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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

"A lei", de Thomas Mann, in As Três Últimas Novelas

As três últimas novelas, Thomas Mann.jpg

 

            "A lei" é a segunda de As Três Últimas Novelas, de Thomas Mann, recentemente publicadas pela Porto Editora/Livros do Brasil. Narrativa alternativa à da Bíblia, "A lei" insinua ironicamente a mistificação em que assenta a crença em Jeová, ou Javé, bem como a violência usada pelo "povo eleito" na sua busca da Terra Prometida. Moisés, personagem a quem cabe a espinhosa missão de conduzir os hebreus e de lhes infundir a fé num deus invisível e cioso, tal como o Velho Testamento no-lo dá a conhecer, é-nos aqui apresentado como uma personalidade atormentada, o que fica patente desde a primeira frase da novela: "Teve um nascimento conturbado, por isso amava apaixonadamente a ordem, o inviolável, a norma e a interdição" (p. 103). Fanático, autoritário, dado a visões, padecendo de entranhado misticismo e provável presa de um nebuloso complexo de sentimentos relacionados com o facto de ser o fruto de um relacionamento fortuito e ilegítimo entre o pai hebreu e a filha do faraó, Moisés logra converter as tribos madianitas do deserto a um deus que, contrariamente aos outros, era invisível, qualidade que não obstou a que se lhe tenha revelado, particularmente no episódio da sarça ardente. E são estas tribos que, após a partida do Egipto, e a "travessia" do Mar Vermelho[1], escorraçam os amalecitas do oásis de Cades e aí se instalam, numa versão que será reeditada séculos mais tarde, com os contornos que modelam e mancham o nosso presente. A história é bem conhecida e pode ser consultada, em versão dita sagrada, nos Segundo e Terceiro Livros de Moisés, a saber, Êxodo e Levítico. Mais difícil de lá encontrar, segundo creio, são algumas das últimas palavras pronunciadas por Moisés, na novela, ao regressar do Sinai, depois do episódio do bezerro de ouro, ao testemunhar a depravação a que, de novo, se tinha entregado o seu povo: "Bem sei – e Deus ainda melhor – que os seus mandamentos não serão cumpridos e que se violarão, sempre e em toda a parte, as suas leis e os seus preceitos. Contudo, no coração do infrator se gelará sempre o sangue, porque a aliança foi firmada na sua carne e no seu sangue – para toda a eternidade. [...] Que a terra volte a ser terra, um vale de lágrimas, mas jamais um antro de depravação. Dizei todos amém.

            E todo o povo disse amém (pp. 182-183)."

Moisés não conheceu Freud, mas parece antecipar o conceito de superego.

           

