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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

ORGULHO? DE QUÊ?

Já fiz de tudo para me safar deste mote e, sobretudo, da respectiva glosa: desde lavar lençóis guardados há anos e a cheirarem a mofo, não vá aparecer por aqui alguém, na época alta, a carecer de conforto para os sonhos das curtas noites de Verão, até limpar

o pó que, incansavelmente, teima em deixar provas da sua passagem sobre tudo quanto é móvel e bibelot, fora o resto. Acabei agora de estender a primeira máquina de lençóis, e a procura de molas no cesto em que renovam a força de trabalho despendida em anteriores jornadas revelou-se mais inspiradora do que o apagamento das impressões digitais poeirentas, pelo que corri rapidamente para aqui, na esperança de não extraviar as dicas ninfáticas (das ninfas) pelo caminho. Só que, no entretanto, a minha amiga Marie-Claude Devin Correia envia-me um texto do Bernard Pivot sobre a idade. Clarividente, ele disserta, em meia-dúzia de linhas, sobre o que é ter cinquenta, sessenta e, depois, setenta. O salto é qualitativo. Já não são só mais dez ou vinte; é a percepção (! …) de que os outros já olham para nós com aquela condescendência devida a quem corre sério risco de vida (digo vida para evitar o antónimo, como já percebestes, e aproveito para chamar a V/atenção para este meu uso da segunda pessoa do plural, objecto frequente de erros lamentáveis, sendo que até este humilde escriba também já passou por essa terrível provação, numa apresentação pública, ao lado do nosso Nobel da Literatura! (Fica aqui o registo, para memória futura, mas devo acrescentar que não me orgulho de nada disso, como não me orgulho de coisíssima nenhuma, ficai já a saber). Só para arrumar o assunto: é giro como nós usamos o eufemismo “idade” para nos referirmos aos velhos (sim: velhos e não aquele horripilante substantivo e adjectivo “idoso”, quando até o recém-nascido tem já uns segundos de idade, e ainda ignora o que é isso do orgulho). Tem razão o Bernard Pivot: « Vieillir, c’est chiant […] Sans m’en rendre compte, j’étais entré dans l’apartheid de l’âge».

Metódico e cauteloso, lá me embrenhei em neuronal prospecção, por não querer enveredar por caminhos sinuosos e desembocar num Sahara de dificuldades sob sol escaldante. Para não destoar dos habituais, constantes e irritantes parêntesis próprios da divagação, como bem lhes chamou o Mário Jorge Martins (outro primo), reparem que escrevi “sob”, e não “sobre” facto de que não me orgulho nem um bocadinho, muito embora veja e ouça muita gente com responsabilidade, na comunicação, a confundir orgulhosamente o “sob” com o “sobre”. Não me espantaria ouvir um jornalista da TQT (na verve do Alfredo Barroso) a relatar o sofrimento atroz de um migrante subsahariano sobre um sol escaldante. O profissional teria razão se o pobre homem estivesse mesmo em cima da nossa estrela condenada à extinção daqui a não sei quantos milhares de milhões de anos – caso em que teria (eu) de escrever Sol, com maiúscula. Só que tal hipótese não resiste ao crivo do mais elementar bom senso, como diz quem fala e escreve bem. Este nosso Sol está a 150 milhões de quilómetros de nós, e os migrantes costumam ficar por outros países de acolhimento, mais próximos, menos quentes e muito dados à proclamação (universal) dos direitos de (uns quantos) homens e mulheres, justamente orgulhosos de terem posto em pé uma civilização superior a todas as outras que já viram a luz do tal Sol.

(A continuar com estes desenvolvimentos, vão-se preparando para um roman-fleuve. Quatrocentos posts, no mínimo, para mostrar ao Gabriel que lhe posso fazer concorrência, trocando Solidão, Amor e Morte por Maçada (com ç): Cem Anos de Maçada, A Maçada nos Tempos de Cólera, e o mais sucinto Crónica de uma Maçada Anunciada. Pronto; já chega, que a vossa paciência para com tanta erudição e picardia há-de ter limites e não vos quero desperdiçar).

Vamos ao tema: Orgulho? De quê?

Muito sinceramente, não sei, mas julgo saber que há muita, muita gente a sentir-se orgulhosa de alguma coisa ou de alguém, a começar por si mesmo. Eu cá, não.

