O voto dos deputados
O recente apelo do PR à insubordinação dos deputados do PS, na votação do próximo programa de governo e do próximo Orçamento, invocando a sua consciência pessoal, e instigando-os, implicitamente, a não se deixarem vergar a lógicas de disciplina partidária, tem sido criticado na óptica da inconveniência institucional. Por outras palavras, censura-se ao PR imiscuir-se na vida interna de um partido, tentando condicionar os seus deputados. Sem discordar da crítica, entendo que ela é de alcance limitado e que as reacções que suscitou, no fundo, assentam num pressuposto, igualmente implícito, que une críticos e criticado. Vou tentar explicar.
O grupo parlamentar de um partido político é, creio, constituído por pessoas que se apresentaram perante os eleitores com determinado programa, presumindo-se que são, colectivamente, seus co-autores, ou, pelo menos, que se identificam com ele – caso contrário, que sentido faria empenharem-se numa campanha eleitoral cujo objectivo é divulgar as ideias desse programa junto dos cidadãos? Paralelamente, os cidadãos eleitores que votam nesse partido fazem-no porque concordam com aquelas ideias e porque confiam que as pessoas que as defenderam durante a campanha eleitoral vão continuar a fazê-lo no parlamento. Seria absurdo os candidatos a deputados apresentarem-se aos eleitores dizendo concordar apenas com parte do programa eleitoral, terem dúvidas em relação a outra parte e deixarem para mais tarde a sua decisão quanto a votarem ou não favoravelmente medidas supervenientes. Nesta perspectiva, o grupo parlamentar é mais do que a soma das consciências individuais de cada um dos deputados que o compõem e só existe, enquanto grupo, precisamente porque o congrega a consciência grupal, que é mais do que a individual. Pergunto-me se seria aceitável para o cidadão eleitor verificar que dos dez, vinte, cinquenta ou cem deputados do partido em que votou, houve dois ou três, ou vinte ou trinta, que, num exercício narcísico de afirmação de convicções pessoais, decidiram votar contra a orientação colectiva, enquanto outros ainda, eventualmente, se abstiveram. Nem num partido personalista isso seria praticável.
No desenvolvimento desta linha de raciocínio, chega-se naturalmente à pergunta "que fazer, quando se discorda?". Impõe-se uma solução: se o deputado não pode respeitar o compromisso assumido para com os seus eleitores e para com o seu grupo parlamentar numa questão conjuntural (admitamos que se trata de algo que mexe com o mais fundo da consciência e da individualidade de cada um), que se faça substituir; se a sua incompatibilidade se manifesta naquilo que é estruturante de determinada estratégia política (recusa de um programa de governo ou de um Orçamento), que se demita – a lista de deputados tem, para além dos efectivos, os suplentes, que estão lá para suprir as desistências.
Voltando ao princípio, uma crítica que se limita à denúncia da ingerência do PR na vida interna de um partido ou da Assembleia deixa de fora o capital de confiança dos eleitores nos seus representantes. Ora o regime em que vivemos é o da democracia representativa. Se o PR a alveja, os críticos do PR devem lembrar-lho.