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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Ça, c’est ma riviére, de Fernando Cabrita - a febre do ter

Ça, c'est ma rivière, F. Cabrita 001 (2) (2).jpg

O bom Maël, unindo as mãos, suspirou:

— Meu filho, está a ver aquele furioso que arranca à dentada o nariz do adversário prostrado e aqueloutro que esmaga a cabeça de uma mulher com um pedregulho?

— Sim, estou a vê-los, respondeu Bulloch. Estão a criar o direito; a fundar a propriedade; a estabelecer os princípios da civilização, as bases das sociedades e os alicerces do Estado.

Anatole France, L’Île des Pingouins

Lê-se de um fôlego este poema de Fernando Cabrita, que ele não se presta a leituras sincopadas e parece ter sido redigido à velocidade a que o proprietário do rio (ou da “riviére”[1], para ficar no registo linguístico original) debita o seu torrencial discurso de posse e exclusivo usufruto. E não é um poema surpreendente para quem se tenha repetidamente dado ao exercício da leitura de FC. Ou, se o é, é necessariamente uma surpresa atenuada pela experiência prévia e pela consciência de que se vai ao encontro da habitual descoberta exaltante.

O discurso caudaloso arrebata. Inundam-no as mais diversas imagens veiculadas por uma utensilagem lexical própria de quem maneja a língua com mestria. E, arrebatada, a consciência crítica debate-se entre fórmulas canónicas, em busca da que melhor responde à especificidade do texto em análise: manifesto, requisitório, sermão profano? Talvez os três, que é certo haver aqui exposição de motivos, mas também acusação (sendo que esta ocorre camuflada pela irónica voz em surdina do autor – advogado perverso que induz a sua personagem-constituinte a argumentar incriminando-se) e ainda discurso de fôlego, sustentado, içando-se às alturas retóricas da doutrinação. De resto, se a personagem mal se aventura, agora e logo, num franciú de emigrante, é justo reconhecer que revela uma invejável cultura, expressa naquela língua que o poeta disse ser sua pátria. Por conseguinte, é ainda a voz do autor que aqui nos segreda ao ouvido. E que nos diz ele? Diz-nos que o proprietário, por mais certo que esteja do seu título, ignora de todo donde ele lhe vem:

Não sei quem criou o conceito, esta ideia, esta coisa que chamamos / propriedade, o direito de propriedade, / a defesa da propriedade, / o exercício da propriedade, / direito universal, planetário, galáctico, direito gótico, pletórico, barroco, / marítimo e terrestre, não sei, mas esta porção de terra e / este rio tenho-os para mim como meus. […] (10)

Claro que papéis não lhe faltam, aqueles mesmos que dão corpo e forma ao espírito da lei:

[…] Isto aqui é meu. Meu. Não sei porquê nem / de quando, mas meu. Tenho todos os documentos, / as escrituras que são bem mais sagradas que as Sagradas, / e os registos, / e as cadernetas e os cadastros, e os censos e os inventários, / e todos os marcos, / e as testemunhas que justificarão o que fizer falta ante / quem quiser saber. (11)

Ora, por falar em Escrituras Sagradas, ou seja, na Lei, nada melhor do que invocar a autoridade máxima, essa que, antes mesmo do papiro e do papel, escrevia já direito, ainda que por linhas tortas, ou, no mínimo, apunha a marca indelével do seu inconfundível indicador nos títulos de propriedade:

Eu tenho os papéis e neles está a impressão digital do indicador de Deus. […] Esta certidão é todo um Espírito Santo perito em topografia. (13-18)

É que, antes da monarquia de direito divino, já a propriedade reivindicava o estatuto, e sempre os homens souberam dar cumprimento aos altos desígnios do Senhor, nomeadamente levando a Sua jurisdição aos confins do cosmos. Servo fiel do Criador, o proprietário detém

«uma qualquer prova de como o universo foi / dividido em lotes, uma cópia antiga de Tordesilhas, / e que os homens que o dividiram tinham esse poder, / directamente para isso encarregados por Deus, instruídos por Deus, / assalariados por Deus, / com procuração de Deus com plenos poderes pois / non est potesta nisi a Deo». (15)

Abundam os passos em que o proprietário revela o seu aprofundado conhecimento que tem deste Deus de quem é legatário, Deus cuja natureza se confunde inextricavelmente com a do liberalismo económico – ou não fosse Ele «crente da Escola de Chicago» (21) – e de quem o proprietário cumpre escrupulosamente a incumbência da salvaguarda do lucro, em detrimento dos devaneios pueris:

Deus lucro, Madame. Lucro. Lucro, oui. / Eternidades em forma de lucro […] / Há que estar atento, Madame, evitar encargos desnecessários. / Controlar despesas. Proibir os voos dos pássaros. Abater os sonhadores inúteis. Suprimir derrapagens. (22)

Devaneios pueris de «sonhadores inúteis» que poderiam muito bem ter sido, nos avatares da História, os combates travados contra a forma mais virulenta, e propriamente terrorista, que os detentores e paladinos da propriedade têm por hábito dar ao seu poder, quando não vêem outra forma de o preservar. Sim. Apetece aqui trazer à colação aqueloutro poeta que, a propósito de «voos dos pássaros», foi dizendo «Que nos cubram de ameaças e de espanto / que nos cortem as asas mas o canto / voa muito mais largo do que as penas.»[2] E, já agora, em registo menos opressivo, mencionar que o anseio de posse deste proprietário é tal que não lhe escapa sequer o «pic-nic de burguesas» do Cesário (29) nem a sugestão de certo bicharoco camoniano-pessoano especializado em ameaçar «quem ouse devassar os limites» (29).

