Ouro e Vinho, de Adão Contreiras
Se, no seu primeiro livro, Página Móvel com Texto Fixo, havia poemas cujo hermetismo (me) desconcertava, em Ouro e Vinho, dir-se-ia que Adão Contreiras convoca o leitor para um diálogo renhido sobre a natureza da poesia. Diálogo tanto mais difícil quanto se porfia em descobrir, na por vezes labiríntica tessitura sintagmática, sentidos que o autor, provavelmente, não fez questão de lá pôr. Na minha démarche interpretativa, vou, por isso, recorrer, uma vez mais, a quem sabe do ofício de poetar, para me abalançar na árdua tarefa de comentar o opúsculo agora dado à estampa pela 4águas editora, na colecção Blokos/Poesia.
Segundo Ramos Rosa, citado por António Carlos Cortez (1), “a uma poética do unívoco, que corresponde a um mundo estático” deve suceder uma “poética de ambivalência e ambiguidade, onde tudo é movimento”. Quererá isto dizer que todas as liberdades são permitidas ao poeta, ou não fosse a Poesia Liberdade Livre, conforme o afirma o próprio citado, em título de livro seu? Aparentemente, sim. E, contudo, é outro poeta, Gastão Cruz, por coincidência também farense, que nos põe de sobreaviso: “A arbitrariedade é um dos riscos mais prováveis para quem queira aventurar-se na procura de uma linguagem nova. Evitá-lo implica um enorme apuramento do sentido de autocrítica, muita reflexão sobre o que é e o que não é poesia, a aquisição de uma autoconfiança que defenda o poeta dos erros e perversidades de certos comentadores, e das omissões de outros (ou os mesmos) ” (2). Por outro lado, a “procura de uma linguagem nova” nem sempre terá sido, nos últimos anos, objectivo dos poetas. Por exemplo, Fernando Pinto do Amaral assinala que “Na viragem do milénio terá havido, de facto, alguma oposição entre poetas mais preocupados com a “criação de novas linguagens” e outros mais seduzidos pela “poesia da experiência”, acrescentando esperar “que esse conflito se vá esbatendo, à medida que nos apercebermos de que os melhores poetas são aqueles para quem essa bipolarização faz cada vez menos sentido”, sendo que “os poetas que mais [lhe] interessam são aqueles que, utilizando elementos da sua experiência humana (mesmo demasiado humana), os transfiguram em poesia graças à intensidade das palavras que dão corpo e espessura a cada texto” (3). É ainda um poeta, João Luís Barreto Guimarães, que, debruçando-se sobre a problemática da “invenção verbal”, refere o “menor papel que a metáfora assumiu na poesia portuguesa desde os anos 70, quando comparada com o seu papel em poéticas anteriores. […] A metáfora resistiu mal ao poder da sinédoque e da metonímia. […] As coisas, nos poemas, dizem-se agora mais directamente. Isso não significa, porém, que não se tenham criado novas linguagens (baseadas ou não na experiência), com significativa invenção verbal – sempre valorizando a palavra. Poéticas mais coloquiais, onde a oralidade ganhou espaço, em todo o seu esplendor. Poéticas mais próximas, em tom, de um falar quotidiano. Poéticas que comunicam, por vezes de forma sarcástica e irónica. Poéticas que reduziram a poesia ao grau zero de recriação metafórica” (4). Combinando estas opiniões de quem sabe do que fala, diríamos que ao poeta cabe a “procura de uma linguagem nova”, feita de “ambivalência e ambiguidade”, ancorada ou não na sua experiência humana, incorporando a oralidade e o “falar quotidiano”, contudo, avessa à “arbitrariedade”, ao puro capricho.
A estas opiniões, poderíamos, para complicar o comentário, acrescentar o seguinte: num romance francês de 2006 em que a antecipação científica convive com as alegrias e, sobretudo, as agruras do nosso presente (A Possibilidade de uma Ilha, de Michel Houellebecq), o narrador, referindo-se a um artigo que lera numa revista literária, dá por inelutável o desaparecimento da poesia: “a poesia, como linguagem não contextual, anterior à distinção objectos-propriedades, desertara definitivamente do mundo dos homens. Situava-se num aquém primitivo ao qual nunca mais teríamos acesso, pois era anterior à verdadeira constituição do objecto e da língua. Inapta para transportar informações mais precisas do que simples sensações corporais e emocionais, intrinsecamente ligada ao estado mágico do espírito humano, tornara-se irremediavelmente antiquada com o aparecimento de métodos fiáveis de afirmação objectiva” (5).
