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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

DA PERVERSA INUTILIDADE DO VOTO ÚTIL (II)

Acto II

(Sala dos professores da escola. Marlen e Cristiana, sentadas, conversam amigavelmente)

 

Marlen – Pois é. Já lá vão quase cinquenta anos, desde a aprovação da primeira Constituição democrática.

Cristiana – Com as tuas ideias, achas a Constituição democrática?!

Marlen – Acho. É uma Constituição progressista, razoavelmente consagradora da centralidade do trabalho na nossa sociedade, mas paulatinamente sujeita a revisões e adaptações que lhe vão deixando à vista as reais intenções da classe dominante.

Cristiana – Ah, bom! Então, será mais uma Constituição democrática burguesa!...

Marlen – É isso. Tu lá vais desvendando os mecanismos da maquinaria social. Mais umas conversas e alinhas comigo! Realmente, os Partidos alternantes na cúpula do Estado sempre se congraçaram para manter o poder entre as mãos bem tratadas de governantes ditos socialistas, ou social-democratas, de discurso mais ou menos inçado de galanteios aos mais desfavorecidos, mas igualmente inócuos, na melhor das hipóteses, quanto aos efeitos nas condições de vida do povo-povo.

Cristiana – Essa do “povo-povo” lembra-me qualquer coisa.

Marlen – Lembra-te a feliz reduplicação do Visconde de Almeida Garrett, liberal dos quatro costados, num tempo em que o liberalismo não tinha os contornos que tem hoje.

Cristiana – É isso! E mais: ele diz que o Cristianismo foi a revolução do mundo antigo e que a Revolução é o Cristianismo do mundo moderno.

Marlen – Não. Isso foi o Antero, nas Causas da Decadência…

Cristiana – Tens razão. Vê-se que tens a lição bem estudada. Achas que estamos preparados para este Cristianismo moderno?

Marlen – Acho que não. Acho que andam por aí uns pregadores do pensamento único que conseguiram converter um sem-número de infiéis à religião do deus TINA.

Cristiana – O quê, a Albertina?!

Marlen – Não, mulher! Não me digas que não conheces a sigla?

Cristiana – Quem é a Sigla?!

Marlen – A sigla TINA, mulher! There Is No Alternative!

Cristiana – Ah! Desculpa lá. Estava noutra onda.

Marlen – Olha! Vamos ter, em 18 de Maio, uma nova oportunidade de votar útil. A concentração dos votos de esquerda no PS poderá, talvez, dar-lhe a maioria e contrariar a permanência do PSD / CDS no poder. O problema é que os Partidos de esquerda, com a excepção do PCP, são todos Partidos reformistas, Partidos que afirmam (claro que não desta maneira tão crua) a possibilidade de melhorar o capitalismo e, com isso, as condições de vida do povo, à semelhança do que aconteceu nas social-democracias do centro e norte da Europa. Os social-democratas verdadeiros (este adjectivo carece de escrutínio rigoroso!) acreditam mesmo na possibilidade de se chegar a uma sociedade em que o bem-estar geral é possível, sem que haja necessidade de avançar no sentido da eliminação progressiva das classes sociais. Acham que os interesses dos detentores dos grandes meios de produção e os interesses dos trabalhadores não são antagónicos, inconciliáveis, mas sim harmonizáveis, no contexto da negociação e concertação social. Partilham a doutrina social da Igreja e a crença numa Terceira Via blairiana. Esqueceram-se em absoluto da perspectiva dialéctica do desenvolvimento em espiral, que vê na luta dos contrários (tese – antítese - síntese) o motor da História e ignoram a lição de Marx: a história da humanidade é a história da luta de classes. Os falsos social-democratas (desconfio muito destes adjectivos…) servem-se da designação, apenas, para dar um ar de legitimidade às suas reais intenções, que não são nada dignas de respeito.

Cristiana – Espera lá! Queres tu dizer que temos uma dança de cadeiras, a que chamam alternância democrática, e que redunda na permuta cíclica de um Partido social-democrata de discurso mais à esquerda (a privatizar a ritmo mais lento, a ceder eventualmente um pouco mais nas negociações sindicais, a defender causas um pouco mais inovadoras) por outro Partido social-democrata de discurso mais à direita, sendo que o primeiro é tendencialmente mais eficiente nas questões de natureza cultural ou civilizacional (IVG, eutanásia, ideologia de género, casamento homossexual, etc.) e o segundo mais eficaz na promoção dos interesses materiais dos detentores dos grandes meios de produção: privatizações, baixa do IRC, “reforma” da TSU (lembras-te do Passos Coelho a fazer marcha à ré?), etc.

Marlen – Nem mais. Assim é que é falar! Até já pareces eu! Lembras-te do Passos Coelho a fazer marcha à ré?!!! … Queres preencher já a ficha de adesão ao Partido?

Cristiana – Agora não, que vou ter aula já a seguir, mas lembro-me dessa do Passos Coelho. Quem não se lembra! Ouve lá uma coisa: achas mesmo que não há diferenças entre eles?

Marlene – Há. Algumas. São consistentes, duradouras, conducentes a uma mudança efectiva nas relações de produção, nas relações sociais, na defesa e promoção de uma ordem mundial consentânea com os superiores interesses da humanidade enquanto um todo? Seguramente, não. Os desafios do tempo são sempre diferentes e complexos. Os do nosso tempo são-no mais, porque o nosso tempo é mais veloz e porque o nosso potencial de destruição supera o nosso poder criador, que é já muito grande.

Cristiana – Sabes que mais? Está quase a dar o segundo toque. Vamos ficar sem clientes.

(amanhã, há mais)