O Livro da Casa, de Fernando Cabrita ‒ um livro da vida e do homem
“Havia algures um parque cheio de abetos e de tílias, e uma velha casa de que eu gostava. Pouco importava que ela estivesse longe ou perto, que não pudesse nem aquecer-me nem abrigar-me, reduzida aqui ao papel de sonho: bastava que existisse para preencher a minha noite com a sua presença. Eu já não era um corpo dado à costa numa praia, orientava-me, era o filho desta casa, cheio da recordação dos seus odores, cheio da frescura dos seus vestíbulos, cheio das vozes que a tinham animado.”
Saint-Exupéry, Terre des Hommes, Gallimard, Folio, p. 64
Lê-se O Livro da Casa, de Fernando Cabrita, e é como se os nossos pais arborícolas ou cavernícolas, dessas eras em que “tudo era novo e peregrino e vasto” e “éramos um só na corrente imprecisa dos dias” (p. 26), estivessem aqui, ao pé de nós, de caras e corpos pintados “com a alegria breve das cerejas e das bagas” (p. 23), mas nem por isso menos aptos a acompanhar-nos ao café ou ao teatro. Ou como se Odisseu, longe de casa, se prestasse a dar-nos guarida no convés do seu “barco impreciso na mão das águas” (p. 34), de regresso à sua Ítaca, fazendo e desfazendo o seu destino. Ou ainda como se “o pequeno felá”, “do alto da sua pirâmide, na última pedra do último degrau, / no último dia, na derradeira claridade”, saudasse “o sol de anteontem”, “esse pai comum e bom” (p. 65), e connosco lhe rogasse despertar dos nossos mortos, “já que não a vida, a memória doce que nos faz revivê-los e encontrá-los a cada sonho e a cada dia” (p. 67). O mesmo se poderia dizer de Diógenes, o cínico, e de Macías, o trovador, mas também de personagens tão humildes quanto os “grumetes velhos” (p. 41) ou o marinheiro desconhecido, cujo “corpo gasto” “devolvemos ao mar inicial” (p. 49), e de personagens tão ilustres quanto o Conde de Borgonha, pai do fundador da nacionalidade, ou “Cronos, o nosso velho pai, senhor das eras e das demoras”, que “a todos visita” (p. 53). Em todos aqueles casos, a escrita do autor persegue o desiderato de rememorar o passado ‒ mais do que isso, presentificá-lo ‒ , mesmo se “O último poema da casa” reconhece que “nada há que possa, nada, / trazer-nos de volta a casa, / de volta ao lar que foi nosso um dia” (p. 105). Por que meios consegue o autor trazer ao convívio dos seus leitores todas estas personagens, que geralmente percepcionamos como seres petrificados no tempo e inacessíveis, é a pergunta que talvez se nos afigurasse despicienda, caso estivéssemos perante uma narrativa ficcional (quantos, como Herculano e Saramago o fizeram com mestria!), mas que se impõe no caso da poesia, já que, se a vibração lírica é aqui inquestionável, não será este o género em que mais naturalmente personagens diversas ganham vulto para nos interpelar.
O primeiro daqueles meios é a familiaridade do autor com as humanidades e com o berço dessa cultura ‒ a saber, numa perspectiva globalizante, o mundo mediterrânico. Está bem patente, em muitos dos poemas que integram o livro, o conhecimento da literatura e, em geral, da cultura clássica, no sentido lato de tudo o que perdurou (da Antiguidade Oriental à Idade Média), o que determina uma intensa intertextualidade. Mitologias diversas (“o fogo de Zeus”, p. 33; “A todos visita Cronos”, p. 53; “Ó Osíris pai, justiceiro”, p. 56; “Hórus altivo”, p. 65; etc.); citações de trovadores e de poetas (“Sabias, como os provençais, as palavras e as artes / e como eles soías bem trovar”, p. 80; “Éramos tão novos, tão fora de querer mal”, p. 45; “quando ainda tínhamos Pasárgada para onde ir a cada desilusão”, p. 89; etc.); alusões com evidente referencialidade histórico-cultural (“Odisseu, pastor da paz e das guerras já passadas”, p. 34; “Cantavas as baladas de Merlin, o Velho, / os amores impossíveis de Lancelot do Lago, / as velhas canções dos nibelungos, / os versos dos bardos do norte”, p. 80; etc.) ‒ tudo isto convoca permanentemente o leitor para o encontro e para o diálogo com o outro. Por outro lado, importa sublinhar o conhecimento dos países em questão. Com efeito, os informantes espaciais que pululam nestes poemas podiam ser (quantas vezes não serão em tantas obras literárias não menos valiosas por isso!) meros instrumentos indutores da verosimilhança ou coadjuvantes da cor local. Julgo, contudo, não estar enganado, dizendo que o autor esteve em todos ou quase todos os lugares a que neles se refere, e daí a impressão de verdade que a leitura proporciona (1).