Enunciadas estas extensas premissas relativas à natureza e à morte anunciada da poesia, voltemos a Ouro e Vinho, tentando verificar até que ponto a poesia de AC confirma ou infirma os postulados transcritos. E começarei pelo princípio, que não é mau preceito. “Proclamação” se chama o primeiro poema do opúsculo, que, por ser primeiro e curto, transcrevo:
inaugurei o inverno do
meu contentamento
– fogo na lareira
um bagaço
o corpo estendido sobre
uma imaginação sem poeira
um figo torrado dobrando
no paladar a esquina do tempo
o fogo queimando a tristeza
na alegria das labaredas
não fiz anos nem tu
mas há dias assim próximos
uns dos outros
ainda que em estrelas longínquas
A primeira observação que me ocorre fazer é a de que se trata de um poema de celebração (tópico recorrente já no primeiro livro) de um instante de felicidade, um momento fugaz em que o corpo se abandona à fruição do ócio e ao afago do calor da lareira. A degustação de um bagaço e de um figo torrado cruza-se, numa imaginação liberta de qualquer constrangimento, com a recordação de uma leitura antiga, a de Inverno do Nosso Descontentamento, que surge neste contexto por antífrase, e o figo torrado, que se atarda no paladar, marca o passar do tempo, expresso num tropo que faz confluir o concreto (“esquina”) com o abstracto (“tempo”) – procedimento metonímico. O pronome tu, na última estrofe, institui uma dimensão dialógica no poema e presentifica uma instância receptora que, podendo estar numa “estrela longínqua”, não deixa de propiciar ao eu emissor a alegria dos “dias próximos uns dos outros”. Estamos, pois, perante um poema de celebração de um instante de felicidade, logo “poesia da experiência”, para retomarmos a nomenclatura dos meus prolegómenos, mas também “poética de ambivalência e ambiguidade” particularmente na segunda estrofe, em que a experiência humana é transfigurada “em poesia graças à intensidade das palavras”.
É pelo tu presente no primeiro poema que me apetece partir em busca dos poemas em que esse tu espreita. E não tardo a perceber que são poucos. Em Ouro e Vinho, há o cão que faz “versos de glorificação dos ossos”, de cauda “nivelando os astros com os cogumelos”; há o “Zé Ninguém [que] dobrou com o olhar as lâminas do destino”; “o homem do tractor [que] chegou”; “uma batata não cosmética mas inclinada para o ventre da claridade”, “uma Pedra sem passaporte diplomático na curva do caminho”, algum ouro e algum vinho, um léxico que se espraia pelos domínios mais diversos, inesperados e surpreendentes, mas esta instância próxima do eu e que o secunda escasseia, surge discreta, sorrateira e misteriosa em mais dois ou três poemas apenas. Um deles é o segundo, “Veneno”, poema em que a temática do convite para a viagem (para retomar o celebérrimo “L’invitation au voyage”, de Baudelaire), de contornos eróticos, aparece profundamente transfigurada.
O poema começa com uma qualificação dos “segredos” desse tu, segredos difíceis de entender porque são um “labirinto inaudível”, contudo também “soma possível no decalque dos infinitos”, o que remete para a profusão de possibilidades, tanto mais que há uma “bússola sobre a manhã dos vinhos”, ou seja, um rumo que comanda a embriaguez dos sentidos. Porém, a referência à “delinquência” e “aos venenos”, isto é, à hipotética infracção, ao temor pela manifestação do desejo eventualmente excessivo, ou proibido, ou não correspondido, sugere a necessidade de “indulgência”, neste caso, por parte do próprio eu, que impreca o tu: “abre-te a este inquilino vacilante / na inquinação das águas prósperas / volúpia carregada de sal e morangos”. As antíteses relativas à água (inquinada, mas próspera) e à volúpia (salgada e doce) parecem apontar para os tradicionais sentimentos contrastantes da percepção do amor, glosados por Camões no célebre soneto do fogo que arde sem se ver. Os versos da estrofe seguinte constituem variações em torno do tema da volúpia, a que se segue um terceto em que o eu, assumindo-se como “deus com fome”, não deixa de reconhecer que “mastiga o pão de açorda”, enunciado disfórico e fraco manjar para quem almejava “a manhã dos vinhos”, a “volúpia carregada de sal e morangos”, “a poesia das uvas transbordando / na alegria dos açúcares”. Mas este “absurdo inquietante” ocorre “no incesto das palavras” – nova ocorrência de contiguidade de signos que denotam realidades totalmente diversas e incomunicáveis, no universo não-poético. Como entender esta relação improvável? O significado de “incesto”, transposto para o mundo da comunicação verbal em contexto erótico, implica afinal o entendimento e a comunhão profunda de entes próximos, o que desmente a disforia anteriormente enunciada. Neste contexto, o último verso, ao retomar a temática do segredo, presente no início do poema, ao mesmo tempo que lhe associa o signo “bananas”, apenas nos pode deixar uma interrogação à qual não responderei: que terá a banana a ver com a relação erótica?
