticamente, reconhecem que não é aconselhável retirar aos trabalhadores o ópio religioso que lhes alivia os sofrimentos corporais e sociais sem antes criar condições que lhes permitam encarar confiantemente o futuro cuja construção lhes incumbe. Cito Lénine: «(…) o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo económico que existe dentro da sociedade. Não é com nenhuns livros nem com nenhuma propaganda que se pode esclarecer o proletariado se não o esclarecer a sua própria luta contra as forças negras do capitalismo. A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.» (“O Socialismo e a Religião”)

Mas o Gabriel Meiller é agnóstico. O que me surpreende em alguém que escreve no site Freud & Nietzsche, porque Freud era ateu, e Nietzsche, para além de ter matado Deus, desancou o cristianismo e todas as suas fantasias de forma violentíssima, para não dizer tresloucada, porque entre Freud e Nietzsche vai uma distância enorme, em termos de postura intelectual: o método de Freud é estritamente científico, e ele sublinha, vezes sem conta, a sua eventual falibilidade, as suas fontes, o cuidado que põe nas conclusões que tira; Nietzsche, pelo contrário, e sem contestar a sua genialidade, é torrencial, aforístico, profeta, parece aspirar a ser o deus que nega, em suma, é um propagandista. Sabemos da sua formação filológica e também da sua hereditariedade, educação, convívios, doenças, etc. Enfim, creio que nenhum deles acataria o seu relativismo conceptual, isto é, a ideia da incapacidade humana para “decidir” sobre a existência ou não existência de Deus.

O mesmo Peter Atkins que citei acima sobre o método científico, escreve isto: «O funcionamento do mundo foi, por alguns, atribuído a um Criador espantosamente metediço, mas incorpóreo, a guiar activamente cada electrão, quark e fotão até aos respectivos destinos. As minhas entranhas revolvem-se perante esta visão extravagante do funcionamento do mundo e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas.»

Cientista, Atkins não alimenta pruridos pretensamente filosóficos que, apoiando-se na falibilidade do conhecimento científico, acabam por legitimar qualquer embuste, pondo-o em pé de igualdade com aquilo que paulatinamente se vai sabendo com alguma segurança. Como tudo nos é dado pelos sentidos, a dúvida sobre a fiabilidade das impressões sensoriais levou, como sabe, a filosofia idealista a negar até a própria existência da matéria (Berkeley).

Quanto à impossibilidade de provar a inexistência de Deus, que diabo!!!, há imensas coisas que nós somos incapazes de provar sem que isso prove que elas existem. Conhece a parábola do bule de chá de Bertrand Russell? Não a transcrevo aqui para não me alongar ainda mais, mas pode lê-la na Wikipedia ou em “A Desilusão de Deus”, de Richard Dawkins. Muito resumidamente (a parábola tem outros desenvolvimentos): se me disserem, a mim ou a si, que, entre a Terra e Marte, há um bule de chá muito pequeno, em órbita, nenhum de nós será capaz de provar que não é verdade. Pela parte que me toca, recuso liminarmente a ideia absurda; o agnóstico sente-se na obrigação de provar que não há um bule de chá em órbita.

O cepticismo e a crítica da ciência – volta e meia, em moda nos círculos intelectuais – mais não fazem do que retirar legitimidade àquilo que se sabe (de ciência certa, passe a contradição com a já esclarecida relatividade da verdade…). Quanto aos argumentos da antiguidade e da universalidade, em matéria religiosa (a humanidade, desde sempre, acreditou; quem és tu, ateu, para duvidares daquilo em que a humanidade acredita?), o anarquista Bakunine, em “Deus e o Estado”, dá uma resposta eloquente. Não a resumo aqui, mas bastará recordar Galileu, para se ter uma pequena ideia da justeza das crenças da humanidade.

E, por falar em Galileu, cito um episódio que Stephen Hawking relata na sua “Breve História do Tempo”: em 1981, por ocasião de uma conferência organizada pelos Jesuítas no Vaticano, para a qual foram convidados vários especialistas em cosmologia e tendo como pano de fundo o “arrependimento” pela condenação de Galileu e da teoria heliocêntrica, aconteceu que

«No fim da conferência os participantes foram recebidos em audiência pelo papa, que lhes disse que estava certo estudarem a evolução do universo desde o big bang, mas que não deviam inquirir acerca da natureza do big bang, porque tinha sido o momento da criação e, portanto, trabalho de Deus.»

O que satisfez Hawking foi o papa ter ignorado a sua contribuição para a conferência. É que

«a possibilidade de o espaço-tempo ser finito, mas ilimitado […] significaria que não tinha tido um princípio e que não havia qualquer momento de criação.»

E conclui:

«Não tinha qualquer desejo de partilhar a sorte de Galileu, com quem me sinto fortemente identificado, em parte devido à coincidência de ter nascido exactamente trezentos anos depois da sua morte!»