O maravilhoso na literatura e na vida (Exercício de narcisismo autobiográfico)
Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer.
António Gedeão / Rómulo de Carvalho
Fiz a escolaridade primária, actual 1.º ciclo, numa escola da Igreja Evangélica Metodista do Mirante, no Porto. Não sendo praticantes de nenhuma religião, os meus pais acreditariam, certamente, na existência de um Criador e da respectiva coorte de anjos e santos. Além disso, havia, de facto, do meu lado paterno, uma relação antiga, mas intermitente, com o protestantismo, e, opositor (discreto, como se impunha) ao regime fascista, o meu pai sempre me mostrou antipatia para com a Igreja Católica, as suas liturgias e os seus ministros – tudo isso muito conotado com o regime. Ainda hoje conservo, contudo, uma memória contraditória da minha avó paterna, a Avó Júlia, que, talvez pelas 6 horas da tarde, sentada numa poltrona da sala do apartamento onde vivia então com a filha viúva, minha Tia Isabel, numa urbanização acabada de construir, em Pereiró, ouvia religiosamente (o advérbio não podia ser mais adequado) a missa transmitida pela rádio. Não havendo transmissão radiofónica do culto evangélico, a missa católica supria perfeitamente tal falta, e, afinal, uns e outros se reclamavam da mesma divindade, para além de a rádio não consentir a visualização de imagens susceptíveis de ofender o ascetismo iconoclasta das Igrejas reformadas.
Numa sala onde cabiam quatro (ou só três?) filas de carteiras alinhadas a partir do estrado onde ficava a secretária da saudosa D. Sofia, conviviam pacificamente as quatro classes de então, uma em cada fila (talvez com excepção das 1.ª e 2.ª classes).
No primeiro dia de aulas, levado pelo meu pai, fiquei maravilhado com aquele mini-universo onde havia um ábaco, um armário com pesos e medidas, um enorme quadro de lousa com coisas escritas, tinteiros incrustados nas carteiras, mapas enormes de Portugal d’Aquém e d’Além-Mar, as fotografias de dois senhores que deviam ser muito importantes e que, mais tarde, o meu pai me disse serem de um tal Salazar e de um Craveiro Lopes – com uma cruz entre ambos. Ia ter ali muitos amigos com quem brincar, e fiquei logo sentado ao lado do Coimbra, cujo nome, mais tarde, eu grafaria Quimbra, o que me valeu a mofa dos outros e branda repreensão da D. Sofia. Mas, no segundo dia, desatei num choro irreprimível, quando me vi, de novo, entregue àquela chusma de gaiatada que não conhecia de lado nenhum e compreendi que, dali em diante, a minha vida passaria a ser aquela, a maior parte do tempo.
Uma vez por semana, tínhamos a aula dominical, com um adulto que nos lia e comentava versículos da Bíblia, no rés-do-chão do templo (o culto era celebrado no andar superior). Não era pastor; seria algum fiel mais conhecedor do texto sagrado e com presumível aptidão pedagógica. Talvez me venha daí o gosto pela hermenêutica. À 2.ª feira, era o Reverendo Irineu quem vinha pôr-nos a orar e pronunciava uma breve homilia edificante, já depois de a D. Sofia nos ter passado em revista as unhas e perguntado se, todos, tínhamos tomado o banho semanal – prova insofismável de que, nos anos cinquenta do século XX, Portugal deixara definitivamente a Idade Média para trás. Só bastante mais tarde, já rapazote, frequentei ocasionalmente o culto dominical, onde pontificava o Reverendo Aspey, britânico de porte garboso a que os fiéis chamavam Reverendo Aspro, o que o levou, certa vez, a brincar em pleno culto: «Chamam-me Reverendo Aspro porque Aspro faz bem! (Para quem não conhece, Aspro era uma aspirina muito publicitada naquela altura).
Voltando à aula dominical, versão evangélica da catequese católica, ou da madraça islâmica (alguém me ensina o equivalente hebraico?), aquelas histórias bíblicas que, mais tarde, se me afiguraram estapafúrdias constituíam para todos nós – crianças de 7, 8, 9, 10 anos – contos maravilhosos de que nos sentíamos quase actores ou, pelo menos, espectadores atentos e desejosos de participar na acção. Por muito que a proeza da Criação em sete dias, a desobediência de Adão e Eva no Éden, o dilúvio universal e a arca de Noé, a Torre de Babel e tudo o mais nos fosse apresentado como algo de verdadeiro, tão verdadeiro como o que aprendíamos sobre a História de Portugal – dinastias, reis e respectivo cognomes, batalhas bravuras, descobrimentos, defenestrações e cercos – o que nos enchia o espírito infantil era o maravilhoso de tudo aquilo. E esse maravilhoso, por muito que se esforçassem por nos fazer crer algo diferente, não era nada mais do que o maravilhoso igualmente presente nos contos infantis que todos conhecíamos e que ainda hoje não só fazem as delícias das crianças como constituem um poderoso estímulo ao seu desenvolvimento harmonioso. Eva, Inês de Castro e a Gata Borralheira não passavam de metamorfoses de um mesmo ser mítico, intangível e, no entanto, próximo de nós, para que mais tarde, muito mais tarde, o pudéssemos ter sempre na nossa imaginação e com isso nos encantarmos.
