ELOGIO DA UTOPIA
Há homens que lutam um dia e são bons,
Há outros que lutam um ano e são melhores,
Há os que lutam muitos anos e são muito bons,
Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.
Bertolt Brecht
Cepticismo, agnosticismo, niilismo andam de mãos dadas na infrene tarefa de julgar tudo pela mesma bitola e de tudo meter no mesmo saco. A rasoira céptico-agnóstico-niilista nada poupa à sua sanha igualizadora.
Harari, que é seguramente um homem culto, participa de forma convincente na referida tarefa, metendo ideologias, religiões, objectos como o dinheiro e conceitos como os direitos humanos na mesma grande sacola das “realidades imaginadas intersubjectivas”. São importantes “forças motrizes da história” (verdadeiras «forças materiais, quando se apoderam das massas», como diria outro homem culto, esse do século XIX e que mudou a face do mundo), mas não passam de crenças numa “ordem sobre-humana”. Não discordando de boa parte das observações e reflexões de Harari, contesto outras, pelo menos em parte, por questões de razão pura e de razão prática.
Relativamente à razão pura, creio ser, de todo, absurda a classificação da utopia de uma sociedade sem classes, por exemplo, na categoria das religiões (neste caso, «religiões da lei natural», Harari, Sapiens, Parte III, 12). A religião, herdeira da magia e do totemismo primitivos, tem como traço fundamental a crença idealista na sobrenaturalidade, isto é, num mundo de algum modo especular do nosso (“especular” - de espelho), mas imaterial e totalmente alheio às nossas percepções sensoriais; o materialismo dialéctico, obviamente, não parte desse pressuposto, nem se inspira em mitos como os da Idade do Ouro ou do Éden, conforme insinua Eliade, no seu O Sagrado e o Profano, ainda que propugne a “conquista do céu”, ou seja, a realização do “Éden” possível na Terra. Fá-lo com base no estudo das sucessivas formas de organização da sociedade humana e nomeadamente dos seus sucessivos modos de produção material, infra-estrutura de todas as construções culturais (leis, ideologias, religiões, …). Chamar a isto religião é dar ao termo uma extensão que o bom senso e o dicionário não consentem, mas que serve interesses menos desinteressados (…), configurando uma espécie de argumento ad hominem: «Dizes-te ateu e defendes o comunismo, que não passa de uma religião?!»
Quanto à razão prática, encontramo-nos perante a dificuldade inerente aos conceitos de “imperativo categórico” (Kant) e de “ordem moral” (Nietzsche / Sartre). Por muito “imaginárias” que sejam as construções mentais do homem, elas são projectos que visam a prossecução de fins mais ou menos justos, mais ou menos nobres. Vilipendiar a “ordem moral”, muito por aversão figadal ao cristianismo (Nietzsche) ou, mais serenamente, negá-la, por indução decorrente da inexistência de Deus (Sartre) não significa que a vida em sociedade seja possível sem o respeito de normas que limitam a liberdade individual. Não havendo «essência humana», cabe a cada um de nós, no uso da nossa liberdade, criar essa essência (Sartre); não havendo «ordem moral», cabe-nos inventá-la.
Do mesmo modo, o projecto de construção de uma sociedade sem classes – utopia não determinada geneticamente no ser humano, «realidade imaginada», como qualquer projecto de natureza política ou social – pode ser objecto de controvérsia, de desvios, de desconfiança. Porém, ser equiparado a invenção mistificadora é, no mínimo, pretensão destituída de fundamentação séria. O cristianismo, entendido apenas como utopia da fraternidade e da solidariedade entre os homens (valores que Nietzsche abomina e atira para debaixo dos pés do seu super-homem), sem a sua componente propriamente transcendental, não se distinguirá substancialmente daquela por que lutam encarniçados ateus.
Por outro lado, a frase «o homem é o lobo do homem» compaginada com o conceito de «natureza humana» subjacente às referências à «ganância humana» e ao «princípio de sobrevivência» (Gabriel Meiller) remetem para uma realidade insofismável, sim, mas dentro de uma contextualização infra-estrutural: a chamada «natureza humana» não existe como dado apriorístico (Sartre); ela é função das condições materiais em que nos movemos (Marx, Engels), e, se a história conhecida foi sempre marcada por profundas desigualdades determinantes de comportamentos adaptados a essa realidade, uma realidade estruturalmente diferente determinará uma consciência necessariamente diferente. Por outras palavras: numa selva, eu serei obrigado a matar para sobreviver (metáforas da sociedade capitalista); numa sociedade organizada em moldes totalmente diferentes das que conhecemos até hoje, o meu egoísmo “natural” deixa de ser “necessário”, porque não só eu terei aquilo de que necessito sem ter de o disputar ao meu semelhante, como me estará vedada (enquanto a minha consciência não tiver evoluído o suficiente) a possibilidade de obter mais do que aquilo de que necessito, em detrimento desse meu semelhante. O meu semelhante, por seu turno, ver-se-á impossibilitado de usar da sua astúcia, em detrimento da minha ingenuidade, porque uma super-estrutura estatal dissuasora lhe fará sentir que aquela sociedade não é para velhacos.
«A história da humanidade é a história da luta de classes» (Marx), mas é também a história de uma demorada infância da qual a humanidade ainda não saiu. O capitalismo corresponde a uma fase de desenvolvimento do modo e das relações de produção que conhece crises cíclicas sistémicas e que não é o apregoado “fim da história” de Fukuyama. É absolutamente certo que a História não avança de forma linear, sempre no sentido de maior harmonia, justiça e bem-estar. Somos um animal hiper-complexo e “crísico” (Morin). Como qualquer criança e adolescente, fazemos uma longa aprendizagem. De vez em quando, da acumulação de contradições que o sistema vai acomodando resulta uma mudança qualitativa positiva (esclavagismo, servidão, assalariado), mas também se verificam recuos, geralmente mais ou menos camuflados pela alteração do quadro envolvente (o assalariado goza de direitos que o servo da gleba não tinha, mas é vítima dos desmandos próprios da sua contemporaneidade). É claro que a classe dominante tem múltiplas armas à sua disposição para assegurar o seu domínio, desde as armas propriamente ditas até ao aparelho ideológico, bem mais subtil e de difícil denúncia, que vai da telenovela diária à homilia dominical, das «tribos, modismos, símbolos» aos «restaurantes, shoppings, bordéis, etc.» (Gabriel Meiller). Ou à mistificação que consiste em amalgamar o que não é confundível. E fá-lo de forma tão convincente que leva atrás de si, muitas e muitas vezes, aqueles a quem menos interessa embarcar em tais teorias, aqueles que «nada têm a perder e têm um mundo a ganhar».
A resposta à insidiosa lei da inevitabilidade («o mundo sempre foi assim e sempre há-de ser») não é a deserção. A história da humanidade é também a demonstração de que a utopia de hoje é a realidade de amanhã. E são os homens que detêm a pedra filosofal capaz dessa transmutação.