           Feito este sobrevoo da história, debrucemo-nos sobre aspectos da expressão. Contrariamente ao que sempre faço, comecei a ler estas três novelas pelo meio, isto é, pela segunda, de 1943, por estar muito curioso quanto ao tratamento que Mann dera a um tema que eu próprio me atrevi a glosar[2]. Tinha ainda como referência o conto de Eça "Adão e Eva no paraíso", e, talvez por ter esta referência tão próxima, a leitura das primeiras páginas da novela de Mann deixou-me desconsolado. Não sendo a originalidade da história, na circunstância, factor pertinente de análise, restava-me ponderar o vigor do estilo e a profundidade do pensamento. Deparei-me com páginas de escrita quase baça e sem relevo, que nunca se alcandora à excelência queirosiana. De tal modo que não pude deixar de pensar no facto de que, tratando-se de uma tradução do alemão, a responsabilidade poderia não caber a Mann, mas à tradutora. Acontece que a tradutora, Gilda Lopes Encarnação, é também a autora do posfácio do volume. Ora este posfácio é um texto magnífico. O que afasta a hipótese aventada quanto a eventuais defeitos da tradução. Perante isto, sobra uma possibilidade dolorosa: a de a minha apreciação pecar por rigorismo. Pois seja. Vergo-me ao peso das probabilidades. Mas, ainda assim: parece-me difícil acreditar que o prémio Nobel não tivesse topado a inconveniência de usar repetidamente os mesmos adjectivos, "conturbado" e "atormentado", por exemplo, para qualificar, respectivamente, o nascimento e a personalidade de Moisés: "Teve um nascimento conturbado, por isso amava apaixonadamente a ordem, o inviolável, a norma e a interdição (p. 103). [...] O pai não era pai e a mãe não era mãe – tão conturbado fora o seu nascimento" (p. 107); "Moisés era um homem muito atormentado e assim haveria de continuar por todos os tempos – o mais atormentado de todos os homens sobre a terra (p. 133). "Moisés tinha, por conseguinte, a seu cargo a missão de fazer justiça e de ensinar o que a justiça significava, o que o tornava um homem muito atormentado" [...] Moisés era decerto o mais atormentado de todos os homens sobre a terra" (p. 146). Também me parece improvável que Mann não tivesse encontrado melhor expressão do que "eixo de convergência" para classificar "a ideia [dos hebreus] de selarem uma aliança com o Deus de Moisés" (p. 118), e que tivesse usado uma expressão alemã equivalente, em nível de língua, à nossa "ficar a ver navios", em contexto bíblico, por muito que a ironia subtil esteja subjacente à narrativa: "[...] o povo estava convencido de que fazer justiça significava sempre dar razão a todas as partes, não querendo conformar-se com a ideia de que alguns podiam também não ter razão e ficar a ver navios. [...] não ter razão não significava impreterivelmente ter de ficar a ver navios [...]." (p. 145) Que dizer enfim de um parágrafo que parece ter-se inspirado num relatório de análises químicas: "[...] a água tinha um sabor mais do que desagradável, em virtude de certos minerais nocivos que continha, o que provocou uma amarga deceção e renovadas imprecações contra Moisés. Este, que a necessidade tornara engenhoso, colocou, porém, uma espécie de filtro na nascente, conseguindo reter, se não todos, pelo menos grande parte dos aditivos perniciosos, o que resultou num verdadeiro milagre e converteu a algazarra em louvores de júbilo, reforçando, e em muito, a sua reputação." (p. 134)

 

            Lamento sempre que, no trabalho de edição, não haja quem se disponha a "colocar uma espécie de filtro na nascente, conseguindo reter, se não todos, pelo menos grande parte" das imperfeições que um original possa conter. Não quero, contudo, deixar de reconhecer que, a partir de certa altura, o sentimento de que a narração não descola da sua lisura sem chama, porque demasiados atilhos a prendem à fonte bíblica, se atenua substancialmente, o que me parece decorrer de uma relativa autonomização da personagem Moisés em relação ao seu modelo bíblico. E convenho que as últimas palavras de Moisés são judiciosas: a terra continua a ser um vale de lágrimas – se não também, antro de depravação – com o povo (quase) todo a dizer amém, o que não deixa de ter uma bizarra ressonância, numa altura em que algumas sondagens eleitorais apontam para uma vitória da coligação que vergastou o país nos últimos quatro anos.

 

            Finalmente, volto ao posfácio de Gilda Lopes Encarnação para referir a circunstância de "A lei" ser geralmente considerada uma "alegoria do poder" e, mais particularmente, "uma alegoria da libertação face ao Terror, podendo o Egito ser comparado à Alemanha nazi e o faraó a Hitler" (p. 271). Lida como alegoria ou como paródia bíblica, e mal-grado as imperfeições que julgo lá encontrar, vale a pena o tempo investido.

(http://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt)

25/09/2015

 

[1] De facto, uma região de "baixios e juncais pantanosos [que] formavam, em certas ocasiões, uma comunicação direta entre os lagos Amargos e o golfo marítimo, que se podia percorrer a pé, evitando, dessa forma, a travessia das terras do Sinai. A única condição necessária a este fenómeno era que soprasse um vento forte do Oriente que fizesse recuar as águas do mar e abrisse uma passagem à multidão – graça que Javé quis outorgar aos fugitivos do Egito" (p. 129).

[2] "Génesis", in O Doce Aroma do Jasmim, actualmente no prelo.