AINDA AS PALAVRAS
Engana-se quem pensa que seres vivos são apenas os animais e as plantas. Não. As palavras, também. Mas seres vivos de uma particular espécie. São estritamente dependentes de nós e, em certa medida, de outros animais. Vivem connosco, não numa relação de parasitismo, mas em simbiose – regra geral, para nosso benefício. Acontece que, às vezes, pregam-nos partidas. É que, assim como eu sou eu mais a minha circunstância (Ortega y Gasset), a palavra é ela mais a sua. E a sua circunstância é coisa que está sempre a mudar, porque, neste caso, ela é o contexto linguístico, relacional, interpessoal.
Sem o sapiens, as palavras nunca teriam chegado a existir. Darwin não as contemplou na sua árvore da vida e da evolução, mas, se mais tivesse vivido, talvez lá tivesse chegado. Estou a brincar. Colegas de outras áreas já se tinham debruçado sobre a questão, de modo mais sério do que o meu. O facto é que, como os outros organismos vivos, todas elas começaram por ser unicelulares, ou monossilábicas, ou simples urros (uh!). Foram-se complexificando – como todos os animais e plantas que provêm de um tronco, ou de vários – e deram origem às diferentes línguas. Cada língua é um ramo (ou espécie) de um tronco (ou género) comum.
Elas dispõem de um poder que, no fundo, as torna nossas semelhantes.
Vejamos:
Eu digo ou escrevo: «Passe bem!», duas palavras (verbo e advérbio) aparentemente inócuas, iguais, à primeira vista ou audição, para qualquer um de nós. E, no entanto, eis que, para A, elas se comportam como uma simpática marca de afecto, enquanto B as recebe com o desagradável sabor do sarcasmo. As mesmas duas palavras. Nada as diferencia, na sua composição fonética ou gráfica, mas elas gozam dessa particular capacidade que têm os seres vivos de se comportarem de diferentes modos em diferentes circunstâncias. São vivas.
– Balelas! – oiço gracejar o linguista, o gramático e o cidadão sem formação nestas áreas – estamos, novamente, perante um caso de percepções, como acontece com a violência ligada à imigração com i.
– Vejamos!, repito eu. Não raras vezes, acontece-nos emitir uma correcção do que anteriormente disséramos, por receio de termos sido excessivos ou menos corteses ou irónicos… em demasia. Essa autocorrecção pareceu-nos necessária, não por duvidarmos da cognição ou da perspicácia do nosso interlocutor, mas apenas porque, subjectivamente, a entendemos como marca de deferência para com ele, reconhecimento de que nem sempre somos capazes de nos exprimir da melhor maneira. Ela é, todavia, sentida pelo interlocutor como significativa da sua incapacidade para descodificar cabalmente a minha mensagem. Sentindo-se ofendido, ele reage, dizendo, por exemplo «Eu percebi, eu também sou capaz de entender isso!». O advérbio “também” é tremendamente significativo, porque exprime a reivindicação de um estatuto de igualdade entre os dois interlocutores: «Achas-te mais esperto do que eu?!» Ora aí está! O “também” que, noutra circunstância, teria um comportamento neutro («– Ele foi ao cinema e eu também»), ganha aqui uma carga de agressividade inesperada e surpreende o receptor, que opta, eventualmente, por não acusar essa agressividade sentida, numa espécie de exercício de autopunição, para não piorar as coisas.
No fundo, estou apenas a baralhar e voltar a dar. São tantos os que, de modo poético, se pronunciaram sobre esta vida das palavras. No meu texto de 2018 “As palavras”, que reproduzo a seguir, cito alguns, que lhes chamam “seixos”, “cristais”, “punhais”, “incêndios”, “cometas”, lhes atribuem um dorso e alegam até, despudoradamente, deitar-se com elas. Se isso não é vida, digam-me lá o que é.
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AS PALAVRAS
Chegam-nos palavras que logo se desvanecem. Como corpos frágeis, não resistem ao impacto; desintegram-se no alvo. Outras percutem-nos com força e ressoam – palavras-diapasão. "As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem", diz Ruy Belo. E não agem sós as palavras. Organizam-se em bandos – por vezes, gangues, quando enveredam por sintaxes criminosas. Outras vezes, insurgem-se contra regras que as não deixam dar asas à sua busca de infinito. E são sensíveis, as palavras. Se as acolhes de braços abertos e lhes mostras regozijo, à chegada, elas entregam-se-te num esplendor de significados. Ficam tristes, macambúzias e interditas, se à recepção falta calor. "São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio", diz Eugénio de Andrade – que elas brilham, sabemos, mas às vezes ferem e matam. São como tijolos também, as palavras. Com elas edificamos as casas onde moram nossos sonhos. Umas, janelas, levam-nos o olhar demasiado preso ao aqui para paisagens de ali. São sóis e são mares. Cometas, diz o Adão Contreiras. São cascatas de sílabas que se despenham em horizontes de azul. São muros, algumas. Muralhas. Espreitam-nos pelas ameias. Cavalos fogosos, tomam o freio nos dentes e levam-nos à desfilada por temporais de granizo. Fazem-nos esperas, se as desfeiteamos, e não toleram a indiferença. Algumas, comedidas, dissimulam-se na timidez dum gesto; outras, insinuantes, fitam-nos com arrojo. São curiosas como crianças vorazes. Levemo-las, pois, a ver as coisas que elas dizem. E andemos sempre com elas. "Com elas eu me deito, me levanto", diz o Egito Gonçalves. Palavras leva-as o vento, diz toda a gente. Convém, por isso, resguardá-las. E não só no tempo frio, que são outros os frios que as flagelam.
Com palavras eu me digo, eu te digo. Com palavras me chego a ti. A ti e a ti. E muitas ficam por dizer.