Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DAS CRENÇAS RELIGIOSAS – Natureza e poder da religião

“O funcionamento do mundo foi por alguns atribuído a um Criador espantosamente metediço, mas incorpóreo, a guiar activamente cada electrão, quark e fotão até aos respectivos destinos. As minhas entranhas revolvem-se perante esta visão extravagante do funcionamento do mundo e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas.”

Peter Atkins, Como Surgiu o Universo, Gradiva, 2018, p. 7

“Seria um absurdo pensar que, numa sociedade baseada na opressão e embrutecimento infindáveis das massas operárias, se pode, puramente por meio da propaganda, dissipar os preconceitos religiosos. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo económico que existe dentro da sociedade. Não é com nenhuns livros nem com nenhuma propaganda que se pode esclarecer o proletariado se não o esclarecer a sua própria luta contra as forças negras do capitalismo. A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.”

Lénine, O Socialismo e a Religião, https://www.marxists.org/

 

  1. Prolegómenos (um sobrevoo histórico)

Apesar do absurdo que consiste em acreditar na existência de um ser infinitamente perfeito que tudo criou, dispensando ele próprio um criador, a teodiceia regurgita de pretensas provas da existência de Deus. A prova ontológica de Santo Anselmo (séc. XI) diz mais ou menos isto: se pensamos num ser infinitamente perfeito, então ele existe mesmo, ou não seria infinitamente perfeito (a ideia de perfeição implica a sua existência). As provas cosmológicas (de Tomás de Aquino, séc. XIII) – assentes, entre outras premissas de igual ligeireza, na necessidade de uma causa primeira – e as causas morais, que apontam para as aspirações da alma ou para a experiência mística de alguns nomes grados da Igreja, são todas elas exemplos acabados de falácias que se poderiam resumir a isto: Deus existe porque sim. Algo há, todavia, que estas provas provariam mesmo, se necessário fosse: a capacidade que alguns homens têm para as mais arrevesadas explicações e a irrefreável propensão de todos nós para a fantasia.[1]

Não é o sentimento religioso em geral que me revolve as entranhas e a cabeça, para usar as palavras de Peter Atkins; apenas a religião. Exactamente: nada contra o adjectivo; tudo contra o substantivo. Que uns tantos amigos reunidos para celebrar uma efeméride se sintam irmanados, em comunhão, “religados”[2], solidários, unidos entre eles pelo pensamento, pelos sentimentos, pelas emoções, que o sentimento de pertença de cada um ao colectivo resulte intensificado pela presença do grupo – nada a opor, essa religiosidade horizontal e laica apraz-me; que alguém preste uma homenagem sentida a um ente querido que perdeu e dê livre curso à sua emoção, a ponto de se lhe dirigir como se essa comunicação ainda fosse possível – compreendo-o e solidarizo-me; que alguém imagine uma dimensão acima do natural, transcendente à do universo material em que nos movemos e em que tudo se move, vislumbre lá um ser infinitamente perfeito que tudo teria criado, se prostre de joelhos e subordine a sua vida a essa crença, isso desgosta-me. E se, na luta por um mundo melhor, é crucial a participação do maior número de explorados e oprimidos, sejam eles crentes ou não crentes, não menos importante é a luta contra a confrangedora ganga de ignorância e ingenuidade ainda apanágio da espécie. Em última análise, chegará sempre o momento em que o detentor de uma visão científica do universo se sentirá constrangido na presença de um companheiro de luta a quem “não basta ver que um jardim é belo sem ter de acreditar que lá ao fundo também esconde fadas”[3]

 Num primeiro curto capítulo, que precede a própria Introdução, do excelente ensaio O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões[4], Mircea Eliade repertoria sucintamente o interesse pela História e origens das religiões que, ao longo dos tempos, foi sendo manifestado pelos pensadores, desde o remoto século de Péricles (V antes de Cristo), com Heródoto, Parménides e Empédocles, até Freud, um pouco mais perto de nós. Aprendemos em Eliade que, para Parménides, “os deuses eram a personificação das forças da Natureza” e que “Aristóteles (384-322) foi o primeiro a formular de uma maneira sistemática a teoria da degenerescência religiosa da Humanidade. As conquistas de Alexandre, o Grande (356-323), facultaram aos escritores gregos o conhecimento directo e a descrição das tradições religiosas dos povos orientais, isto é, o conhecimento de “um grande número de mitos, ritos e costumes religiosos exóticos”. Tais conhecimentos terão permitido a Epicuro (341-270) empreender “uma crítica radical da religião: segundo Epicuro, o «consenso universal» prova que os deuses existem, mas Epicuro considera-os seres superiores e longínquos sem nenhuma relação com os homens”[5]. Segundo François Châtelet, estes deuses comportar-se-iam de modo muito semelhante a um grupo de bons amigos apreciadores de um convívio são:

“Ocupados a conversar entre si e encontrando nesta troca a mais pura alegria, os deuses não se preocupam nem com os homens nem com o mundo: não há, pois, Providência. […] a existência divina toda feita de alegria, de amizade e de contemplação, exerce em Epicuro a função de um ideal, de um princípio regulador para a existência humana.”[6]

 

