CLEPTOMANIA
Foi o Dr. Miguel Arruda ostracizado pelo partido do Dr. Coiso. Motivo: ter, alegadamente, furtado umas quantas malas nos aeroportos de Ponta Delgada e de Lisboa.
O Dr. Coiso, em Washington, imediatamente se desdobra em declarações tonitruantes q.b. para sublinhar a sua condição de Português de bem.
A comunicação e as redes sociais esmeram-se num chorrilho de piadas sobre o Dr. Miguel Arruda, como se ele fosse um qualquer delinquente de direito comum.
Eu mesmo, levado pela vozearia da populaça e sem que ninguém soubesse, planeava parodiar aquela cantiga de outrora, que era assim: «Olha a mala, olha a mala / Olha a malinha de mão, etc.», mas trocando algumas palavras, o que dava uma coisa deste gabarito:
Olha a mala, olha a mala,
mala que nem é de mão,
não é tua nem é minha,
nem daquele grande aldrabão.
De quem será esta mala,
isso é coisa que se apura
pondo a polícia no encalço
do Arruda e do … Coiso.
São apenas dezassete,
menos do que os deputados
que na magna Assembleia
ainda ficam sentados.
Agora, quarenta e nove,
quando eram cinquenta.
Temos de arranjar mais malas,
pois ninguém os aguenta.
Olha a mala, olha a mala,
uma para cada um,
urge mandá-los embora,
que não fique lá nenhum.
O Dr. Arruda, mesmo sem tomar conhecimento dos meus confrangedores versos confessa-se abalado pelas acusações infamantes e descola para o seu arquipélago, na mira de aconselhamento médico e reconforto familiar.
Pronto (ou Prontos!, se quiser). Chegado aqui, quero protestar a minha indignação pelo rigor injusto e cruel a que o Dr. Arruda está a ser sujeito pelas pessoas, em geral, e por mim, em particular.
Acto de contrição:
Não sou militante nem simpatizante (Deus me livre!) da coisa a que o Dr. Arruda pertencia nem perfilho as ideias ou qualquer outra manifestação de actividade gastro-entérico-cerebral dos dirigentes e militantes da referida agremiação (perdão: era “instituição” que eu queria dizer). Isso não me impede de verberar com veemência a injustiça de quem sentencia um humilde representante do povo com o estigma infamante de ladrão.
Como é do conhecimento de todos, a inteligência artificial é hoje um instrumento de descomunal utilidade na criação de imagens e textos que não só mimetizam a realidade como a criam. É, pois, de admitir que o Dr. Arruda tenha sido vítima da IA (em inglês, AI) e que tudo não passe de uma fake (em português, aproximadamente, falsidade). Ademais, estranha-se que roubar malas seja acto digno de tão unânime reprovação e censura, quando milhões de honestos contribuintes e cidadãos, em geral, são despojados das suas magras posses por quem dispõe dos instrumentos legais necessários (dotações orçamentais segundo critérios convenientes, isenções fiscais, operações de capitalização de instituições bancárias colocadas em pré-falência, etc.) para com elas se locupletarem ou as canalizarem para amigos.
Devemos prestar homenagem a este humilde Português de bem, que se contenta com tão pouco e, não obstante, é vilipendiado na praça pública e nos pátios privados.
Acresce um aspecto muito positivo naquilo que o Dr. Arruda fez ou no que se diz, maldosamente, ter ele feito: é que foi uma oportunidade de ouro para o Dr. Coiso mostrar a sua estupefacta indignação para com alguém apodado de corrupto – ele que tanto se esforça por encostar os corruptos à parede.
Uma última alegação a favor do injustiçado: sabe o que é a cleptomania, não sabe? Ora, o Dr. Arruda sofre, provavelmente, dessa tão incomodativa perturbação. Só pode! E, sendo assim e parecendo que é sua intenção consultar um psicólogo ou psiquiatra, é de crer que o tenhamos de volta ao areópago da democracia não tarda.
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