Já no Liceu, foi na literatura que o maravilhoso emergiu com pujança, em obras tão diversas quanto as Barcas vicentinas, a Epopeia de Camões[1] as Lendas de Herculano, as narrativas de Garrett, de Eça, etc., etc., etc. Mas, pela mesma altura e durante os anos seguintes, foram muitos outros, nacionais e estrangeiros, que puseram na previsível rota do quotidiano o atalho do desconhecido, da descoberta, do encantamento. E isto não só na literatura propriamente dita, mas igualmente nas obras de divulgação científica.
Pelos meus dezasseis anos, veio ao Porto um pregador evangélico chamado Samuel Doctorian. Tinha fama de ser um grande orador, pelo que lhe destinaram um salão de razoável tamanho existente na ACM (Associação Cristã da Mocidade, na Rua José Falcão). O salão estava a abarrotar, e a pregação era intervalada, a curtos espaços, pela intervenção duma intérprete que vertia em português corrente um discurso inflamado em inglês paroquial. Para além destas duas vozes, apenas um silêncio vagamente suspirante de homens e mulheres prestes a entrar em transe a qualquer momento, tantos e tão vibrantes eram os paroxismos do pregador. Até o meu Primo Luís e mais um ou outro amigo, ali, ao meu lado, exibiam um ar de beatífica comunhão com o divino, o que logo induziu no meu espírito jovem uma dolorosa dúvida e um esforço tenaz para os acompanhar: «Meu Deus, por que razão não sinto a Tua presença em mim? Por que motivo, quando todos, aqui, vibram com a palavra do pregador, eu não me sinto tocado, nem consigo compreender que energia é aquela que os move e que não sinto percorrer-me?» Na falta de uma resposta, ainda cismei algum tempo na hipótese de ter um enigmático defeito causador de tão angustiante incapacidade. O sentimento de culpa durou pouco, até porque, pela mesma altura, todos tínhamos, ou aspirávamos a ter, outras divindades – essas, literalmente palpáveis – mas fiquei a saber o que era a fé e o que era não tê-la. Eu não a tinha. Todos os outros, aparentemente, a tinham. Ora a fé é outra das dimensões do maravilhoso. Que maior conforto para toda aquela gente do que, por via de um sermão enfático, emotivo e tonitruante, ver reforçada a sua crença inabalável na existência do Pai do Céu, na vida eterna e por aí adiante?
O maravilhoso é o desconhecido, é o fantástico, é o mito[2], seja ele de que natureza for, e o mito transporta-nos invariavelmente para um espaço distinto daquele que nos é mais familiar, um espaço sagrado, e um tempo cíclico, renovável e revisitável. Este espaço e este tempo afastam-nos por minutos ou horas das dimensões que nos são mais familiares e que estão associadas às tarefas repetitivas do quotidiano. Daí o próprio acto da leitura, que nos “transporta” para um espaço e um tempo diferentes, poder ser uma forma degradada de mitologia (Eliade). Por mais realistas e materialistas (acepção filosófica) que sejamos, o maravilhoso acomete-nos, concede-nos a trégua de que carecemos para prosseguir na tarefa de empurrar a rocha encosta acima. Não que ela resvale de imediato, como a de Sísifo, herói trágico porque tem consciência do absurdo da sua situação (Camus). A nossa rocha do quotidiano vai galgando a vertente até cada vez mais alto, mas é penoso o nosso esforço, e é ao maravilhoso que vamos buscar a força de que carecemos para prosseguir.
Daí também o maravilhoso do encontro. Do encontro com alguém, um amigo ou uma amiga, que nos cinge num abraço e como que nos duplica. Esse alguém transporta-nos para uma dimensão que não será uma das onze da teoria das cordas, mas que está fora do espaço-tempo. É quando o mito se funde na realidade e a sombra falece na luz.
Daí, enfim, a vitalidade das artes. Daí o poder da religião. E o da utopia. E o da amizade. E o do amor.
___________________________________________________
[1] Quando se fala de maravilhoso n’Os Lusíadas, é costume distinguir-se o maravilhoso pagão do maravilhoso cristão e é ainda possível falar-se de maravilhoso científico e, talvez, de outros tipos. O assunto é amplamente tratado por Jacinto do Prado Coelho num artigo do Dicionário de Literatura. O meu foco é evidenciar a importância de qualquer tipo de maravilhoso na vida de todos nós.
[2] A utopia também, mas a utopia tem, muitas vezes, pernas para andar, isto é, acaba por se concretizar. Ao concretizar-se, perde o estatuto de maravilhoso, ainda que possa ser maravilhosa.