Já no fim da Antiguidade, “segundo os estóicos, os mitos revelam visões filosóficas sobre a natureza profunda das coisas, ou contêm lições de moral. Os múltiplos nomes dos deuses designam uma só divindade, e todas as religiões exprimem a mesma verdade fundamental; só varia a terminologia.” Ultrapassado o teocentrismo medieval (e para abreviar), no Renascimento, “os humanistas supunham que existia uma tradição comum a todas as religiões e que o conhecimento desta bastava para a salvação, e que, em suma, todas as religiões se equivalem”. No século XIX, os conhecimentos alcançados nos domínios do orientalismo, da filologia indo-europeia e da linguística comparada proporcionam grande impulso da História das Religiões, com Max Muller, que “explica a criação dos mitos pelos fenómenos naturais, sobretudo as Epifanias do Sol, e o nascimento dos deuses por uma ‘doença da linguagem’: o que, originariamente, não passava de um nome, ‘nomen’, torna-se numa divindade, ‘numen’.” Pouco depois de Muller, E. B. Tylor escreve: “para o homem primitivo, tudo é dotado de uma alma, e esta crença fundamental e universal não só explicaria o culto dos mortos e dos antepassados, mas também o nascimento dos deuses.”[7] Nos finais do século XIX e no século XX, “William James e Sigmund Freud propuseram explicações psicológicas da religião”.

Não se tratando de colmatar lacunas de Eliade, quanto mais não fosse porque não são historiadores da religião, impõem-se algumas referências a autores que se debruçaram sobre a problemática da religião e do sentimento religioso. Alguns deles fizeram-no acidentalmente, porque o seu percurso ficcional os levou uma ou outra vez por esses caminhos; outros fizeram-no porque o âmbito dos seus estudos abarcava as actividades humanas e as circunstâncias em que elas se desenvolvem. Entre estes últimos, citarei demoradamente teorizadores do materialismo dialéctico e o pai da psicanálise[8], cujos contributos para a compreensão do fenómeno religioso são de natureza diversa – essencialmente socioeconómicos, uns, psicológicos, os outros – mas creio que amplamente convergentes, abstraindo aqui da complexa relação entre marxismo e psicanálise, precisamente pelo motivo apontado[9]. Mas comecemos pelo Século das Luzes, época de ruptura epistemológica na história do conhecimento.

No Século XVIII, as posições ideológicas dos Enciclopedistas vão do ateísmo materialista de Diderot e d’Holbach ao deísmo (crença num Ser Supremo alheado dos pequenos problemas da humanidade) de Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Apesar da sua crença deísta, para o autor das Lettres Persanes, a religião não é natural e as crenças são produtos artificiais criados pelos chefes políticos para manter o povo submisso. Voltaire, que aqui cito em segunda mão, dizia, a propósito da sua relação com Deus: “Cumprimentamo-nos, mas não nos falamos”[10]. À excepção de Rousseau, profundamente religioso, mas descrente da revelação e dos dogmas, anticlericalismo e hostilidade à religião eram o denominador comum destes homens a cujo pensamento e obras, como se sabe, a Revolução Francesa muito ficou a dever.

Teorizadores doutra revolução, também Marx e Lénine se debruçaram, como é sabido, sobre o fenómeno religioso. Escreve o primeiro, em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:

“A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade.”[11]

No mesmo sentido, como seria de esperar, Lénine escreve, em O Socialismo e a Religião:

 “A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda a parte sobre as massas populares, esmagadas pelo seu perpétuo trabalho para outros, pela miséria e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor além-túmulo como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, diabos, milagres, etc. Àquele que toda a vida trabalha e passa miséria a religião ensina a humildade e a paciência na vida terrena, consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem do trabalho alheio a religião ensina a beneficência na vida terrena, propondo-lhes uma justificação muito barata para toda a sua existência de exploradores e vendendo-lhes, a preço módico, bilhetes para a felicidade celestial.”[12]

Eça de Queirós, que, obviamente, Eliade também não cita e que, não sendo historiador, cunhou páginas deliciosas alusivas ao Génesis[13], arrisca uma explicação para o nascimento do cristianismo no não menos delicioso romance A Relíquia:

“ […] apenas anoitecesse, José “[de Ramata] e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as receitas que vêm no livro de Salomão, fazê-lo reviver do desmaio em que o deixou o vinho narcotizado e o sofrimento […] Depois de amanhã, quando acabar o Sabat, as mulheres de Galileia voltarão ao sepulcro de José de Ramata, onde deixaram Jesus sepultado… E encontram-no aberto, encontram-no vazio!... «Desapareceu, não está aqui!...» Então, Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém: «Ressuscitou, ressuscitou!» E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo e dá uma religião mais à humanidade!”

 

Por sua vez, Guerra Junqueiro, contemporâneo de Eça, refere-se assim à universalização do cristianismo:

“ «Trago-te o império do universo. Aí o tens, meu Pai!»

E o Nazareno, dizendo isto, atirou-lhe aos pés o diadema de espinhos e a cruz ensanguentada do Calvário. Jeová, que era já Deus há muito tempo, e por isso mesmo prático e utilitário, julgou a situação num relance.

Respondeu ao Filho: «Andaste bem. Chegas cansado, crivado de golpes, vai-te deitar. Amanhã falaremos. É tarde. Eu te abençoo.»

E Jeová, na cama, pensou: «Este meu Filho, como todos os grandes génios, é um idiota. Divino imbecil! Deixei-o crucificar, e ele, em recompensa, faz de mim – pobre Deus de Jerusalém – o Deus do universo inteiro!»

