DO HUMANO
Sei muito pouco sobre o humano, apesar de o ser, garantidamente.
Lamento já quase só me lembrar do título da Condição Humana, do Malraux, que li já lá vão uns cinquenta anos, ou à volta disso. Já agora, desculpe, se é que me está a ler. Vou dar uma espreitadela à Wikipedia e já volto. É só um instantinho.
Pronto. Já cá estou. Do enredo, ainda tinha uma vaga ideia: os guerrilheiros chineses na via sacra (então, pá, e as maiúsculas?! pra que servem?!) da acção revolucionária dos anos 20, que acabaria por ter êxito em 1949. Sossegue! Não o vou maçar com informação que temos debaixo das falangetas. Deixe-me só dizer-lhe que, em 68, o Malraux deixou gente de esquerda (não sei ao certo quanta) desconcertada, porque a bota da Condition Humaine não batia com a perdigota do alinhamento com o De Gaulle, por muito louvável que tenha sido (acho que foi) o comportamento do General, imediatamente antes (appel du 18 juin 40) e durante a Ocupação nazi (France Libre). Outro parêntesis (este não assinalado graficamente, mas exigido pelo estendal desta erudição dos diabos): «Uma Europa do Atlântico aos Urais!». Bravo, mon Général! Como diz a Ana Paula Ferreira, «O ser humano é uma criatura complexa, marcada por emoções, pensamentos e interacções sociais».
Voltando ao Humano: há uma frase no artigo da Wikipedia que diz tudo, se é que, sobre o Humano, é possível dizer tudo, que não é: «La singularité du roman (aquele a que me venho referindo) réside en ce qu'il fait coexister la conscience de l'absurde avec la certitude de pouvoir triompher de son destin, grâce à l'engagement dans l'Histoire». Camus, que conheceu pessoalmente Sísifo e o viu a empurrar o rochedo pela encosta acima para logo desabar até ao sopé da montanha, viu nele o herói absurdo – o que não surpreende, ou não fosse aquela tarefa um castigo imposto pelos deuses, useiros e vezeiros nestas manigâncias para com os humanos. Mas, dado a reflexão sobre o comportamento do seu semelhante, Camus atarda-se a observá-lo num momento de efémero descanso e conclui: «A luta pelos cumes é quanto basta para encher um coração de homem. Temos de imaginar Sísifo feliz». Cá está: como dizia Fernando Birri (não conheço), citado por Eduardo Galeano (conheço), por sua vez citado por Eldad Mario Neto (conheço, claro!), que seja a UTOPIA a fazer-nos caminhar! Não posso estar mais de acordo. É «triunfar sobre o destino graças ao compromisso com a História».
Mas «nós temos alguma importância?», pergunta retoricamente a Cecília Pedro. Tenho lido umas coisas sobre o absurdo da condição humana, não só em Camus (com quem mantenho uma relação de amor-ódio, passe o exagero melodramático); também em gente que aborda a questão sob um olhar menos literário (Nietzsche, Freud, Sartre, Morin, Harari, …), e penso que sim. Temos alguma importância, ou estes fulanos não se teriam dado ao trabalho de se debruçar sobre o absurdo da nossa condição.
A questão do Humano está estreitamente ligada à do sentido da vida – coisa que não existe, como não existe natureza humana (Sartre). Admitir uma “natureza humana” é pressupor que fomos concebidos pelo detentor de um projecto original e que, no fundo, cumprimos um destino – concepções idealistas que repugnam ao materialista. Claro que seria mais estimulante (será que seria?) acreditar que alguém de condição superior à nossa se deu ao trabalho de nos criar, a nós e a tudo o que existe (segundo certas fontes, no prazo de uma semana). O que existe é, de facto, tanto que apetece perguntar se temos alguma importância. O Jorge Raposo responde muito poeticamente que «Somos alquimistas frustrados e magníficos, inventores de mundos que nunca existiram, de amores que transcendem o impossível, de eternidades que duram o breve instante de um suspiro». Que bonito e quão verdadeiro! A Paula Raposo, aparentemente, subscreve: «Não quero ser o ser humano / que guerreia, mata inocentes / a eito, desfaz cidades / e em atroz ferocidade / deixa meio mundo às cegas.» Já o Luís Lapa faz do Humano uma pintura tão disruptiva que nem o Bosch. É verdade, todavia, que «De humano a desumano, por vezes, basta um simples passo», conforme se queixa a Maria Carvalho Amador.
Quanto à vida, como o Humano, ela é aquilo que cada um faz dela, no uso que dela faz, sendo que dispõe sempre da angustiante liberdade da escolha. Não escolher é já fazer uma escolha (que banalidade, meu deus!)
Bom, para não me eternizar por estas bandas, até porque a hora do jantar se aproxima e me interpela a consciência estomacal, quero inverter o rumo atabalhoado desta reflexão com um complemento que, como o resto, nada tem de original e que se inspira em Morin, cujo se inspira também em muitos outros, isto porque o humano é muitíssimo inspirador. De modo mais emotivo, a Mar Maria Frazão diz que «ser humano é a capacidade de iluminar a noite / resgatar do choro um riso largo / e fazer brotar a gratidão de um coração ferido». Subscrevo, e, continuando a ignorar o apelo do estômago, acrescento, desajeitadamente, que o homem, no seu percurso existencial, se depara com inúmeras dificuldades a superar. (Já viram bem esta propensão para tratar o assunto como quem redige um protesto no Livro de Reclamações?!) A realidade é demasiado dura para a podermos suportar em permanência. Daí a necessidade da fantasia, do sonho, do mito, da festa, da celebração. E da utopia. Homo faber, Homo sapiens, Homo demens, diz o Morin. O humano é essa enorme complexidade, e sabê-lo é meio caminho andado para uma convivência sã e pacífica, em que a Sara Mafra parece não acreditar: «encontramos amigos para a vida / e fodemo-los, para não variar / porque a raiva importa mais / do que uma língua que solta poesia / e que finalmente nos complete esta merda de vida vazia / que é a alma / que nos obriga a uma procura idiota por sentido, / ou, provavelmente, uma ligeira e ténue calma / só que somos humanos / e sabemos, sem nunca nos contarem / que nessa busca, nessa eterna agonia, / encontraremos / apenas / a beleza nojenta da nossa porcaria.»
Julgo ter compreendido, tanto quanto me é dado compreender, o que é o Humano: uma refrega permanente entre contrários que se digladiam. Bom apóstolo, prego o diálogo e a tolerância, sem abdicar das minhas convicções e da liberdade de as defender com unhas e dentes. Mas sem ofender, que as unhas andam quebradiças e os dentes têm melhor uso à hora dos repastos (isto está a tornar-se obsessivo!). Enfim. Uma dessas convicções é a de que a compreensão e a tolerância têm de ser ponderadas, para se não dar azo a que a incompreensão e a intolerância assumam proporções desumanas e acabem por levar o sapiens de regresso à caverna, que não a de Platão. Desta ponderação pode resultar, pois, uma ilação contraditória com o espírito de tolerância que, há instantes, se reclamava. Contraditória? Não sei. O humano é contraditório. Por condição. Não por natureza.
Vão em paz.
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(Contributo para uma discussão sobre o Humano, a convite do Eldad Mário Neto, na sua página do Fb)