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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

CARTA AOS MEUS PRIMOS (A propósito da CARTA AOS MEUS FILHOS do Eldad Mario Neto, no Fb

Sim, Eldad Mario Neto. Estamos a viver num mundo que já pouco tem a ver com o que nos coube em herança da II Guerra Mundial. É, de facto, um mundo multipolar que se afirma, com lógicas de índole económica e geo-estratégica em que, por vezes, é difícil perceber até que ponto as divergências são compatíveis com alianças até há pouco improváveis. Já sabíamos que a História é um processo dinâmico, alheio à linearidade, mas o materialismo histórico dava-nos (e continua a dar a alguns de nós – eu, por exemplo) um vislumbre de uma evolução consentânea com a designação algo presunçosa da nossa espécie. Alguém perguntou a Hawking se, no caso de haver vida inteligente noutro planeta, além da Terra, seria semelhante às formas que conhecemos, ou diferentes. Ele retorquiu: «Há vida inteligente na Terra?» É certo que o somos, sapiens, mas a nossa cachimónia foi-se formando por etapas e conservando frescas e vivas as sucessivas camadas, da reptiliana até ao neocórtex. Somos, hoje, o produto de um demorado ontem. No meio de tudo isto, há um largo espaço para a preocupação que manifestas e que subscrevo. E o que mais me preocupa é que, volvidos três quartos de século (é o cartão de cidadão a azucrinar-me), tantos dos meus semelhantes continuam a ingerir acriticamente doses cavalares de informação que não questionam, não problematizam, mas metabolizam com a preciosa ajuda de bactérias que passam por boas, quando são agentes patogénicos infiltrados. Tentar levá-los a pôr no xadrez geopolítico todas as peças, dos proeminentes rei, rainha, bispo, torre e cavalo, aos mais indiferenciados peões, é coisa que choca com a muralha de aço do conformismo e da alienação. A utopia é distópica para muitos, cujo alcance visual não ultrapassa a acuidade pretensamente realista do Fukuyama e da TINA. Albino Matos, há dias, equacionava aqui a necessidade, não de Deus, mas do divino, citando Giorgio Agamben, a propósito de uma entrevista de Heidegger, em 1976: «Enquanto formos capazes de perceber como divinos uma flor, um rosto, um pássaro, um gesto ou uma fibra de erva, poderemos prescindir de um Deus que possamos nomear. Basta-nos o divino, importando mais o adjectivo que o substantivo. Não é bem ‘um Deus’, mas antes: ‘só o divino nos pode salvar’». Penso que a utopia cabe bem nesta reflexão sobre o divino. Só ela nos pode salvar. Um abraço fraterno.

(publicado no Fb em 1 de Abril de 2025)