E ao outro dia o Padre Eterno instalou-se no Olimpo.”[14]

Não terá sido bem ao outro dia que o Padre Eterno se instalou no Olimpo, mas escassos séculos mais tarde. No romance Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar põe na boca do Imperador, sumo pontífice e objecto de culto divino (séc. II d.C.), estas palavras reveladoras de uma notável clarividência quanto à equivalência das religiões e às vicissitudes da História:

“Chábrias preocupa-se com a ideia de ver um dia o pastóforo de Mitra ou o bispo de Cristo implantar-se em Roma e substituir ali o sumo pontífice. Se por desgraça esse dia chegar, o meu sucessor ao longo da riba vaticana terá deixado de ser o chefe de um círculo de filiados ou de um bando de sectários para se tornar, por sua vez, uma das figuras universais da autoridade. Herdará os nossos palácios e os nossos arquivos; diferençar-se-á de nós menos do que poderá parecer. Aceito com calma essas vicissitudes da Roma eterna.” (251)

Como se viu, esse dia chegou, o bispo de Cristo tornou-se “uma das figuras universais da autoridade”, herdou palácios e arquivos e não se diferençou assim tanto dos antecessores.

 

  1. A apetência da ilusão, a doutrina marxista-leninista e outras abordagens

“Uma ideologia que se apodera das massas transforma-se numa força material”, diz Marx, que não circunscreve a sua asserção à natureza ou validade dessa ideologia. De facto, como ideologias, que são, também as mitologias religiosas se transformam em forças materiais, em se apoderando das massas, e “mudam a face do mundo”, como diria Eça.

A religião é ilusão, logo, uma ilusão que se apodera das massas é uma força material. Importa saber por que razão a religião se impôs desde sempre às massas e o marxismo não tanto. Isto é, as massas sempre experimentaram a “ânsia psíquica da ilusão religiosa”[15], sempre acreditaram na promessa de um ilusório paraíso post mortem, concedido por um ilusório Deus que nunca ninguém viu nem verá, salvo em alucinação, mas aderem muito mais dificilmente à proposta de construção de um paraíso na Terra que teria de ser construído por elas próprias – massas. Aparentemente, é-lhes mais fácil acreditar numa bela promessa de um ser que só pode ser imaginado do que numa hipótese consistente, assente em dados observáveis, mas decorrente de simples raciocínios de nossos semelhantes. Talvez subjaza à adesão/falta de adesão a vaga consciência de que um paraíso só pode estar associado à ideia de um ser superior, perfeito, isento das fraquezas humanas. Até porque a história divina (não, obviamente, a das religiões) é, por assim dizer, inexistente: Deus criou o Universo com tudo lá dentro, incluindo os nossos pais primordiais a quem concedeu o livre arbítrio, o que lhes permitiu comer o fruto proibido da árvore da sabedoria (em versão prometeica: roubar o fogo dos deuses), depois expulsou-os do Éden, por terem tido tal ousadia, como se a sua omnisciência não lhe tivesse já segredado que aquilo ia dar mau resultado, e, a partir de então, remeteu-se ao papel de juiz supremo dos nossos comportamentos (na visão dos teístas) ou abdicou mesmo dessa hercúlea e insana tarefa (perspectiva deísta). Já a história humana, como bem sabemos, regurgita de actos bárbaros, tantas vezes justificados pelas melhores intenções (frequentemente, religiosas!)[16], pelo que será mais acertado acreditar na promessa do primeiro, meu dissemelhante, do que na proposta ideológica dos meus semelhantes, que comigo comungam de tantas fraquezas e inferioridades.

Paralelamente, se os crentes admitem a existência de forças do mal, geralmente crismadas com nomes como Demónio, Satanás, Belzebu, Mefistófeles, Diabo, etc., forças essas que é necessário combater para acedermos ao reino dos Céus, já lhes custa aceitar que, para a construção do paraíso na Terra, se imponha a repressão daqueles que a essa construção se opõem (tempos houve em que a salvação da alma servia de justificação para todas as atrocidades) – e opõem-se-lhe porque no paraíso já eles vivem, graças ao inferno a que condenaram as massas. Estas, por sua vez, vivem na ilusão de virem um dia a entrar num paraíso etéreo com alguma semelhança com aquele onde os seus opressores desde sempre viveram, eventualmente eles próprios – opressores – esperançados na possibilidade de continuarem a usufruir de tais condições para toda a eternidade, mas indisponíveis de todo para conceder às massas o acesso ao seu paraíso, visto que tal concessão implicaria abdicar de grande parte dos seus privilégios. Parafraseando Pessoa, quase se poderia dizer:

E assim, nas calhas da roda,

gira, a entreter a razão,

esse comboio de corda

que se chama religião.

A descrição configura uma espécie de quadratura do círculo, mas, para os marxistas, aquilo que é irresolúvel nas circunstâncias em que vivemos, tem uma solução. Georges Politzer, na esteira de Marx e Lénine, di-lo de maneira singela:

“Se a religião é a ilusão de que o homem se serve num mundo em que tem necessidade de ilusões, não basta denunciar a ilusão, é necessário suprimir a necessidade de ilusões e para tal transformar o mundo.”[17]

“Transformar o mundo”, isto é, a sociedade, a organização social, o sistema político, o modo de produção. Como é natural e decorrente dos princípios basilares do materialismo dialéctico, Marx, Engels, Lénine, Politzer põem a tónica na infra-estrutura material; os marxistas não conferem, todavia, ao material a exclusividade do poder transformador, e o reconhecimento da força material da ideologia é disso prova bastante. O combate dos marxistas dirige-se, prioritariamente, à transformação das condições materiais da existência e, subsidiariamente, à transformação da consciência colectiva, pelo que seria abusivo desvalorizar ou pôr de parte aquilo a que Marx e os marxistas chamam a “crítica do Céu”. Esta terá de ser uma parte irrenunciável da “crítica da Terra”, isto é, de toda a acção que vise “ [tirar] ao homem as suas ilusões para que ele pense, aja, forme a sua própria realidade como um homem que perdeu as ilusões e atingiu a idade da razão, para que se mova à volta de si mesmo, ou seja, do seu Sol real.”[18]

