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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Os haikus de Manuel Pinto Ribeiro ‒ tradição e ironia

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 Começo pelo fim: a minha bibliografia é constituída pelos prefácios de Manuel Pinto Ribeiro e de Yvette Centeno a os dois lados da montanha, de Manuel Pinto Ribeiro e Fernando Tordo, e pelo que li na Wikipédia e no Dicionário Electrónico de Termos Literários, coordenado por Carlos Ceia (http://edtl.fcsh.unl.pt/). O exotismo da palavra já me chamara a atenção, mas ficara-me pela definição mais elementar ‒ poema breve, de origem japonesa, exprimindo sentimentos inspirados na contemplação da natureza. Há uns dias, porém, foi a apresentação de os dois lados da montanha, na Feira do Livro de Olhão. A explanação de Manuel Pinto Ribeiro (1) espicaçou-me a curiosidade. Li, reli, não sei se tresli estes seus haikus, os do Fernando Tordo, os da Poética Esquiva (2) e mais uns quantos de Casimiro de Brito e dos mestres japoneses Bashô (séc. XVII) e Shiki (séc. XIX). Ontem, não sabia nada dos haikus; hoje, sei que, sobre haikus, não se aprende de ontem para hoje o suficiente para sobre eles perorar, pese embora a qualidade da bibliografia referida. Que a ignorância é atrevida, toda a gente o sabe e este texto o prova. Possa o reconhecimento do pecado, passo primeiro da remissão, concitar o perdão do autor visado e a benevolência do leitor.


A primeira dificuldade para quem entra neste universo poético sofrendo do erro de Descartes é a tentação racionalista de esquadrinhar cada um deles, tentação tanto maior quanto estes haikus se cingem a breves tercetos, muitas vezes num total de dezassete sílabas (dois pentassílabos e um heptassílabo). Ora Manuel Pinto Ribeiro põe o seu leitor de sobreaviso:


“Um haiku […] deve ser lido duas e só duas vezes.
“A segunda leitura é necessária para dissipar qualquer surpresa que a primeira possa ter suscitado.
“E não se lê terceira vez para que se não estruture na mente do leitor uma qualquer busca dum sentido que, por definição, não existe!...” p. 8 de um dos lados da montanha.


Yvette Centeno não é menos clara:


“Devemos evitar a explicação no interior do poema. O poema oriental, na tradição taoista dos Haikai, não explica, o poema mostra (na imagem) e diz, o seu dizer é ele mesmo a única explicação.”p. 10 do outro lado da montanha.


A bem da verdade, diga-se que Manuel Pinto Ribeiro esclarece que o preceito das duas leituras concerne uma primeira abordagem do haiku, nada impedindo que a ele se volte quantas vezes se quiser, e Yvette Centeno sublinha o carácter ideográfico da escrita chinesa (na origem de uma das formas de escrita japonesa, o Kanji), explicando que imagem e conceito se encontram fundidos num só caracter, “o que implica uma igual capacidade de ver e de entender, por parte do leitor” p. 8.


Sabemos que o leitor de poesia tem (ou deve ter) uma atitude mais “passiva” do que o leitor de ficção, na recepção da mensagem, sobretudo tratando-se de poesia posterior à revolução simbolista. “De la musique avant toute chose”, escrevia Verlaine, propugnando uma poética focada nas sonoridades evocativas, mais do que na coerência significativa dos enunciados, e Fernando Tordo reivindica esta volatilidade própria da poesia, dizendo:


A poesia é tudo
apesar
das palavras (haiku 18)


O que mais importa na poesia é, pois, a fruição emotiva da sugestão musical ou imagética; o leitor de ficção que trate de apreender nexos de causalidade nas tramas narrativas com que se ocupa.


Ora, no haiku japonês “clássico”, é frequente a ocorrência de frases de uma simplicidade tal que remete sintaxes e tropos estilísticos para o caixote das inutilidades. Atente-se, p. ex., nestes haikus de Bashô:


É primavera:
a colina sem nome
entre a névoa.


Ou neste outro:


Ah! Mosca de inverno
questão de dia ou de hora
seu último instante?


