As Viúvas de Dom Rufia, na esteira dos grandes prosadores
O leitor ecléctico, avesso a dogmatismos de escola, sentir-se-á porventura tão atraído e sensibilizado por um romance inovador em tudo − desde a originalidade da história, do estilo e do idiolecto do autor até aos particulares efeitos da sua técnica narrativa − quanto por um romance que, fiel às marcas fundamentais que definiram o género − desde o antigo substrato épico até às construções do romantismo e do realismo, caracterizadas por um intenso trabalho de aprimoramento linguístico − faz aquilo que ainda é lícito esperar de um romance, isto é, que conte uma história e que a conte bem, o que não passa obrigatoriamente pela invenção de um novo paradigma narrativo susceptível de deixar o leitor atónito.
Em As Viúvas de Dom Rufia (Casa das Letras, Maio de 2016), Carlos Campaniço conta uma história. E conta-a bem, sem todavia sacrificar o gozo de um enredo recheado de graça e de picante às exigências de uma escrita apostada em sujeitar o leitor àquele permanente esforço de descodificação em que apostaram simbolistas e, mais tarde, cultores do nouveau roman[i]. Este Dom Rufia terá sido, conforme se lê na "Explicação ao Leitor" que encerra o livro, um antepassado do autor. Não o autor real, Carlos Campaniço, mas sim um autor fictício, de nome Firmino Baldassari Figueroa Ríos, que, aliás, se terá limitado "a coser as partes e a trazer a público a incrível história de Dom Rufia", transmitida por um avô. E esta "incrível história" é feita de uma sucessão de histórias ou episódios a que a presença constante do protagonista defunto, mas recorrentemente invocado pelo narrador e reconduzido às suas andanças por terras do Alentejo, confere unidade. É notável a inventiva de que o autor (o real, obviamente) dá provas, mesmo que algum antepassado lhe tenha legado um acervo de memórias (presume-se que em bruto) equivalente àquele de que o autor fictício se diz legatário. Porém, a unidade do romance deve-se também, e substancialmente, à destreza de uma escrita marcadamente perifrástica[ii] e engenhosa, por vezes a lembrar o enfeite artificioso próprio do barroco, mas sempre sustentadamente trabalhada, com preterição frequente da abstracção a favor do recurso à imagem, como se pode testemunhar por construções como as que seguem, entre muitas outras: "Não estivesse o coração atado atrás de uma jaula de ossos, haveria de pular boca fora" (38), "Com o escuro maciço apertando as coisas que moravam do lado de lá da sua luz de candeeiro, não distinguiu [...]" (51), "Entrou no quarto onde se respirava uma penumbra de receio" (117) (espécie de hipálage em que um sintagma preposicional ocupa o lugar do adjectivo - receoso), "a melancolia estava sobre a mesa, qual toalha bordada e de linho bonito" (160), "O padre silenciou-se, e no espaço da sua voz ficou um buraco" (176), "vinham ambos em cima de passos firmes" (184), "Preferiu pensar para onde ia o mundo e quantas colisões se dariam entre aqueles que eram do antigamente e os que vinham com pressa de futuro" (189),
Há também, por vezes, formulações de cariz popular: "Embora o novo ourives fosse analfabeto de palavras escritas, não o era daquelas que dizia, nem no à-vontade com que manobrava os seus argumentos" (66), "Miraram-lhe as mãos e não viram anel de compromisso, aquela atadura que afastava os homens desejados das mulheres desejosas" (72), "Fique a saber-se que não houve no mundo tia mais mãe do que Teresina" (87), "Por poucas razões teria este interrompido a sesta, que o pobre tem umas costas muito gastas em dores" (88), "começou a perceber que o dinheiro lhe escasseava no sítio mais importante, no lado de dentro dos bolsos" (103), "Mariana da Avó, que estava de ouvidos entornados sobre a sala de estar" (115), "A mulher era órfã de marido" (180),
Só muito raramente (mas, ainda assim, o crítico não resiste a apontar o dedo) a formulação destoa da riqueza de construção que é a regra. É assim que se estranha, por exemplo, um "grito de horror", na página 25, ("Nesse instante Domitila deu um grito de horror (...)") e um "percepcionar", na página 40 ("Logo que percepcionou que aquele era o melhor cavalo para a sua corrida (...)"). Sempre tão hábil na utilização do vocábulo mais gracioso e da construção mais expressiva, Carlos Campaniço poderia certamente ter evitado estas chochas soluções[iii].
Ora o que antecede configura um idiolecto próprio do autor, idiolecto esse que o aproxima dos grandes prosadores dos dois últimos séculos, Camilo e Aquilino à cabeça. Não quer isto dizer que Carlos Campaniço escreva como esses mestres da língua, antes que logra, como eles e outros, configurar um código que inunda as margens da "fábula" aristotélica (a "história") e tende a erigir-se como objecto tão importante quanto aquela. Colhido de surpresa, o leitor não desfruta menos da singularidade da intriga do que da expressividade da linguagem, que assim se insinua como entidade responsável pela construção de algo que toma os contornos de um universo ficcional paralelo.