De facto, a ilusão religiosa tem tal poder de condicionamento da acção humana que – por muito que se queira separar as águas e não cair num activismo anti-religioso facilmente taxável de jacobinismo ou, pior do que isso, de exacerbação crítica do poder religioso como forma de esconder a submissão aos poderes da Terra – não se vê como rebater, por exemplo, a ideia do êxito social atribuído à escolha divina (Fulano é o proprietário dos meios de produção porque Deus o bafejou e, se ele é um eleito de Deus, há que respeitá-lo e seguir-lhe o exemplo) sem desmascarar a tontice de tais concepções e a utilidade das mesmas para assegurar a reprodução de um sistema assente na exploração da força de trabalho das massas.

É ainda no romance de Marguerite Yourcenar que Adriano, imperador e sumo pontífice, diz ao jovem Marco Aurélio:

“Julgam-me deus, como nos tempos da minha felicidade; continuam a dar-me esse título no mesmo momento em que oferecem ao céu sacrifícios pela Augusta Saúde. Já te disse por que razões esta crença tão benéfica me não parece insensata. Uma velha cega veio a pé da Panónia; tinha empreendido aquela exaustiva viagem para me pedir que tocasse com o dedo nas suas pupilas extintas; recuperou a vista sob as minhas mãos, como o seu fervor esperava; a sua fé no imperador-deus explica esse milagre. (244)

 

No caso da velha cega, é o placebo da fé intangível e imaterial que se transforma em força material. Para lá da verificação (a acreditar-se na fidedignidade da tradição) de que já o paganismo conhecia e praticava o chamado milagre, a acumulação dos poderes temporal e religioso na figura do imperador e o reconhecimento deste como divindade exprimem a união estreita entre o poder do Estado, caracterizado pelo imediatismo da sua acção, e a sua face simbólica, o poder religioso, oficialmente exercido na esfera espiritual e de acção diferida no tempo. O poder temporal é explicitamente legitimado pelo poder religioso – no Império romano, como nas monarquias de direito divino; nas modernas democracias burguesas, o poder da classe dominante prescinde de tal legitimação expressa, já que a máquina ideológica da burguesia (sistema de ensino, comunicação social ao seu serviço, Igrejas, …) logra moldar as consciências, e esse poder é tacitamente aceite pela maioria dos crentes, que são também a maioria da população, ainda que não necessariamente praticante. A epístola de S. Paulo aos Romanos é clara, a este respeito:

“Todo o homem esteja sujeito às potestades [=autoridades] superiores, porque não há potestade que não venha de Deus; e as que há, essas foram por Deus ordenadas. Aquele pois que resiste à potestade, resiste à ordenação de Deus. E os que lhe resistem, a si mesmos trazem a condenação. Porque os príncipes não são para temer, quando se faz o que é bom, mas quando se faz o que é mau. Queres tu pois não temer a potestade? Obra bem e terás louvor dela mesma. Porque o príncipe é ministro de Deus para bem teu. Mas se obrares mal, teme; porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus, vingador em ira contra aquele que obra mal.”[19]

A fé religiosa, como qualquer ideologia que se apodere das massas, pode levar a realizações de tal modo surpreendentes que se compreende a designação de “milagre”. Nesta acepção, até o abandono pelo homem das crenças religiosas que caracterizam a longa infância da humanidade, mostrando que esta “atingiu a idade da razão” (Marx) mereceria, ironicamente, caso fosse conseguido, ser chamado de milagre.

A religião, no sentido mais lato do termo, vem de tempos imemoriais. É de crer que já os nossos remotos antepassados tinham consciência da sua irredutível individualidade e se afligiam com a ideia deprimente da sua finitude, pelo menos a partir do momento em que, menos assoberbados pela luta pela sobrevivência, graças às ferramentas que souberam criar, passaram a dispor do ócio indispensável à reflexão, como mais tarde viria a acontecer nas colónias gregas da Ásia Menor, num outro patamar do conhecimento. Daí ao mito, foi apenas um passo, e o mito foi plasmado nas literaturas orais que, antes do cinema e da televisão, já animavam os serões da pré-história. Religião e literatura oral confundem-se, na noite dos tempos (Eliade).

Alguns dos nossos antepassados, ter-se-ão “limitado” a vazar as suas preocupações existenciais em formas de expressão simbólicas – a poesia, as artes; outros, ter-se-ão projectado em seres ideais e instituíram rituais de celebração. A arte acompanhou a pulsão religiosa dos nossos avós. Muito depois dos hominídeos de quem descendemos, a Antiguidade e as Idades que lhe sucederam assistiram ao desenvolvimento de formas de exaltação da natureza, por exemplo, que configuraram expressões de religiosidade.