E Octávio Paz explica-nos: “a poesia de Bashô nos chama para uma aventura deveras importante: a de nos perdermos no quotidiano para encontrarmos o maravilhoso.” (3)


Contudo, entre nós, e com Manuel Pinto Ribeiro em particular, o haiku exige frequentemente do leitor uma atitude mais activa. Quando lemos o haiku 22 ‒


Ao raiar do dia
Cantou-me um galo na alma e
Dissipou-me a calma


‒ não estamos longe de Bashô, nomeadamente se atentarmos na sua simplicidade e na aparente ocorrência do chamado “kigo” (4).


Mas, se nos detivermos no haiku 4 ‒


Traçarei à navalha na mão um destino
Tão novo que me prenda a um eu que eu não sou
E me mande ir embora por onde eu não vou…


‒ contentar-nos-emos com a sua musical discursividade alexandrina ou tentaremos antes deslindar a contradição que consiste em anelar um destino que logo se recusa, contradição que, aliás, parece confirmar a ‘ligação do haiku com o zen-budismo e sua busca do satori: “iluminação” súbita dos “contrários” de que é feita a vida’, na lição de Octávio Paz (5) ?


Parece difícil não se enveredar, neste, como em muitos outros casos, pela via da compreensão / interpretação, critério que o título da primeira secção de haikus parece aliás legitimar, mas que me parece igualmente válido para as restantes secções. De facto, em “Instantâneos cognitivos com perspectivas bizarras”, o qualificativo “cognitivos” confirma a prevalência do conhecimento / razão sobre a afectividade, denotando um processo de construção assente na captação momentânea de uma evidência intelectiva, que não de um fulgor emotivo.


Percebe-se esta evidência cognitiva logo a abrir, com um haiku em que toda a posse é tida por escravatura, que apenas pode tentar “quem for muito pobre”, e que, atenta a rica polissemia de “posse” pode ter pelo menos duas leituras ‒ a da posse material e da prevalência do ter, por oposição ao ser, antiteticamente conotado com a liberdade e a riqueza imaterial, ou a da possessividade sentimental, que agrilhoa tanto o possuidor quanto o possuído.


Reflexões sobre dados experienciais do autor e sobre categorias genéricas atinentes ao humano (o tempo, o destino, a morte, o mistério) constituem o cerne dos haikus desta primeira secção, mas extravasam-na. A interrogação sobre a vida e a morte, por exemplo, surge repetidamente no capítulo III, haikus 17,19, 21, 23, no cap. V, haiku 44 e em VI, haikus 77 e 81.


Ou morro antes de parar
Ou paro antes de morrer:
A seu tempo o hei-de saber… (haiku 23)

 

Tema recorrente também é o do confronto com o eu (haikus V. 37, 45, 48, 53 e VI. 89), confronto geralmente mediado pelo espelho:


Que estranho é o que habita esta angústia atrás do espelho
Através do qual me olho e cuja face desconheço
Quando é paz que transparece no olhar com que me meço?
(haiku 89)

 

De alcance crítico político-social são os haikus 9 a 16 do cap. II, 18 e 20 do cap. III, 29 do cap. IV e 35 do cap. V:


País desgraçado
Escassa é a gente com passado (e)
Rara a com passada…
(haiku 18, com o título “Portugal”)

 

Há ainda os haikus que interrogam a crença religiosa, duma perspectiva ateísta (IV. Haikus 25. 26, 27, 28 e 31):


Cresce Deus ou não
No Universo em expansão?
E há p’ra isso razão? (haiku 31)


Em Haiku e a Poética Esquiva (1990), o haiku 11 do cap. II põe a questão da existência de Deus em termos de alternativa, assumindo ironicamente a premissa da crença:


Um Deus que se oculta
Por e para o poder ser
Ou é Deus ‒ ou é culto…


Podendo “culto” ser lido como adjectivo ou como substantivo, a mensagem aparenta sublinhar, na 1.ª hipótese, a incompatibilidade entre a crença religiosa e a cultura, entendida como racionalização da experiência humana em que a fé se insinua como manifestação fantasista de uma mentalidade primitiva. Assim, ironicamente, sendo avesso ao obscurantismo, Deus oculta-se, não se deixa ver, porque, de facto, não existe. Na 2.ª opção, ele (ou Ele, para os crentes) não passa de culto, isto é, despojado da sua essência, é simples veneração acidental sem destinatário.