O conhecimento a que me venho referindo não seria suficiente, se Fernando Cabrita se revelasse incapaz de insuflar vida aos nossos antepassados. Pelo contrário, deparamo-nos aqui não com seres distantes, porque muito distintos de nós na sua idiossincrasia, mas próximos e semelhantes, porque apreendidos nos anseios, nas necessidades e nos comportamentos que irmanam todos os homens. É que o autor posiciona-se num continuum da espécie, dos tempos mais recuados até ao dia de hoje, e a notável persistência do sujeito “nós”, nestes poemas, onde o singular “eu” prima pela quase total ausência (2), induz a ideia de uma contemporaneidade única, comum a todos os homens de todos os tempos, como acontece na “Ode à casa” (“A árvore amamentava o nosso sono e a nossa vida / […] / quando dormíamos de ouvido encostado ao chão / e o mundo dormia como nós. / […] Não havia horas, não havia tempo. / Éramos uma corrente de coisas sem passado e sem futuro / […] / Nós, criadores e criaturas, pais dos deuses / filhos da árvore boa em que descansámos, / sob ti enterrámos os nossos mortos / e devolvemos à terra os que sobre ela dormiram / no regaço da tua mansidão, ó árvore. / […] / Tudo era novo e peregrino e vasto. / […] / Éramos um só na corrente imprecisa dos dias […] / todos os homens sempre um só na corrente imprecisa dos dias […]” (pp. 23-28) (3), ou no poema “Sobre nós preside um deus qualquer”:
Sobre nós preside um deus qualquer
que nos quer bem, ou mal, ou nem se importa
que cedo haja em cada de nós a tempestade
a deixar-nos a alma triste e a carne morta
Que felizes éramos na nossa aldeia, na pequena horta
onde deixámos filhos por nascer e essa mulher
que esconde o rosto triste atrás da velha porta
e ilude nela a mágoa enorme da saudade
E quando tudo então parece imensidade
e o vento sul a nossa dor sem fim exorta
sobre nós preside um deus qualquer
que nos quer bem, ou mal, ou nem se importa. (4) (p. 47)
Em qualquer destes casos, e muitos outros poderiam ser aduzidos, o sujeito poético foge à individuação e representa-se indistintamente num colectivo alheio a qualquer hierarquia. Cumulativamente, a presença de um elemento comum a todas as eras, que é a casa ‒ fosse ela a árvore, a caverna, o tonel, o mar ou o convés do navio ‒ confere homogeneidade acrescida à linha do tempo. É à casa, “senhora e mulher” que o poeta dirige o seguinte pedido: “dá-nos a tua mão feminil / o pireu nobre do teu regaço / onde os perdidos barcos aportem / e salvos sejam pelo teu calor redentor. / Dá-nos, mulher e casa, / o teu ventre protector / a tua luz que acolhe e aquece […]” (p. 19). A casa, que é lar, espaço físico e solo, mas também a família, os chegados, os companheiros, é o elo que mantém ligados todos os homens, por muito distantes que estejam no tempo, porque, no limite, a casa é a “terra dos homens” de que nos fala Saint-Exupéry.
Julgo encontrar um terceiro factor de presentificação destas personagens na extensão dos poemas. Um número significativo destas composições espraia-se por duas, três, quatro ou mesmo sete páginas, como acontece na “Ode à casa” (pp. 23 a 29). Dos poemas se poderia dizer, como dos homens, que não se medem aos palmos. Porém, assim como no romance a extensão determina uma particular apreensão do tempo da história e da própria construção das personagens (5), assim também a extensão de determinado poema, a sua discursividade, pode constituir-se como veículo de transporte do leitor numa viagem suficientemente longa para propiciar a sua relação com elas, e o gosto do autor pela ode, composição tradicionalmente longa, favorece este resultado.
Aspecto igualmente relevante neste livro é a tonalidade elegíaca e a plangência saudosista que impregna muitos dos seus poemas e que decorre grandemente da evocação de um passado de que se guarda grata memória (o advérbio “outrora” é recorrente) e da alusão frequente aos que nos precederam:
Dos dias de outrora que é feito
Das horas demoradas de Verão?
Essas tardes em que tudo era perfeito
que é delas agora, onde estão?
Da nossa casa, lar de todos nós
quando éramos todos e ninguém morrera
onde agora a lembrança, o gesto, a voz?
Como pode não ser já quanto antes era?
Esse sol que inundava o mês de Agosto
e esse mar que vinha comer à nossa mão?
Existiram no espelho do teu rosto
ou foram só fantasia e ilusão?
Onde eu, e tu e os demais
quando fomos felizes e não sabíamos?
Onde aqueles beijos à beira-cais
e os navios distantes que mal víamos?
A nossa idade foi um breve diamante
um lenho em repentina combustão
Tudo ardeu no espaço de um instante
como se deixasse de bater um coração (p. 36)
Este registo, de resto tão conforme ao estereótipo nacional da saudade, parece-me contudo ser resgatado pelo sentimento de profundo respeito, de comunhão (a comunhão possível) e de solidariedade com os homens de todos os lugares e de todos os tempos que povoam os poemas de Fernando Cabrita e que souberam que “ser homem é sentir, ao assentarmos a nossa pedra, que contribuímos para construir o mundo” (6).
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1. Alguns poemas apresentam a data e o local de criação.
2. No poema “Dos dias de outrora”, a ocorrência excepcional do pronome de 1.ª pessoa desencadeia a imediata adjunção de “tu” e “os demais”: “Onde eu e tu e os demais [ou seja: nós] / quando fomos felizes e não o sabíamos?” (p.36)
3. Citação muito lacunar da “Ode à casa”, que ocupa sete páginas.
4. Numa primeira leitura, muito referencial, pode ler-se aqui a nota nostálgica de um tempo volvido em que o sujeito poético e os seus comungavam de uma felicidade comum. Creio, todavia, que o enquadramento geral do poema (refiro-me ao conjunto de trinta e quatro composições) permite inferir que o sujeito pronominal aponta para o colectivo humano, para a espécie, muito mais do que para a experiência restrita do sujeito poético.
5. É sabido que o roman-fleuve, por exemplo, proporciona uma experiência de leitura em que o leitor “vê” a personagem envelhecer paulatinamente, com o demorado decorrer da acção.
6. “Être homme […], c’est sentir, en posant sa pierre, que l’on contribue à bâtir le monde.” Saint-Exupéry, Terre des Hommes, Gallimard, Folio, p. 47