“[…] para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente «natural». A experiência de uma Natureza radicalmente dessacralizada é uma descoberta recente; esta experiência não é, aliás, acessível senão a uma minoria de sociedades modernas, e em primeiro lugar aos homens de ciência. Para o resto das pessoas, a Natureza apresenta ainda um «encanto», um «mistério», uma «majestade», onde se pode decifrar os traços dos antigos valores religiosos. Não há homem moderno, seja qual for o grau da sua irreligiosidade, que não seja sensível aos «encantos» da Natureza. Não se trata unicamente dos valores estéticos, desportivos ou higiénicos concedidos à Natureza – mas também de um sentimento confuso e difícil de definir, no qual se reconhece contudo a recordação de uma experiência religiosa degradada.”[20]

Todavia, é o sentimento da finitude que coloca o homem diante do aspecto mais angustiante da sua condição[21]. A sua finitude pessoal não andará longe de lhe aparecer como o absurdo absoluto: como compreender o apagamento total e definitivo da sua própria consciência, quando ela se lhe impõe como dado incontornável de uma existência que é parte integrante de um universo tão presente? Quanto à finitude dos demais, duas circunstâncias a apurar: o desaparecimento físico dos muito próximos e o dos estranhos. Se o destes últimos pode passar facilmente despercebido e não suscitar grande sobressalto, já o dos entes queridos constitui muitas vezes um abalo difícil de ultrapassar, com demorados processos de luto. Como continuar a viver, a partir do momento em que uma presença tão viva e constante que acabou por se fazer parte de alguém, repentinamente, dá lugar ao vazio existencial? A perda do ente querido é sentida como autêntica amputação daquele que fica e percepcionada como algo de igualmente absurdo: como processar emocionalmente o sentimento de que não mais será possível interagir com alguém que constituía como que um prolongamento de si mesmo? Sentimento que é agravado pela consciência do quanto ficou por dizer, das trocas que se não concretizaram, dos afectos adiados. Com a morte do ente querido é sempre uma parte do que sobrevive que também morre. Em Totem e Tabu, Freud explica assim:

“O processo patológico da paranóia utiliza-se efectivamente do mecanismo da projecção para dar conta desses conflitos originados na psique. O caso típico desse conflito é aquele entre os dois membros de um par de opostos, o caso da atitude ambivalente, que examinamos em detalhe na situação da pessoa em luto pela morte de um ente querido. Um caso assim nos parecerá particularmente adequado para motivar a criação de projecções. Nisso concordamos novamente com os autores que vêem os maus espíritos como os primeiros a terem surgido e que derivam a noção de alma da impressão deixada pela morte nos sobreviventes. A diferença é que não priorizamos o problema intelectual que a morte coloca para o vivo; o que fazemos é situar a força que impele à pesquisa no conflito emocional em que esta situação mergulha o sobrevivente.”[22]

Nestas circunstâncias, não surpreende que, até por reflexo de autocomiseração, o sobrevivo, como náufrago à deriva, lance mão de qualquer ilusão que o pacifique. A crença no reencontro num Além que, do mesmo modo que Deus e os anjos, nunca ninguém viu nem verá constitui seguramente um poderoso refrigério – vedado àquele que recusa o manto diáfano da fé e que prefere encarar a nudez forte da verdade. A aparente facilidade de propagação de crenças que, observadas à luz da lógica mais elementar, se afiguram inverosímeis, infantis e até ridículas, talvez se deva a factores que Richard Dawkins, no seu livro A Desilusão de Deus, compagina com a selecção natural:

“É tentador seguir a analogia biológica até nos perguntarmos se não haverá aqui a funcionar algo correspondente à selecção natural. Serão algumas ideias mais propagáveis do que outras devido a um eventual apelo ou mérito intrínseco, ou a uma compatibilidade com disposições psicológicas já existentes, e poderá isto explicar a natureza e propriedades das religiões efectivas tais como as vemos, do mesmo modo que usamos a selecção natural para explicar os organismos vivos? É importante perceber que a palavra «mérito», neste contexto, significa apenas a capacidade de sobrevivência e de alastramento. Não quer dizer merecedor de um juízo positivo – algo de que nos devíamos orgulhar como seres humanos. […] A própria ideia de imortalidade sobrevive e alastra porque vai ao encontro dos que tendem a tomar os desejos por realidade.”[23]

Faz, pois, todo o sentido a célebre objurgatória em que Marx apoda de ópio a religião.

“A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.” [24]

Ópio, no melhor sentido de consolo, mas também no pior sentido de droga alienante e incapacitante para os combates que as desigualdades e injustiças impõem à consciência esclarecida e adulta, como enfatiza Lénine:

 “A religião é o ópio do povo — esta máxima de Marx é a pedra angular de toda a concepção do mundo do marxismo na questão da religião. Todas as religiões e igrejas actuais, todas e quaisquer organizações religiosas, são sempre encaradas pelo marxismo como órgãos da reacção burguesa que servem para defender a exploração e para entontecer a classe operária.” Lénine, Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião, 1909[25]

Eliade observa que o comunismo apresenta uma «estrutura mitológica» e um «sentido escatológico» [Escatologia, Teoria acerca das coisas que hão-de suceder depois do fim do mundo; teoria sobre o fim do mundo e da humanidade, https://dicionario.priberam.org/escatologia]:

“Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrânico, a saber: o papel redentor do Justo (o “eleito”, o ”ungido”, o “inocente”, o “mensageiro”; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões históricas encontram o seu precedente mais exacto no mito da Idade de Ouro que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. Marx enriqueceu este mito venerável de toda uma ideologia messiânica judeo-cristã: por um lado, o papel profético e a função soteriológica ["soteriologia", Doutrina ou estudo da salvação do homem por um redentor, https://dicionario.priberam.org/soteriologia] que ele atribui ao proletariado; por outro, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro”[26]

Se a «estrutura mitológica» e o «sentido escatológico», a par da abnegação de que não poucas vezes os seus seguidores têm dado provas, podem explicar a imputação de religião ao marxismo-leninismo, o que não pode ser contestado é a sua matriz e natureza materialista dialéctica, avessa a qualquer forma de dualismo e de idealismo filosófico.