 

A vertente erótica, já presente em Haiku e a Poética Esquiva


Passo a passo corro
Em teu seio tombo
E atento morro (II. 10)


está presente nos haikus 42, 49, 50, 51, 52, 58, 60, 62 e 68 do cap. V:


Dois seios estrábicos
Olhando p’ra mim de frente
E uma cama ausente (haiku 49)


Neste mesmo capítulo, os haikus 36, 39 e 40 são apontamentos breves decorrentes da contemplação do ambiente circundante, no que revelam, mais uma vez, a sua proximidade ao haiku japonês clássico:


Avassalador
Galga o mar e a foz do rio:
Cheiro a maresia (haiku 36)


E há, finalmente, dois subgrupos de haikus em que não é tanto o conteúdo temático que chama a atenção, antes a forma da expressão. Por um lado, os que assentam em jogos vocabulares e variações em torno de idiomatismos (I, 7; III. 18; IV. 25; V. 63 e VI. 88 e 99), por outro, aqueles cuja formulação, de tão sentenciosa e formalmente conseguida, faz deles verdadeiros provérbios (II. 9; IV. 32 e V. 43).


Relativamente aos primeiros, encontramos em Haiku e a Poética Esquiva este “Menino” a dizer-nos à sua maneira que “de pequenino se torce o pepino”:


Ensinado de pepino
Lá se torce em exercícios
Progressivos e difíceis (I. 1)


Em os dois lados da montanha, o haiku 7 resulta da intersecção entre as expressões “dormir dum sono só” e “dormir como uma pedra”, sendo que, pelo seu mais forte poder sugestivo, é a imagem da segunda que prevalece na composição:


Dormir duma pedra só
Pesada como uma fraga
Redonda como uma mó


Procedimento idêntico se verifica nos haikus seguintes:


De gatas as noites
São todas pardas e árduas
Pr’os que a tal se afoitem! (VI. 88)


Enquanto as costas
Vão e vêm folga o pau
Que, está à vista, gosta! (VI. 99),


que partem de ditados facilmente reconhecíveis.


Haikus de tal maneira conseguidos na sua formulação sentenciosa que espanta não integrarem o catálogo de anexins da sabedoria popular são estes:


“Elogio da ambição”
Quem não pede a lua
Nem tira a mão da charrua
Nem os pés do chão (II. 9),


“Cemitério”
Quanto amor por entregar
Em quem chora junto à campa
Acabada de fechar!... (IV. 32)


e um
“Preceito de bem viver”
Tão árdua é a viagem
Que é bom que excesso não haja
Nenhum de bagagem (VI. 43)


No termo desta apressada circum-navegação, importa dizer que a tradição literária japonesa impunha um complexo conjunto de regras que só escassamente são observáveis na produção dos cultores ocidentais do haiku. Mas a história da literatura e das artes está cheia de exemplos semelhantes. Os criadores recuperam formas que se plasmaram no tempo e dão-lhes a feição nova que um tempo novo pede, pois a lei de Lavoisier não é válida apenas no domínio do material. Manuel Pinto Ribeiro oferece-nos, em os dois lados da montanha, uma centena destas pequenas composições, marcadas pela contenção e sobriedade típicas do género, mas também eivadas de uma ironia e de um humor talvez menos comuns. E, sobretudo, os seus haikus propiciam um contínuo encontro do leitor com muito daquilo que afecta o homem, quer na sua vida de relação, quer no seu confronto consigo mesmo.


Fernando Martins

_______________________________

1. Este meu texto debruça-se sobre uma das metades do livro, por razões de economia de tempo, deixando de fora a metade de Fernando Tordo, a quem endereço as minhas desculpas. Traduzido para haiku de contrafacção: falo de metade / mas seja dita a verdade / prezo o livro todo.

2. Haiku e a Poética Esquiva, Manuel Lourenço Forte, pseudónimo de Manuel Pinto Ribeiro, Quetzal, Lx.ª, 1990

3. Cf. Verbete “haiku” em http://edtl.fcsh.unl.pt/

4. “Embora não esteja ligado necessariamente ao Kigo (a um fenómeno sazonal), o haicai ocidental, via de regra, parte de uma percepção muito concreta (visual, táctil, auditiva, térmica …) que funciona como disparadora de sensações (associações, sentimentos, dados da memória, analogias …).” Op. Cit.

5. Idem