Mas não se ficam por aqui as afinidades entre Carlos Campaniço e os grandes cultores da narrativa realista. O capítulo que relata a história do relacionamento entre Firmino e Joaquinita (pp. 99 a 127) e, depois, as peripécias do seu relacionamento com Cremilda, esposa de Abel Romão (pp. 183-210), parecem transportar-nos, não já aos séculos XIX e XX, mas ao século XIV, atenta a sugestão boccacciana das traições das duas mulheres nas barbas dos respectivos maridos. Aliás, a própria estrutura de As Viúvas de Dom Rufia, com a sucessiva e ininterrupta chegada de novas "viúvas" que vão alimentando a diegese, sugere o expediente das histórias que, no Decameron, vão sendo contadas, dia após dia.
Por sua vez, se as interpelações e referências várias ao leitor têm paralelo em muita da narrativa produzida desde finais do século XVIII, já o afinar da expressão, acompanhado de comentário sobre a mesma, sugere fortemente a escrita de Saramago: "Passada mais de uma hora, Tomaz Velho era um homem novo, isso pondo aqui a nu todo o exagero da expressão, pois novo não mais viria a ser, se bem que renascido lhe assentava perfeitamente" (141), "Mas como Dom Rufia era fino − se se dissesse finíssimo não era superlativo posto em exagero −, passava os dias em Safara" (248).
Refira-se, enfim, que, se há neste romance uma ou outra alfinetada à religião, a denunciar um ateísmo escassamente militante[iv], já a preocupação social, apesar da raridade dos seus afloramentos, ou não fosse As Viúvas de Dom Rufia, antes de mais, o relato das picardias de um mistificador nato e burlador inveterado, é afirmada com acutilância: "Nos campos ceifava-se. Uma multidão de homens e mulheres não fugiam do Sol, amarrados às espigas. Mostravam umas mãos muito escuras, como as patas dos zurzais, uma cara sempre com vontade de água e um olhar aceitando a condenação de terem nascido gente de campo, gente de campo tinha de dar lucro ao patrão, nascera para obedecer a mandos. Quem determinara que nasceriam em grande quantidade, e seriam muito pobres, para fazerem muito rico um homem só?, poderiam ter questionado se houvesse vagar para pensamentos. Mas não, o tempo era todo vertido em trabalho, em espigas e depois em bagos de trigo, em farinha, em pão. A foice na mão, os canudos de cana na outra mão, os gestos repetidos, sem cansaço, sem reclamação, vergando as espinhas, mas não a dignidade" (p. 171). O neo-realismo teve o seu tempo, mas neste tempo, que é o nosso, por que razão teria o romance que se encerrar em torre de marfim, ignorando a sorte dos explorados? Não cedendo ao panfleto, Carlos Campaniço faz questão, no entanto, de colocar o seu rufia em perspectiva, com "uma multidão de homens e mulheres (...) amarrados às espigas (...), vergando as espinhas, mas não a dignidade" como pano de fundo. Se o herói do romance é, na verdade, um anti-herói que "verga" a dignidade para não ser mais um "escravo destes campos", não há ambiguidade quanto ao papel desta multidão, que apenas verga a espinha. Neste contexto, a personagem Homero Dente d'Alho, tio de Firmino (Dom Rufia) é a que revela autêntica consciência política, aliada à integridade do carácter. É dele o seguinte libelo, retirado do capítulo em que resume a vida do sobrinho, a pedido das viúvas e respectivos parentes: "ele nasceu e cresceu nesta família humilde, que não teve hipóteses de lhe dar outra vida. Nunca aceitou tal condição. Jurou não se deixar escravizar pelos donos destes campos, que obrigam um homem a trabalhar de sol a sol para ganhar o que mal dá para pagar um pão" (256).
Com As Viúvas de Dom Rufia, Carlos Campaniço afirma-se, sem dúvida e sem favor, como um dos nomes cimeiros da ficção portuguesa contemporânea. É de saudar que o faça não se alheando das circunstâncias da sua terra e do seu tempo.
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[i] "Robbe-Grillet, em 1957, retoma o ataque contra esta concepção, que tem ainda curso, segundo a qual o 'verdadeiro romancista' é aquele que sabe 'contar uma história'. (...) Na realidade, não é assim tão fácil desembaraçar-se dela. Apesar das tentativas periódicas de eliminação, a intriga, que é um mal para determinados romancistas, permanece talvez um mal necessário. O romance conta uma história: 'é o aspecto fundamental sem o qual não poderia existir', escreve E. M. Forster (Aspects of the Novel)", Bourneuf Roland e Ouellet, Réal, O Universo do Romance, Almedina Coimbra, 1976, pp. 49 e 51
[ii] A título de exemplo, atente-se na mais-valia de expressividade que representam perífrases como "Muitas vezes fora a terras para lá do que era longe" e "um ser fora do modelo do Criador" (p. 211), relativamente a "terras muito longínquas" e "um ser excepcional".
[iii] Do mesmo modo, deveria ter optado por vocábulo mais "apresentável" na frase "Montou-se no carro como se fossem f... como dois coelhos" (p. 266), que nos parece deslocada quer para as personagens quer para o narrador, o que já não acontece na fala de Flor do Carmo "Isso da procura é verdade ou é só um fingimento para me vir f..." (167), atenta a condição de prostituta da personagem. Ressalva-se, mesmo assim, a possibilidade de juízo apressado ou falho de pertinência, que o olhar crítico a tal não está imune.
[iv] O ateísmo tem uma expressão particularmente clara neste passo: "[Homero Dente d'Alho] sendo ateu, espantava-se que um ser tão ávido de conhecimento e tão insubmisso fosse crente. Ligava o pensamento revolucionário e progressista a uma rejeição do divino." (249)