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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL

(Peça previsivelmente em quatro actos, que não são de malvadez, talvez mais de lucidez, pese embora possam causar alguma azia, por via da sua acidez, pelo que se recomenda a seguinte posologia: tomar um acto por dia, entre o almoço e o jantar, com um copo de vinho a amenizar)

Personagens do acto I:

Socidemo: espécie de gentleman, alto, anafado, bem-humorado, seguro de si e do seu estatuto, crente de que é possível melhorar substancialmente a sorte da humanidade através do diálogo e sem convulsões sociais.

Marlen: esguia, enverga um macacão azul escuro, ostenta algum cansaço, mitigado pela convicção que põe no que diz, firmemente convencida de que serão as condições materiais da existência a mudar radicalmente as relações entre os homens (lato sensu).

 

Acto I

(Esplanada de um café da cidade, perto de escola. Socidemo e Marlene, professores, estão sentadas, um diante do outro, e sorvem periodicamente um golo de café)

 

Socidemo – O teu voto ideológico cheira-me a imperativo categórico. Não admites que o voto possa obedecer a imperativos meramente circunstanciais e não, obrigatoriamente, a um arquétipo de virtude, tipo compromisso moral com uma humanidade idealizada, estilizada, adaptada ao teu dogma?

Marlen – Ena, pá! Onde tu já vais! Há circunstâncias, na vida política, em que se justifica, de facto, o recurso ao voto num Partido, ou numa pessoa, que não aqueles em quem confiamos.

Socidemo – Qual é o Partido em que confiamos?

Marlen – Em princípio, é aquele que defende os nossos interesses ou os interesses da classe a que pertencemos, ou os interesses da classe que entendemos ser a que empunha a tocha do futuro. Bem sabes que, para mim, essa tocha é a da justiça social, da igualdade, da fraternidade. Se chamas a isto imperativo categórico, é lá contigo. Eu não navego muito pelas minhas circunvoluções cerebrais para chegar à conclusão de que, sendo o mundo o que é, há que mudá-lo. E mudar é, necessariamente, ir contra o que está mal e aqueles que pretendem reproduzir incessantemente o que está mal.

Socidemo – Reparei que falaste de justiça social, igualdade, fraternidade. Só te esqueceste da liberdade!

Marlen – Estás enganado! Só falei da liberdade! A liberdade nada mais é do que a justiça social, a igualdade e a fraternidade. Ou acharás tu que há liberdade sem justiça social, igualdade e fraternidade, quando, tantas vezes, a liberdade a que te referes é só formal?! A mim, interessa-me a liberdade substantiva: a paz, o pão, habitação, saúde, educação, .... Conheces, não conheces? Sem isso, onde está a liberdade?!

Socidemo – Pois! … Olha que, afinal, não estamos assim tão distantes um do outro.

Marlen – Talvez não. Também já votei útil – em Mário Soares e em Jorge Sampaio, pelo menos. Engoli sapos vivos, uma ou outra vez, e a má digestão inspirou-me dúvidas sobre a real utilidade desses votos. Aquando da liça Mário Soares / Freitas do Amaral, a coisa até me parecia líquida e mesmo dispensadora de um Congresso convocado e realizado no curto espaço entre as duas voltas. É que, apesar da relação espúria de Mário Soares com o Frank Carlucci, Freitas do Amaral representava a facção mais reacionária do espectro político. Não havia que hesitar na deglutição do sapo. E, no entanto, não só a digestão foi difícil como o antagonista se veio a revelar um homem capaz de mudar a agulha a concepções políticas inaceitáveis para a esquerda e assumir comportamentos bem mais digeríveis, condenando, p. ex., os bombardeamentos da antiga Jugoslávia e o seu desmembramento pelos EUA/NATO, no final do século XX. O demónio reaccionário que tinha justificado o voto útil em Mário Soares acabou ministro de Sócrates (outro reputado socialista…) e até tive vontade de votar útil nele (Freitas), caso voltasse a candidatar-se à Presidência.

Socidemo – Votar no Freitas?!

Marlen – Sim, sim! Não foi ministro do teu Partido?!

Socidemo – Bom, mas, então, sempre reconheces a utilidade do voto útil?

Marlen – Reconheço, sim. Mas olha que o voto em Mário Soares talvez tenha sido, sobretudo, uma reacção visceral de defesa perante um perigo que não seria tão iminente quanto parecia: o socialismo tinha sido, há muito, metido na gaveta. Aliás, a metáfora nem faz sentido. De socialismo, só no PREC se vislumbrou algum lampejo.

Socidemo – Então, e o Jorge Sampaio?

Marlen – O Jorge Sampaio defrontou um rival que era de todo em todo intragável. Quase nem se punha a questão política; a repulsa era, e é, ainda mais visceral, e nem vale a pena gastar cera com tão mau defunto.

(Continua amanhã)