  1. Voltando a Freud: a figura do pai

As anteriores referências aos nossos remotos antepassados, eivadas de um antropologismo psicologista sem dúvida pouco fundamentado, requerem a revisitação de Freud, que via na religião uma “neurose obsessiva universal”. Vou ao encontro do fundador da psicanálise, enfatizando o papel decisivo do medo, em geral, e do medo da punição, em particular, no surgimento das religiões:

“O núcleo da motivação religiosa está ligado ao complexo paternal e às suas correlações: o desejo de ser amado e a necessidade de protecção, derivados da «penosa sensação de impotência experimentada na infância». A função primordial da religião consiste em proporcionar consolo perante a dureza da vida: a angústia perante o destino, o sofrimento, a antecipação da morte… Ao modo de Feuerbach, Freud escreve que o homem forja os seus deuses à imagem da figura protectora e todo-poderosa do pai. A crença num Deus pessoal é a sublimação da dependência biológica do pai e herda os dois aspectos do ideal do ego: Deus bondoso e Deus castigador.”[27]

É em Moisés e a Religião Monoteísta que, em 1939, Freud explica o apregoado monoteísmo judaico-cristão: Moisés, ao entregar aos judeus as Tábuas da Lei, ter-lhes-ia transmitido uma religião egípcia criada pelo faraó Akenaton (séc. XIV a.C.), religião esta que bania o anterior politeísmo e o substituía pelo culto de um deus único, o Sol. Todavia, Moisés viria a ter a mesma triste sorte que Akenaton – desprezado, rejeitado e até, provavelmente, assassinado.

“Os descendentes desse crime fundacional, que deu origem a uma nova ordem social, reprimem a sua recordação. Freud transfere assim para o terreno «do romance histórico» (o título que deu ao seu livro) o mito antropológico de Totem e Tabu do parricídio original. Na história do povo judeu existe um corte, um período de latência que submete à amnésia o drama edipiano da incorporação do pai assassinado. Os judeus negam o seu acto exaltando Moisés à altura de um pai mítico. Mas um sentimento inconsciente de culpa seria aquele que, por um regresso do reprimido, produziria o fantasma do desejo de um Messias. Foi a Paulo de Tarso que ocorreu a ideia de que mediante o sacrifício de Jesus todos os homens ficariam redimidos. Por detrás do pecado original, a culpa fundadora da civilização, oculta-se o assassínio de Deus.”[28]

A referência a Moisés e a importância que Freud lhe atribui no surgimento do monoteísmo levam-me a este parêntesis literário[29]. Em 1943, Thomas Mann escreveu “A Lei”, uma das suas três últimas novelas[30]. Trata-se de um texto que se constrói como narrativa alternativa à da Bíblia e onde se desmonta a mistificação em que assenta a crença em Jeová ou Javé, bem como a violência usada pelo «povo eleito» na sua busca da «Terra Prometida». Moisés, personagem a quem cabe a espinhosa missão de conduzir os hebreus e de lhes infundir a fé num deus invisível e cioso, tal como o Velho Testamento no-lo dá a conhecer, é-nos aqui apresentado como uma personalidade atormentada, o que fica patente desde a primeira frase da novela:"Teve um nascimento conturbado, por isso amava apaixonadamente a ordem, o inviolável, a norma e a interdição" (p. 103). Fanático, autoritário, dado a visões, padecendo de entranhado misticismo e provável presa de um nebuloso complexo de sentimentos relacionados com o facto de ser o fruto de um relacionamento fortuito e ilegítimo entre o pai hebreu e a filha do faraó, Moisés logra converter as tribos madianitas do deserto a um deus que, contrariamente aos outros, era invisível, qualidade que não obstou a que se lhe tenha revelado, particularmente no episódio da sarça-ardente. E são estas tribos que, após a partida do Egipto, e a "travessia" do Mar Vermelho[31], escorraçam os amalecitas do oásis de Cades e aí se instalam, numa versão que será reeditada séculos mais tarde, com os contornos que modelam e mancham o nosso presente. A história é bem conhecida e pode ser consultada, em versão dita sagrada, nos Segundo e Terceiro Livros de Moisés, a saber, Êxodo e Levítico. Mais difícil de lá encontrar, segundo creio, são algumas das últimas palavras pronunciadas por Moisés, na novela, ao regressar do Sinai, depois do episódio do bezerro de ouro, ao testemunhar a depravação a que, de novo, se tinha entregado o seu povo: "Bem sei – e Deus ainda melhor – que os seus mandamentos não serão cumpridos e que se violarão, sempre e em toda a parte, as suas leis e os seus preceitos. Contudo, no coração do infractor se gelará sempre o sangue, porque a aliança foi firmada na sua carne e no seu sangue – para toda a eternidade. [...] Que a terra volte a ser terra, um vale de lágrimas, mas jamais um antro de depravação. Dizei todos amém. E todo o povo disse amém (pp. 182-183)."

