FAUSTO E O NEGÓCIO DA CHINA
Todos conhecemos melhor ou pior a história do sábio Fausto, lenda da Baixa Idade Média, retomada por Goethe nos finais do século XVIII e primeira metade do século XIX.
Muito resumidamente, chegado a velho e insatisfeito com a sua vida:
Para brincar somente, sou mui velho;
Para não desejar, mui moço ainda. (vv. 1563-1566)
e pouco preocupado com a “outra vida”:
Pouco monta
O outro mundo tem pra mim; se este
For um dia ruínas, muito embora
Venha outro depois! É desta terra
Que brotam meus prazeres, minhas penas
Este sol alumia. […] (vv. 1671-1676)
Fausto faz um pacto com Mefistófeles (traduzindo: vende a alma ao Diabo – Diabo com maiúscula merecida, enquanto émulo de Deus), pacto graças ao qual recupera a juventude e a capacidade de fruir plenamente da vida. O contrato é selado com um pingo de sangue do velho aspirante a jovem, que se apaixona por Margarida e a seduz, com a preciosa ajuda do demoníaco outorgante. Margarida é vítima da censura social, é encarcerada, e Fausto, atanazado pelo remorso, faz tudo para salvá-la. Em vão. Margarida acaba por morrer. A primeira parte do poema-tragédia acaba aqui, mas, na segunda parte, vemos um Fausto resgatado pelo amor, transfigurado moralmente, resistindo às sucessivas tentações do seu credor, e dando corpo a projectos em benefício da comunidade.
Ora, aqui chegados, há que tirar, pelo menos, duas ou três conclusões:
a primeira é que o pacto leva Fausto a cometer uma indignidade, mesmo à luz de princípios morais mais distensos hoje do que na Idade Média ( no fundo, algo equivalente a dissolver uma droga na bebida servida na discoteca);
a segunda é que Mefistófeles não sai vencedor desta contenda, uma vez que Fausto comete uma malfeitoria, mas resgata-se moral e socialmente;
a terceira é que o contrato que Fausto faz com o Diabo é aquilo a que se chama um “contrato leonino”: contrato em que uma das partes é claramente beneficiada em relação à outra. Trocando por miúdos: o que Fausto vende ao Diabo é uma realidade virtual (“verdade imaginada” ou “realidade intersubjectiva”, diria Harari), uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, o vazio. Em contrapartida, Mefistófeles dá-lhe a juventude. E promete-lhe Margarida. O vencedor iniludível é Fausto. Fausto, herói do nosso tempo. Um negócio da China.
Não me atrevo a tirar mais conclusões, a não ser esta: Fausto dá corpo e consistência à consciência contemporânea decorrente dos avanços da ciência, nomeadamente no que concerne à biotecnologia e à crescente capacidade de aumentar a longevidade humana, na senda de uma imortalidade relativa (passe a incongruência).
Se estivesse ao meu alcance, proporia ao Parlamento uma lei que instituísse o Dia de Fausto, como feriado nacional. Evitar-se-ia o incómodo, para a economia, de mais um dia de ócio, fazendo-o coincidir com o 10 de Junho. O âmbito da celebração passaria a ser Portugal, Camões, Fausto e as Comunidades Portuguesas.
Segundo alguns, o nosso Poeta Maior só escreveu os dez cantos da epopeia para que lá coubesse o Canto IX, mui adequado para deliciar o leitor, em geral, e compensar os jovens, em particular: volvidas as agruras da divisão de orações, tomai lá o conúbio na Ilha dos Amores.
Margarida e as ninfas valem bem a alma. E as glórias do Império.