O DOCE AROMA DO JASMIM
... e outras histórias perfumadas
Em aparente oposição a Mark Twain e a Bertrand Russell, Eduardo Galeano diz que foi do medo de morrer que nasceu a arte de narrar. A afirmação surge, em Espejos, se bem me recordo na sequência de uma referência a Xerazade. Não fosse o medo de morrer, Xerazade (por interpostos autores, é verdade) não nos teria legado As Mil e Uma Noites, e todos teríamos ficado a perder. É claro que nos habituamos a viver, é claro que a vida, apesar de tudo, é agradável, e por isso custa-nos deixá-la. Julgo, contudo, que o medo que verdadeiramente nos aflige é o do esquecimento - a camoniana "lei da morte". O ficcionista, como qualquer outro criador, sabe que, enquanto for contando histórias, o rei Shariar lhe poupará a vida, assegurando assim a sua sobrevivência na memória da comunidade. Escrevemos, então - seja! - para exorcizar o medo de morrer. Mas escrevemos também para tornar claro aquilo que apenas sentimos difusa e imprecisamente, para elidir obsessões e para preencher o vazio que deixa em nós a sucessiva incapacidade para dizer o necessário no momento certo, seja este necessário uma opinião que afasta, num debate, ou uma palavra de afecto, que estreita os laços de uma relação. Como diria Torga, "Que tristeza isto de a gente escrever! Secos como paus na vida, e sai-nos depois a ternura pelo bico da pena!"[1] Que maior satisfação, com efeito, para quem não se expõe com a facilidade que ao pinga-amor sobeja, do que imaginar uma personagem que, naturalmente e sem afectação, sabe dar ao sentimento a voz que, faltando-lhe ─ refiro-me ao sentimento ─, o torna enigmático, senão improvável? E, para aquele que não tem o dom da oratória, pôr na boca de outra personagem a tirada perfeita, na dupla acepção da configuração estilística e da plenitude do conteúdo? Se o autor, num caso e no outro, se cumpre na sua dimensão demiúrgica, a personagem, essa, emerge da narrativa como instrumento de resgate, sempre que o leitor real invoca a ficção e o conhecimento que dela tem. E o resgate do seu próprio criador confere, de alguma forma, à personagem a equiparação ao estatuto de autor. Não será Eça, também, a criação de João da Ega e de Alencar, de Zé Fernandes e de Jacinto, de Basílio e do Conselheiro Acácio? Quanto não deve Camilo a Simão Botelho ou a Calisto Elói? E Saramago a Baltasar? A lista não tem fim. Resta perguntar: nesta reciprocidade criativa, criador e criatura, de que lado estão?
[1] Torga, Miguel, Diário I, 3.ª edição, Coimbra, 1946, p. 71
(excerto do prefácio)
O Doce Aroma do Jasmim está à venda na Chiado Editora, na Wook e na Bertrand