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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL (IV)

IV

(As personagens da primeira cena, na mesma esplanada, tomando outro café)

Socidemo – Mas … a privação das liberdades individuais, as restrições à liberdade de expressão, a estatização dos meios de comunicação, a concentração da economia na esfera do Estado, a Sibéria?!

Marlen – E as criancinhas ao pequeno-almoço e a injecção atrás da orelha! E o Staline, meu Deus! O Pacto germano-soviético?! O Fidel!! E o Chávez e o Maduro?! (dois comunistas, como o Allende!). E a Coreia do Norte?! Livra!

Socidemo – Isso, goza! Se passasses por isso, não ias gostar!

Marlen – Repara: não há como negar as evidências históricas. Há como compreendê-las. Compreendê-las é, necessariamente, contextualizá-las – coisa que não é nada do agrado de quem tanto se empenha em obliterar a profunda iniquidade de um regime assente em princípios desumanos que propugnam a rivalidade, a concorrência, a meritocracia chico-esperta dos que singram à custa do esforço alheio. Ora, compreender tais evidências é reconhecer que a implantação de um sistema estruturalmente diferente do sistema em vigor implica fatalmente o recurso a meios que impeçam a antiga classe possidente de retomar o poder, quer através dos seus próprios representantes, quer através de revolucionários posteriormente convertidos às doutrinas que antes combatiam.

Socidemo – Esqueces-te de que, em democracia e num Estado de direito, todos os cidadãos podem votar livremente! Se os eleitores preferem viver neste sistema, por que razão insistes em conduzi-los para o teu redil comunista?

Marlen – Olha! Nós esquecemo-nos rapidamente das lições da História. Aquando da (burguesa) Revolução Francesa, o Terror de Robespierre foi um abrir e fechar de olhos na linha do tempo da sociedade feudal que condenava milhões de camponeses à privação e à morte lenta. A morte, quando é lenta, não aterroriza, mas não deixa, por isso, de matar. O comandante-em-chefe do Exército de Itália viria, anos volvidos, a impor o seu consulado e posterior coroa imperial à França republicana. Revolução e contra-revolução. A violência proletária de 1917 e, sobretudo, do período posterior à morte de Lénine foi angustiante para muitos e injusta para alguns. Mas (odiada adversativa…) foi o meio necessário para que as grandes mudanças estruturais da sociedade russa pudessem concretizar-se. Houve excessos? Houve erros? Ninguém os nega. Mas a História nunca foi desenhada a régua e esquadro no estirador de um arquitecto. E, mais tarde, a experiência de construção do socialismo sucumbiu. Mas o sonho comanda a vida, e o mundo pula e avança.

Socidemo – Ok, mas a liberdade de escolha?!

Marlen – Referes-te à opção entre Republicanos e Democratas? Entre Biden e Trump ou entre Kamala Harris e Trump? Bela liberdade de escolha que os meios de comunicação inteiramente nas mãos do capital te proporcionam!

Socidemo – Olha, eu partilho a posição do Camus sobre esta questão. O eleitor tem sempre a possibilidade de se revoltar. Não temos é o direito de impor.

Marlen – O humanismo de Camus, que saúda a revolta e condena a revolução?! Foi justamente apodado de “burguês” por Sartre, que bem sabia da náusea de um sistema podre a carecer da varredela organizada e vigorosa das massas. A revolta é salutar, mas não chega para mudar. E o voto continua a ser o “piège à cons”, óptimo instrumento de condução do rebanho, qual rafeiro que instintivamente sempre leva as ovelhas ao redil do dono. Ignorantes da sorte que as espera. Socidemo, meu querido, a história da humanidade é mesmo a história da luta de classes. Tem avanços e recuos. E tem contradições, como as que vivemos presentemente, com o avanço da extrema-direita, ao mesmo tempo que se vai afirmando uma nova ordem mundial, com as potências emergentes a ganharem terreno na luta contra a hegemonia imperial euro-americana.

Socidemo – Reparei que resumiste a contextualização histórica a umas vagas considerações sem nada de concreto…

Marlen – Claro! Íamos ficar aqui a tarde inteira a esgrimir factos e números, sem chegarmos a acordo. Além disso, íamos alongar exageradamente uma peçazinha que não aspira a galhardetes.

Socidemo – Bela desculpa!

Marlen – Tá bem, deixa! Aconselho-te a procurar fontes que não sejam exclusivamente os órgãos de comunicação dos detentores do capital. Quanto mais não seja, para teres uma ideia da diversidade que tanto aprecias.

Socidemo – Bem pregas tu, mas quem te ouve? Já agora: em quem vais votar no domingo?

Marlen – No próximo domingo, vou votar CDU. Como sempre. Depois, continuarei a imitar o Padre António Vieira. Pregando aos peixes. «E posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte a costumada graça. Ave Maria.»

(Pagam e saem. Desce o pano, onde se pode ler:

COM A CDU, A TUA VIDA IMPORTA, O TEU VOTO CONTA!)