Desmancha-prazeres, não sei o que é o orgulho; melhor, entendo que o orgulho é sempre preconceito, como no conhecido romance daquela britânica. É que, quando nos orgulhamos do que fazemos, do que temos ou do que somos, forçosamente experimentamos um sentimento de diferença para melhor em relação a quem nos rodeia, nos ouve ou nos lê. É um sentimento inexpresso, mas não deixa de fazer sentir o sujeito que o experimenta de algum modo superior ao vizinho. Talvez o sujeito seja bom naquilo que faz, caso para se dizer que é um sujeito com predicados. Por exemplo: é um virtuoso, ou virtuose, do violino. Ok. Se eu o fosse, eu que sou nulo em artes, como em tantos outros domínios (isto é só para vos dar a oportunidade de exclamar “eh pá! Olha que tu até escreves com alguma piada!”, o que deveria deixar- me orgulhoso. Lamento. Agradeço, mas só fico satisfeito e grato). Retomando a frase começada lá para trás: se eu fosse um virtuoso do violino, sentir-me-ia feliz com essa capacidade e destreza, mas – vamos lá ver! – já se viu algum assistente operacional de limpeza das ruas (na novilíngua da democracia liberal) orgulhoso por despejar as nossas ruas do lixo que lá depositamos diariamente? Acho que não. Talvez nem muito satisfeito com o salário e condições de vida. E, no entanto, eles / elas são virtuosos da arte sanitária. Nem o violinista nem eu os dispensamos.

Do mesmo modo, sentir orgulho pela acção civilizadora do Portugal das chamadas descobertas? Mas em que consistiu exactamente essa acção? Irmos por mares nunca de antes navegados dilatar a fé, o império, a escravatura? Exportar os ignotos povos indescobertos para outros continentes, em porões apinhados? Sacar-lhes as riquezas naturais? Chamar-lhes primitivos e bárbaros quando, em alguns casos, comiam com pauzinhos, enquanto nós comíamos civilizadamente com as mãos? Conceder-lhes os benefícios do colonialismo? Pôr-lhes um pau em forma de sinal de adição entre as mãos calejadas e ensinar-lhes a repetir obsessivo-compulsivamente uma espécie de xácara morna, triste e enfadonha?

Patriotismo, amor à Pátria, orgulho de ser português (para o caso, qualquer outro etnónimo serve). Mas que é a Pátria? Lugar de exílio, onde a invenção do amor pode ser um risco e onde o vento cala a desgraça numa praça da canção fechada ao trânsito?

Conheceis aquela frase atribuída a Chris Marker, a Breton, a Robbe-Grillet e que diz assim: “A pornografia é o erotismo dos outros”? Mais tarde, há uns anos, o António Guerreiro, crítico literário do Expresso / Ípsilon, adaptou-a: “O nacionalismo é o patriotismo dos outros”, e o Jaime Nogueira Pinto, no Radicais Livres da Antena 1, ao Sábado, debatendo com o Pedro Tadeu, dizia: “O populismo é a popularidade dos outros”. Invertendo a simetria destas frases, diria eu: “O rebaixamento dos outros, a altivez, a arrogância – é o nosso orgulho”. O que é válido para o orgulho supremacista branco, caucasiano, é-o também para o etnocentrismo cristão ocidental e iluminista, que teve méritos indiscutíveis, mas ficou embevecido a tal ponto que ainda lhe custa perceber as realidades alheias, as idiossincrasias de cada comunidade, a urgência do respeito pela caminhada única e pelo tempo único de cada um. Ademais, não se enxerga ao espelho da sua casa de banho, logo, não vislumbra as suas contradições. E elas só admitem um qualificativo: inqualificáveis.

Exceptuo as manifestações estapafúrdias do orgulho gay. Admito que possam contribuir para a aceitação de uma realidade que vem da horda primitiva (poderia recuar ainda mais) e para o reconhecimento da liberdade de cada um fazer o que lhe dá na real gana com aquilo que é seu e do ou da parceira, desde que este ou esta,maior de idade, vacinado eventualmente munido de preservativo, esteja na mesma onda. Se é conjuntural, instrumental, ‘tá bem. Mas, vá lá, despachem-se: vistam-se, tirem as maquilhagens e mostrem-se na rua como qualquer um(a). Desfilem à civil.

Tirando alguns trogloditas (lembro-me logo de uns cinquenta – agora quarenta e nove – que emporcalham certo edifício público, mas, na verdade, são bem mais numerosos), a malta já não liga a ponta de um corno a isso. A agenda já nada tem de fracturante.

Pelo menos, para já. Daqui para a frente, veremos: se lograrmos resistir, enquanto sapiens, ao despautério que assola o mundo, talvez até venha a sentir-me orgulhoso de ser um digno herdeiro do chimpanzé, meu avô, que me legou a quase totalidade dos genes e o gosto pela banana (sobretudo, a da Madeira, que está pelos olhos da cara).

E, para atenuar o negativismo de muito do que precede, deixem-me dizer-vos que me fascina o que tantos dos meus semelhantes fizeram e fazem nos domínios da ciência, da filosofia, das artes, da construção, da agricultura, da indústria, do ensino, da saúde, da transformação do mundo. Operários em construção, ou desbravadores do desconhecido, nem eles nem elas desistem da utopia. Só nos dizem, cada um à sua maneira, que a complexa e contraditória condição humana dispensa o orgulho, mas carece de ser preservada no que tem de melhor.

Foi bom estar convosco. Orgulhosamente acompanhados.

Ita missa est.

(publicado no Fb em 12 de Abril de 2025)