Golpe de Sorte / Coup de Chance (uma coisa assim a modos de crítica)
Fã de Woody Allen, lá fui ver o Golpe de Sorte. Abstenho-me de considerações sobre planos, sonoplastia e por aí adiante, que não sou crítico de cinema. Mas abalanço-me a dizer umas coisas sobre a narrativa.
A história é banal, até certo ponto: uma jovem e bela mulher, Fanny, casada com um homem cuja profissão consiste em “tornar os ricos mais ricos” – Jean Fournier – cruza-se na rua, por acaso, com um antigo colega do Liceu, agora escritor a tempo inteiro – Alain. Felizes por se reencontrarem, não tardam a declarar uma atracção recíproca e irrefreável, e não se ficam pelas palavras. Jean, estranhando mudanças comportamentais de Fanny, contrata um detective, que rapidamente deslinda a marosca. Incapaz de digerir a humilhação e de renunciar à mulher, que ama apaixonadamente, Jean procede a novo contrato, desta vez com assassinos a soldo, que se encarregam de fazer desaparecer, sem deixar rasto, o maldito concorrente. Destroçada, Fanny atribui o desaparecimento a desistência do amante e restabelece a conjugalidade temporariamente subvertida. À mãe, que interpretara lucidamente os sinais da infidelidade, confessa o relacionamento extraconjugal.
Num convívio festivo com amigos, alguém fala do desaparecimento misterioso e nunca esclarecido do sócio de Jean, anos antes, o que terá sido determinante para a prosperidade financeira deste último. Na altura do desaparecimento, aventara-se a hipótese de suicídio ou de homicídio. Atenta a estes pormenores, a mãe de Fanny intui a possibilidade de este novo desaparecimento ter uma causa não exactamente coincidente com a que Fanny imaginara e faz uma busca na secretária do genro, onde encontra o cartão-de-visita do detective. Determinada a não deixar morrer o assunto, faz-se passar por esposa traída e aconselhada pelo Senhor Jean Fournier a recorrer aos preciosos serviços do detective. Este reconhece tê-los prestado.
A princípio, descrente, Fanny acaba por encontrar uma prova de que, realmente, Alain não a tinha abandonado, o que corrobora a tese da mãe, segundo a qual Jean estaria por detrás dos dois desaparecimentos misteriosos.
Tendo surpreendido uma conversa entre mãe e filha, Jean Fournier, descoberto, decide reeditar, agora com a sogra, a sentença lavrada em relação a Alain, mas algo corre mal e, numa caçada, em vez da sogra, é ele mesmo, qual veado, quem é mortalmente atingido.
Contada a história, cujo desenrolar temporal poderá ter sofrido um ou outro desencontro, vamos à crítica da narrativa – neste caso, fílmica, mas narrativa à mesma.
Saí da sala com o desagradável sentimento de Allen não ter sido tão bom quanto eu esperava. E porquê? Foi a pergunta que me fiz, ao sair, e demorei algum tempo a pôr as ideias em ordem, revendo a acção do filme na cabeça. Talvez seja ingenuidade congénita, mas a construção da personagem do marido pareceu-me algo inverosímil. É que todo o comportamento de Jean Fournier com a mulher, a sogra e os amigos indicia uma personalidade equilibrada e sentimentos nos antípodas da psicopatia. É verdade que a sua actividade profissional não me inspira nem confiança nem simpatia, mas, que diabo!, daí até assimilá-la ao homicídio puro e simples vai alguma distância. A discrepância incomoda-me e quase me atreveria a dizer que Allen, na escrita do guião, se apercebeu de alguma inverosimilhança, o que o terá levado a intercalar uma ou outra referência ao desaparecimento misterioso do sócio, antes do rapto e assassinato de Alain. Até o deslize sentimental de Fanny me pareceu um pouco forçado, tendo em conta o seu anterior e atribulado conúbio. A relação conjugal em curso tinha todo o ar de compensar amplamente o infortúnio da precedente e Fanny não é desenhada com a ligeireza de uma aventureira. Em suma, nem ela nem o marido me parecem personagens inteiramente condizentes com a fábula. Tratando-se dos protagonistas da história, é caso para dizer que algo correu mal ao realizador. Em rigor, ao coincidente guionista.