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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Escatologicamente

“As pessoas têm a ideia que a morte é a solidão total num nada completo. E provavelmente é. Mais: tenho a certeza que é, mas não somos capazes de conceber isso. Não aceitamos conceber isso. De forma alguma nos resignamos a isso. E assim nasceram as religiões. Que todas elas nos prometem, nos garantem, nos juram a existência do dia seguinte e o tornam mais ou menos aceitável.”

António Lobo Antunes, “O senhor Barata”, in “Visão” n.º 1288, 9 a 15/11/2017

 

“A vida é ai que mal soa”, etc., dizia o poeta e encadeava outras imagens com aparente naturalidade: “sombra que foge”, “nuvem que voa”, etc. Já eu, escrevo “A vida é…” e estaco, hesitante, à procura de um predicativo para este sujeito. Farto da espera, volto-me para a morte. Só que, também aqui, a procura do predicativo se me depara trabalhosa e embaraçante. Começo por alguns adjectivos, sempre mais fáceis de alinhar do que metáforas, que requerem a predisposição poética que me falece. Será a morte ‒ e refiro-me, claro, à morte do ser humano consciente, senhor de uma vida plena e empenhado em projectos que a nutriram qual seiva ‒ será a morte, dizia eu, dramática, isto é, pungente, mas, ainda assim, vivida (se é possível dizê-lo) como algo (ai, este indefinido tão rasca!) da estrita esfera do natural e humano? Ou será ela trágica, quer dizer, algo (novamente!) revelador do capricho dos deuses? Claro que a segunda hipótese sempre nos parece mais consentânea com a dignidade da espécie. A mim, todavia, esta história dos deuses não me convence. E também não encontro imagens que possa contrapor às que o poeta de Messines alinhou com aparente naturalidade. A vida é menos que um ai? É ai que nem soa? Decididamente, nem como paródia a coisa funciona. Decido-me, então, a ser vulgar, e completo a frase carecente de predicativo: “a morte é… uma merda”. Estranhamente, reparo que não estou longe de ser profundo e filosófico. É que, quando a defecação se me torna caprichosa, ocorre-me perguntar que tipo de relação poderá existir entre os étimos gregos skatós e éskhatos ‒ respectivamente, “excremento” e “último”, conforme diligentemente elucida o dicionário Priberam ‒ étimos que convergiram no mesmo termo: “escatologia”. Não havendo dúvidas quanto ao facto de as fezes serem o estado último dos alimentos a que lográmos retirar tudo aquilo de que o nosso organismo necessita para repor as energias despendidas na azáfama da vida, será bem mais temerário associar uma “teoria sobre o fim do mundo e da humanidade” a um “tratado acerca dos excrementos”. Certo é que jamais me ocorreria trocar as doces imagens que João de Deus colou à definição de vida pelo meu soez nome comum. Já quanto à morte, insisto, é mesmo merecedora do escatológico predicativo. Isto porque, apesar de tudo, a gente se habitua ao “ai que mal soa”, à “sombra que foge”, à “nuvem que voa”, ao “sonho tão leve” que “como o fumo se esvai”. Que importa que seja efémero ai, fugidia sombra, esvoaçante nuvem, vago sonho, desvanecente fumo? Seja o que for, a gente habitua-se e, depois, torna-se difícil, ou mesmo de todo impossível, entender que tudo possa continuar a existir sem nós, para lá de nós. Tanto mais que somos, todos, do mais simples Severino da morte e vida ao mais sofisticado doutorado, dotados das mais extraordinárias aptidões, ainda quando a vida não propiciou a sua passagem da virtualidade à concretização. Como é, pois, possível que algo (lá está ele, de novo!) tão singular e assombroso se apague assim, como se de insecto indistinto, igual a todos os demais da espécie, se tratasse? Inaceitável, de todo. Daí, a minha insistência: a morte é uma… chatice, para evitar o registo mais escatológico. Uma chatice necessária, dir-me-ão, já que se impõe deixar lugar para os vindouros ‒ os que hão-de vir e os que já estão, e estão sempre, a chegar. Com a desculpa do espaço vital já nós sabemos que se cometem às vezes barbaridades. Talvez seja, por isso, preferível reconhecer que a morte é mesmo lixada (adjectivo predicativo que não melindra grandemente os ouvidos do sujeito). Não bastaria morrer em nós apenas o que ocupa muito espaço, deixando viver aquilo que poderia continuar a pensar e a produzir? Vão-me dizer que não seria a mesma coisa, ou então que isso já acontece com aquela coisa a que chamam alma. Permitam-me discordar. Quanto à alma, sinto muito, mas é um conceito que me é estranho: não havendo matéria, não há suporte para mais nada. O não ser a mesma coisa, já aceito, mas há que reconhecer que, entre o apagamento total e definitivo e a sobrevivência de uma parte de nós, a saber, a consciência apoiada numa porção diminuta de corpo, sempre é menos deprimente esta última hipótese. Hipótese académica, está claro. Mas hipótese que acabaria de vez, suponho, com toda e qualquer veleidade escatológica: com cérebros eternos e sem aparelho digestivo, adeus teoria sobre o fim da humanidade, adeus excrementos.