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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL (III)

Acto III

(Mesmo local, mesmas personagens, no intervalo seguinte)

Marlene – Como eu te dizia há bocado, em 18 de Maio, vamos exercer mais uma vez o direito de voto conquistado em 1974 (porque até aí vigorou o direito da chapelada). A um lado, temos um conjunto de forças políticas que, com diferenças pouco significativas, defendem o sistema democrático parlamentar como o pior, excluindo todos os outros; para piorar tudo, temos um partido extremista de direita, que tem singrado graças às políticas pouco diferenciadas dos Partidos da social-democracia mais ou menos bem-intencionada e que singra pelo mundo inteiro, precisamente porque explora a falácia das alegadas diferenças de linhas políticas das facções da social-democracia, desde a mais ténue, do PSD, à mais “trabalhista” e histórica, pré-blairiana, do Livre e do BE. Do outro lado, e reduzido à expressão mais simples, o PCP, que resiste e não se “moderniza”, como o Marcelo lhe sugeriu, em tempos de comentador, preocupado que estava com a perda de eleitorado comunista.

Cristiana – Como é que explicas essa desafeição? Se calhar, o Marcelo tinha razão!!

Marlene – Para o Marcelo, “modernizar-se”, como fizeram os outros PCs europeus, talvez com excepção do grego, seria social-democratizar-se e passar a ser mais um.  A desproporção entre as votações do PCP e a dos dois maiores Partidos do sistema é óbvia, mas as razões desta desafeição são múltiplas e dariam para uma ou mais teses de doutoramento. O que importa é apenas dizer que, em 18 de Maio, vamos reincidir – e, quando digo “vamos”, refiro-me aos amigos que até poderiam votar PCP / CDU, ou que até já o fizeram, noutras ocasiões, mas vão votar no PS, para evitar uma vitória do PSD / CDS. É evidente que este plural não me inclui.

Cristiana – Ó pá, o Pedro Nuno Santos é inspirador: tem um historial de rebeldia, de ruidosa oposição ao pagamento da Dívida (“Não pagamos!”), de diálogo com a esquerda à sua esquerda…

Marlen – Olha: eu até me lembro de o ter visto na Festa do Avante!, há muitos anos, com um filho (suponho) às cavalitas. Tem esse historial, é verdade. Mas quem também foi à Festa do Avante! e até ouviu a Odete Santos a chamá-lo de longe foi o …: - «Ó Marcelo!», e aqui é que bate o ponto. Qual é a utilidade, para quem quer uma mudança efectiva, de votar nos Partidos que vão continuar a promover privatizações, a desmantelar o SNS, a implementar a militarização da Europa, a encharcar-nos em propaganda pró-NATO, a degradar as nossas condições de vida, uns às escâncaras, outros em modo sonso, todos atentos à mensagem de Francisco e seus venerandos, mas dissimulando a condenação inequívoca que o defunto Papa fez desta “economia que mata”, e que é, sem margem para dúvidas, a economia capitalista, na sua versão 2, 3, ou 4.0? Francamente! Ponhamos a mão na consciência (preferentemente, a de classe): queremos mesmo mudar, ou queremos que tudo continue na mesma – mais arroba, menos quintal?

Cristiana – Eh pá! Eu acho o tipo tão giro!

Marlen – Pois, pois! Por essas e por outras é que não saímos da cepa torta. Uns, é pelos lindos olhos ou porque têm charme; outros, porque são bem-falantes, e assim por diante. Tudo menos consciência política e conhecimento de causa.

Cristiana – Então, tu, que tens isso tudo, diz-me lá qual é o verdadeiro voto útil, na tua opinião.

Marlen – Olha, o voto no PS, em 18 de Maio, é um voto útil, sim, mas de uma utilidade perversa. Como já te disse, a social-democracia anda a duas velocidades: a mais discreta avança com pezinhos de lã; a mais desbragada corta a eito. Por conseguinte, o voto no PS é, sobretudo, útil para quem goza de um certo bem-estar e acredita que, pouco a pouco, os que estão na mó de baixo vão entrar no elevador social.

Cristiana – Ora aí está! Estás a ver?! Para quê convulsões sociais, se podemos lá chegar de elevador?!

Marlen – Deixa-me acabar.

Cristiana – Acaba, acaba, que vai tocar.

Marlen – Olha: alguns até sabem que o elevador tem uma capacidade muito limitada, mas, que diabo!, não vão infernizar uma vida, no fim de contas, bem agradável só porque o elevador tem uma capacidade mínima! Logo, tomai lá, sem grandes questionamentos morais, o voto que assegura o prosseguimento das políticas neoliberais de privatização do que ainda está na esfera do Estado, de degradação dos serviços públicos, de desregulação da legislação laboral, de promoção do capital financeiro, em detrimento do produtivo, de acentuação das desigualdades sociais. Feito este trabalhinho tão útil ao capital, a União Europeia oferece ao esforçado governante um lugar ao sol (um sol ainda mais reconfortante), e o nosso esforçado governante socialista mancomuna-se alegremente com as ilustres figuras de topo da social-democracia europeia ou até da direita democrática europeia, eventualmente, mesmo, da extrema-direita europeia bem-comportada.

Cristiana – Estás a ser injusta! Ele foi vítima daquela conjura entre o Marcelo e a Lucília!

Marlen – Eu até gostava de acreditar nisso, Luciana, mas o António estava tão desejoso daquela deslocalização que tenho sérias dúvidas! Desconfio que houve ali um triângulo – amoroso, talvez não, mas amigável, sim.

Cristiana – Ora! Querias que ele assobiasse para o lado como o ex-sócio-gerente da Spinumviva?

Marlene – Não. Vista de fora, sem grandes preocupações interpretativas, foi uma atitude correctíssima. Eu é que procuro sempre esmiuçar.

Cristiana – Ainda bem que o reconheces!

Marlene – Bom, mas isso são favas contadas: o homem está na “Europa” a fazer um bom trabalho, ao serviço do capital e da defesa dos valores ocidentais. Particularmente, os valores da transatlântica indústria armamentista e afins. Retomemos o fio da nossa conversa sobre a alternância democrática, que vira o disco e toca a mesma política antidemocrática de sempre. É como um rondó: o estribilho não falta. Com uma agravante: é que parece fechar os olhos ao efeito que isso tem na ascensão do neofascismo e na emergência de uma nova ordem internacional que já não obedece a esta cartilha gasta, velha e revelha. Por isso, bom seria seguirmos o exemplo de Ulisses: amarrarmo-nos ao mastro do navio, não cedendo ao canto das sereias.

Colega – Olha o que tu foste buscar! As sereias somos nós, pá! E o Pedro está mesmo a pedi-las, mulher!

Marlen – A pedi-las?! A pedir-nos, queres tu dizer!

(amanhã há mais)