Depois do poema “Rebuçado”, que questiona a possibilidade, para o eu e para o tu, de conservarem a verdade da infância obliterada pela bruma das palavras (“[…] e eu ou tu / que nos agarramos ao vulcão das coisas / saberemos ouvir / a memória do Carnaval / subtraído ao corpo inacabado?”), no poema “Ouro”, voltamos ao contacto com o tu. Vou limitar-me a sublinhar os pontos de contacto entre este poema e “Veneno”, pois me parecem manter estreitas relações de significado. O signo “vinho”, recorrente, aparece agora inserido no sintagma “uma sonda de vinho aperfeiçoa / a investigação dos astros”. Antes associado à ideia de embriaguez, o vinho remete agora para a ideia de descoberta, sem que as duas acepções se contrariem necessariamente, ou não fosse a embriaguez uma possível via de desvendamento, nomeadamente em territórios da relação interpessoal. A terceira estrofe, porém, insinua a contrariedade: “e tu conversando com o orgulho / da língua de mármore / desfeitos os nós / ao abrigo dos costumes, em letras de aço / presas aos dentes dizes que a Terra é redonda!” É uma sucessão de signos que remetem para a ideia de dureza e frieza – orgulho, mármore, nós, aço – a que se soma a sugestão do respeito pelos (bons) costumes (porque não, até, pela moral e bons costumes?) e, finalmente, o enunciado banal sobre a esfericidade da Terra. Isto é, recapitulando: seja por orgulho, seja por receios pueris, entravas o caminho da descoberta, esse “caminho incerto” que, apesar de tudo, “trilho contigo”, e caminho que se confunde com o “pequeno círculo dos teus lábios / feridos pelas agulhas do fado”. Os versos finais são uma espécie de proclamação da urgência e da inevitabilidade do afecto (“não há futuro / sem a língua roçando os teus cabelos”), apesar dos momentos de solidão (“ainda que haja madrugadas / cheirando a metal […]”), porque só esse tu perseguido pelo poeta, um tu que é, simultaneamente, permanência (“terra”) e transitoriedade (“vento”), poderá construir a felicidade (“[…] só tu / incesto da terra com o vento poderás / construir músculos embriagados a ouro e pão”). Daí, a angustiada pergunta da primeira estrofe, que deixei por analisar:
longe de mim na apressada noite verde
o que pode haver de eterno
no esquecimento dos teus lábios?
Prosaicamente: o esfumar da memória significará que a perda é definitiva?
Enunciei inicialmente o objectivo de verificar, neste texto, em que medida a poesia de Ouro e Vinho vai ao encontro dos postulados de poetas consagrados que transcrevi extensamente e creio que esse objectivo foi atingido, com a demonstração de que estamos perante uma “linguagem nova”, feita de “ambivalência e ambiguidade”, ancorada seguramente na experiência humana do poeta. No tocante à incorporação da oralidade e do “falar quotidiano”, é aspecto que se me afigura menos significativo neste livro. Ainda assim, sempre sublinharei que esses afloramentos do falar quotidiano e das realidades mais comezinhas ocorrem e coabitam na mais perfeita das harmonias com imagens e metáforas, numa espécie de movimento pendular que nos leva, por exemplo, da “tigela de arroz” ao “gargalo da noite” (em “Aspirador”), do “baú do tempo” à “cebola infinita a descascar” (em “Relógio”), ou dos “ingleses que spicam” ao “cetim do imaginário” (em “O homem do tractor chegou”).
Nota:
Todas as citações pertencem ao n.º 33 da revista “Relâmpago”, de Outubro de 2013: (1): p. 25; (2): p. 53; (3), p. 45; (4), p. 61; (5), p. 153.