Nota disfórica no discurso do proprietário é a que lamenta a fragilidade e a perecibilidade do ter:

Já lhe disse, Madame, que tenho papéis? Acho que sim, que já lhe disse / que a minha fortuna está toda em papéis. Papéis, veja bem! / Hoje não há outra coisa, Madame. O documento é tudo. (30)

Ora o papel é bom condutor, e o proprietário da «riviére» não o ignora:

E sabe do que tenho medo? Um medo avassalador? De um incêndio, Madame! / Tenho medo de um incêndio. De uma labareda a / lamber toda uma vida de negócio e de fortuna registada em papéis consumíveis. /O Fogo horroriza-me, a simples ideia do Fogo. / Bastava-nos, bastava ao mundo, quero dizer, bastavam-nos a Terra, a Água e o Ar.

O discurso é metafórico e, pese embora a importância legal dos documentos em contexto societal, o que aqui sobreleva é a própria inconsistência, se não do conceito pelo menos do sentimento de posse, sentimento este que poderíamos filiar naquilo que o historiador Yuval Harari designa por «ordem imaginada», «força intersubjectiva»[3]. Construção cultural que é, a propriedade só existe porque o homem a criou e a escorou com um edifício jurídico que assegura a sua reprodução ininterrupta. Ininterrupta até que deflagre o incêndio. É que, se a ciência vê mais longe e mais fundo do que os quatro elementos tradicionais, a História mostra-se ocasionalmente acometida de tentações pirómanas, mostrando nessas ocorrências que

Um aquecimento suave, sem archotes, sem vulcões, / sem lavas nem infernos terreais, / nada que pudesse perigar o sacrossanto documento, / sem fogueiras, sem braseiros, sem fósforos ou combustões vivas (31)

serviria tão-só, como o proprietário sabiamente reconhece, para assegurar a continuidade da sua «vida de negócio e de fortuna registada em papéis consumíveis.»

O que não é pouco, convenhamos. O que é mesmo tudo, para sermos exactos, conforme exprime lapidar e sinteticamente o proprietário:

Porque nós somos o que temos, Madame, somos o que temos. / E o que interessa é o que temos. (32)

– princípio filosófico maior de quem não se revê na «corja ululante e despreocupada» daqueles que «só pensam em revoluções e em desvarios de sexo e álcool» (33), isto é, em incêndios que põem em causa a boa ordem política, social e moral.

Não que o proprietário não tenha ele mesmo conhecido tais desvarios:

Também já fui menino, Madame, também / já ouvi esse pão e essa crepitação e esse forno onde levedou um sonho inacabado. (44)

Porém, agora,

É com este fuzil, neste paredão augusto, / é com este ânimo de possuidor que eu velarei para que nada, ninguém, / coisa nenhuma devasse o que a mão de Deus pôs na minha mão. (45)

***

Anterior ao seu O Poema Triste de Deus, publicado em 2019[4], este Ça, c’est ma riviére, de 2015, apresenta uma focalização muito diferente, e não é fácil determinar qual deles se debruça sobre a problemática da relação do homem com a crença na divindade de forma mais percuciente. No Poema Triste, o alvo é um Deus cansado da sua divindade, grandemente humanizado e senhor de uma lucidez que o leva a autocensurar-se e a elogiar a ciência e o poder dos homens; aqui, o Criador aparece, no discurso do proprietário, como cúmplice, ou melhor, como autor moral de todos os desmandos e nomeadamente dos que se relacionam com a propriedade e o ter. É um Deus prosélito do capitalismo, instância suprema legitimadora e protectora de uma ordem social assente «na violentíssima partilha do mundo» (45)

Se o enfoque é diferente, há um procedimento construtivo comum aos dois poemas: as personagens centrais – Deus, no poema de 2019, e o proprietário, no de 2015 – têm uma caracterização antitética: defraudando as mais humanas expectativas, Deus denuncia-se a si mesmo, como fábula infantilizadora, e o proprietário debita um discurso apologético, na forma, mas incriminatório, no conteúdo. Em ambos os casos, é como se a “consciência” da personagem se insurgisse contra a natureza negativa da sua acção e se vingasse através de um continuado lapsus linguae.

De assinalar, enfim, uma certa ressonância proudhoniana pouco menos do que explícita em todo o poema: ao «Ça, c’est ma rivière» do proprietário, uma voz objecta «La propriété, c’est le vol».

Posto isto, Fernando Cabrita bem pode afirmar «Ça, c’est mon poème». Uma vez publicado, ele passou a ser também meu e de todos os seus leitores.

Quid juris?

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[1] Desvios ortográficos e outros são característicos da personagem.

[2] Luís Veiga Leitão, Ciclo de Pedras.

[3] «Como levamos as pessoas a acreditar numa ordem imaginada como o cristianismo, a democracia ou o capitalismo? Primeiro, nunca admitimos que a ordem é imaginada. Insistimos sempre que a ordem que sustém a sociedade é uma realidade objectiva criada pelos grandes deuses ou pela leis da natrureza.» Yuval Noah Harari, Sapiens, Elsinore, 2020,  p. 139. É evidente que todas as outras religiões, ideologias e sistemas são igualmente incluídos por Harari no grande grupo das “ordens imaginadas”.

[4] O POEMA TRISTE DE DEUS, de Fernando Cabrita, ou A LUCIDEZ DO PADRE ETERNO - Também de esquerda (sapo.pt)

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