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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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A impostura religiosa e a caridade cristã

Li, há dias, dois «opúsculos blasfemos» chamados A Arte de Não Acreditar em Nada, e Livro dos Três Impostores, editados em conjunto pela Antígona. O primeiro data da segunda metade do século XVI e “levou o seu autor, Geoffroy Vallée, em 1574, a ser enforcado em praça pública e queimado ainda vivo» (reproduzo aqui o texto da badana), partilhando assim a sorte de Giordano Bruno, sorte essa a que Copérnico e Galileu escaparam por pouco; o segundo, de autor anónimo, é anterior, provavelmente medieval, e chegou-nos em duas versões algo distintas, uma do século XVII e outra do século XVIII. Estes impostores são «um pastor (Moisés), um curandeiro (Jesus) e um cameleiro (Maomé)», violentamente invectivados e desmitificados, numa Idade Média que suporíamos ao abrigo de tal despautério…

Sabemos que o catolicismo feudal foi progressivamente posto à prova pela heresia protestante da burguesia ascendente, mas aquilo que a Reforma comportou de positivo, em termos de mitigação dos excessos, da corrupção e do obscurantismo da Igreja de Roma não chega para a indultar. Aliás, ao assumir a defesa intransigente dos príncipes alemães na luta que os camponeses travaram contra eles, na primeira metade do século XVI, e dando os últimos como merecedores da morte “em corpo e alma” (1), Lutero não se revela propriamente um grande exemplo de caridade cristã. O que também não é de estranhar: ele mais não faz do que seguir o ensinamento de Paulo, que nos insta a respeitar e a temer as “potestades” (autoridades), «porque o príncipe é ministro de Deus para bem teu. Mas se obrares mal, teme; porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus, vingador em ira contra aquele que obra mal.» (Epístola aos Romanos XIII, 1-4). Por acréscimo, o autor das teses de ԝittenberg, cinde o homem em dois, o “interior” e o “exterior”, maneira expedita de justificar todas as desigualdades, pois estava criada uma “moral dupla”, com “a liberdade adstrita à esfera ‘interior’ da pessoa” (Marcuse). Mas, para não nos ficarmos pelos prosélitos, não é o próprio fundador do cristianismo quem exorta aqueles que o quiserem seguir a “aborrecer” pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e a própria vida (Lucas, XIV, 26)? A expressão “caridade cristã” talvez devesse ser usada como exemplo de oxímoro, e, quanto a bondade, adesão à verdade e à realidade, progressismo, etc., de católicos e de protestantes (2), estamos conversados, o mesmo se podendo dizer das outras religiões do Livro. Curandeiro, pastor e cameleiro, como é comum entre impostores, foram altamente eficazes na inculcação das suas mensagens.

 (1) Martín Lutero, «Contra las hordas ladronas y asesinas de los campesinos», 1525

(2) Veja-se o comportamento actual das diferentes Igrejas, capelas e seitas protestantes, nomeadamente nos USA e no Brasil,