Moisés não conheceu Freud, mas exemplifica cabalmente, creio, conceitos da psicanálise, pelo menos na versão de Mann, que admirava Freud e dele diz o seguinte:

“Se me perguntassem qual das contribuições ousadas e inovadoras de Sigmund Freud para o conhecimento do homem me causou mais forte impressão, e qual dos seus escritos literários me vem primeiro à mente quando se menciona o seu nome, eu diria, sem pestanejar, o tratado em quatro partes Totem e Tabu, no décimo volume de suas Obras completas.”[32]

Quanto ao monoteísmo judaico-cristão, é de difícil compaginação com uma corte celestial que conta com um Deus trino (Pai, Filho e Espírito Santo) e com uma chusma de anjos, arcanjos e santos.

Encerrado o parêntesis, voltemos a Freud e ao “mito antropológico do parricídio original”, em Totem e Tabu:

 

“Naturalmente não há lugar, na horda primeva de Darwin, para o início do totemismo. Um pai violento e ciumento, que reserva todas as fêmeas para si e expulsa os filhos quando crescem, eis o que ali se acha. Esse estado primevo da sociedade não foi observado em nenhuma parte. O que vemos como organização primitiva, que ainda hoje vigora em determinadas tribos, são bandos de machos, compostos de membros com direitos iguais e sujeitos às restrições do sistema totémico, inclusive a herança por linha materna. É possível que uma se tenha desenvolvido da outra? E de que forma, então? Recorrendo à cerimónia da refeição totémica, podemos dar uma resposta. Certo dia, os irmãos expulsos juntaram-se, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. (Talvez um avanço cultural, o manejo de uma nova arma, lhes tenha dado um sentimento de superioridade.) O facto de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No acto de devorá-lo eles realizavam a identificação com ele, e cada um se apropriava de parte de sua força. A refeição totémica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse acto memorável e criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais, a religião.”[33]

Ignoro até que ponto a investigação posterior a Darwin e Freud terá dilucidado a questão comportamental na horda primitiva, mas vem a propósito citar um divertidíssimo romance que partilha a visão atrás exposta. O tema deste romance é o homem nas suas origens (pitecantropo, homem-macaco) e os esforços que faz na via da hominização. Longe do registo do ensaio de antropologia, o texto assenta todo na anacronia e na ironia. Anacronia que consiste em atribuir a estes nossos antepassados uma capacidade discursiva que nada fica a dever à de um nosso contemporâneo escolarizado e com aproveitamento, com múltiplas referências a disciplinas e áreas de conhecimento que só viriam a surgir muitos milénios mais tarde, e uma psicologia quase em tudo semelhante à do homem moderno. Como não podia deixar de ser, a ironia chispa a cada passo, do desencontro entre esta utensilagem mental nossa coeva, por um lado, e, por outro, o aspecto das personagens, o seu enquadramento natural e suas condições de vida (as cavernas, os predadores, as tentativas de domesticação do fogo, …).  

As peripécias da acção prendem-se sobretudo com as tentativas de domesticação do fogo, que frequentemente redundam em incêndios devastadores susceptíveis de pôr em risco a vida de toda a horda, com as relações conflituosas que os candidatos a homens mantêm com outras espécies animais de que se alimentam – à medida que, de vegetarianos arborícolas evoluem para omnívoros –, ou cujas cavernas disputam, como acontece com os ursos trogloditas, e finalmente com as contingências da exogamia, que o pai, Eduardo, impõe aos seus filhos machos.   

Ora são os filhos e as noras quem acabará por mandá-lo para o “outro mundo”, “esse terreno de caça que visitamos em sonho”, onde Eduardo, acreditam eles, não deixará de ter sonhos felizes. Mas esta morte, afinal, não é mais do que a simbólica morte do pai que permitirá o pleno desenvolvimento do filho, numa perspectiva psicanalítica, ou a dialéctica substituição do velho pelo novo, condição e imanência de todo o progresso.

O romance em questão é Pourquoi j’ai mangé mon père, de Roy Lewis, Babel, Actes Sud, 1990, no que concerne à tradução francesa de Vercors e Rita Barisse, editado originalmente em 1960 pela Hutchinson, Londres, com o título The Evolution Man[34]. Vale a pena lê-lo.

 

  1. Para concluir : Dieu, c’est moi !

Mas voltemos à propensão para a fantasia e para a ilusão a que me referi demoradamente neste texto, o que nos reconduz à angustiosa questão também já atrás enunciada: como satisfazer a necessidade que o homem parece ter desses ilusórios alimentos numa sociedade em que as necessidades materiais tenham sido satisfeitas?

A pergunta tem, devo dizer, muito de retórico, pois me deixei influenciar pelo argumento ontológico de Santo Anselmo. É que, se a ideia da perfeição implica não a existência, mas a ideia da existência, o que é bem diferente, também a necessidade de fantasia não implica tomar definitivamente a nuvem por Juno – bastará tomá-la apenas por alguns instantes de distracção consentida: o enlevo proporcionado por um poema, um texto ficcional, uma estátua, uma sinfonia não tem que descambar em culto religioso, por muito que os nossos vícios de linguagem nos levem a “adorar” essas expressões artísticas. Uma vez alcançada a libertação material – condição necessária, mas nem sempre suficiente – da libertação moral e intelectual do homem, é bem possível que a psicanálise proporcione àqueles a quem, ainda assim, “não basta ver que um jardim é belo, [mas têm] de acreditar que lá no fundo também esconde fadas”[35] uma fantasia de substituição que não acarrete tantos custos e sofrimentos para a humanidade, como a religião, qualquer que ela seja, sempre acarretou.

Enfim, a grandeza da História humana é tal que bem pode o homem, com a sábia ironia do adulto esclarecido que não renega a ingénua criança que já foi, reivindicar para a espécie uma boa fatia de divindade. Parafraseando Flaubert, bem podemos dizer “Dieu, c’est moi!”. E podemos dizê-lo com a vantagem de existirmos – ao contrário do Padre Eterno que, no dizer de Baudelaire, para mantermos o registo da literatura francesa, é o único ser que, para reinar, nem sequer precisa de existir.

Julho de 2020

Fernando Martins

_______________________________________________________________________________________

[1] Em https://www.godlessgeeks.com/LINKS/GodProof.htm, podemos ler centenas de provas irrefutáveis (e qual delas mais hilariante) da existência de Deus.

[2] Os filólogos divergem na determinação da etimologia de “religião”: “relegere”, respeitar, para uns; “religare”, religar, unir, para outros.

[3] Douglas Adams, citado por Richard Dawkins na dedicatória de A Desilusão de Deus.

[4] Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, Livros do Brasil, Colecção Vida e Cultura, s/d, tradução de Rogério Fernandes

[5] “Le philosophe matérialiste Epicure admettait encore que les Dieux existent nécessairement  même s’ils sont composés d’atomes plus subtils que les nôtres, puisqu’ils apparaissent aux dormeurs. » G. Mury e T. Oriol, L’Action, Didier, Paris, 1964, p. 26

[6] François Châtelet (Direcção de), História da Filosofia, tomo 1, Círculo de Leitores, p. 145.

[7] “Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso. Isto compreende-se facilmente porque o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos Deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade”. Eliade, Op. cit., p. 127

[8] Em relação a Freud, citarei quase exclusivamente Totem e Tabu, 1913, Penguin & Companhia das Letras, Academia.edu

[9] A este respeito, leia-se “A complexa relação entre a Psicanálise e o Marxismo”

  em http://www.ufscar.br/~revistaolhar/pdf/olhar5-6/sergio.pdf

[10] Segundo António Lobo Antunes, na crónica “Que rezem pela minha alma pecadora”, in Visão n.º 1298, de 24/01/2018.

[11] https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm

[12] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/12/03.htm

[13] Conto “Adão e Eva no Paraíso”

[14] Guerra Junqueiro, Prefácio à 2.ª edição de A Velhice do Padre Eterno, Livros de Bolso Europa-América, n.º 247, p. 28

[15] “o sentimento religioso deriva de uma ilusão enraizada nos desejos inconscientes do homem e oferece-lhe a possibilidade de os realizar de modo substitutivo: as «representações religiosas» são «ilusões, realizações [fantasmagóricas] dos desejos mais antigos, intensos e prementes da humanidade». Mas não se deve confundir a ilusão com o erro. «Classificamos de ilusão uma crença quando é engendrada pelo impulso de satisfação de um desejo, prescindindo da sua relação com a realidade, do mesmo modo que a ilusão prescinde de toda a garantia real». Mas, perante a ânsia psíquica da ilusão religiosa (como o «benefício primário» da formação de sintomas), pouco pode fazer a racionalidade.” Sigmund Freud, Vida, pensamento e obra, Público, Colecção Grandes Pensadores, n.º 20, p. 160

[16] “… o homem religioso queria e acreditava imitar os seus deuses mesmo quando se deixava arrastar a acções que tocavam as raias da loucura, da vileza e do crime.” Eliade, Op. cit., p. 116

[17] Georges Politzer, A Filosofia e os Mitos, Prelo, Lx.ª, 1975, p. 99

[18] Marx, Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, citado por G. Politzer, em A Filosofia e os Mitos, p. 100

[19] Romanos, XIII, 1-4

[20] Eliade, Id., p. 160

[21] “Para os primitivos, o prosseguimento da vida – a imortalidade – seria algo evidente. A ideia da morte veio a ser adquirida depois, não sem relutância; e também para nós é vazia de conteúdo e inexequível.” Freud, Totem e Tabu, 1913, p. 45, Penguin & Companhia das Letras, Academia.edu

[22] Freud, Totem e Tabu, p. 56

[23] Richard Dawkins, A Desilusão de Deus, Casa das Letras, 6.ª edição, 2011, pp. 222 e 223

[24] Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1844

[25] Lénine, Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião, 1909

[26] Eliade, p. 213

[27] Sigmund Freud, Vida, pensamento e obra, Público, Colecção Grandes Pensadores, n.º 20, p. 160

[28] Id., pp. 161,162

[29] https://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt/a-lei-de-thomas-mann-in-as-tres-ultimas-50398

[30] Thomas Mann, As Três Últimas Novelas, Livros do Brasil, 2015

[31] De facto, uma região de "baixios e juncais pantanosos [que] formavam, em certas ocasiões, uma comunicação direta entre os lagos Amargos e o golfo marítimo, que se podia percorrer a pé, evitando, dessa forma, a travessia das terras do Sinai. A única condição necessária a este fenómeno era que soprasse um vento forte do Oriente que fizesse recuar as águas do mar e abrisse uma passagem à multidão – graça que Javé quis outorgar aos fugitivos do Egito" (p. 129).

[32] Thomas Mann, Pensadores Modernos, apud

 https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/2015/06/1639803-pensadores-modernos-traz-ensaios-de-mann-sobre-freud-nietzsche-e-schopenhauer.shtml

[33] Freud, Totem e tabu, pp. 84, 85

[34] https://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt/15627.html

[35] Dawkins, p. 7