PERDI O MEU CARRO
Mar Shopping, Loulé. Estacionamento interior. Zona amarela. G02. Bolas! Tudo cheio. Mesmo os lugares com luz verde. Bom. Não me esquecer: zona amarela, G02. Mais uma pequena volta e lá está um verde genuíno, autêntico, verdadeiro, sincero, vegetal, esperançoso. Não ter de ficar ao sol. Não transpirar ainda mais, dentro de um habitáculo sobreaquecido, as costas encostadas ao encosto, a contragosto e com desgosto. Não esquecer: amarelo G02. Uma volta no piso 0, à procura de duas coisas impossíveis de encontrar e rápido regresso ao -1. Amarelo G02. Amarelo G02. Ora vejamos, vejamos. Não estou a vê-lo, não estou a vê-lo. Rodopio sobre as solas dos sapatos num ângulo de 180º, depois outros 180 no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. Estranho. Amarelo G02. Amarelo G02. Não. Vamos ver aqui ao lado, que ainda é amarelo. Não. Vinte e cinco minutos. Em vinte, já eu tinha descoberto que ninguém tinha o que eu queria. Meia-hora. Amarelo G02. Raios. Eu que tive a lembrança de fixar a cor, a letra e o número com dois algarismos: amarelo-G-02. Bom. Vamos ver se alguém lá de cima, no céu do IKEA, nos ajuda. Senhor vigilante do IKEA, eu estacionei aqui perto desta entrada e destas escadas que rolam e enrolam, e que, por isso, chamamos rolantes, nunca enrolantes, se bem que não rolariam se não enrolassem, e nada. Não encontro o meu carro. Olhe, nós somos poucos, não podemos sair daqui. Vá ali à recepção. É um balcão branco, mesmo à entrada, no outro extremo. OK, obrigado. Passo largo e rápido. Estugado, sói dizer-se. Recepcionista simpática e bonita. O quê? Quarentas... Vai ver que o seu carro aparece. Disse-me carro branco, marca e matrícula tal e tal, zona amarela G02. Sim, G02. O vigilante do estacionamento vai já ver. Pode demorar um pouco, porque acontece estar no início de uma volta. Vinte minutos. Ainda nada. Ainda nada. Disse-me: amarela G02. Sim, exactamente: amarela G02. Telefone: Fulano, o Senhor já começa a estar cansado, mas tem a certeza de que o deixou na zona amarela, Júlia 2. Aquele “Júlia”… Olhe, para não estar aqui de pé, vá tomar um café aqui ao lado, que eu já o vou chamar, quando o vigilante encontrar o seu carro. Topei aquela preocupação com a demorada permanência de pé. Boa ideia. Descafeinado pingado, para não agravar a falta de sono. Vinte minutos. Já lá vai uma hora e meia. Não seria melhor eu descer para procurar melhor? Então, deixe-me o seu contacto. Deixei o telemóvel no carro. Bom, eu vou contactar outra vez o vigilante. Fulano, zona amarela, Júlia 2. Olhe aqui o livrete, modernamente DUC. Marca, modelo, matrícula. Disse-me: jota 02. Não, eu disse gê 02. Gê, que é o mesmo que guê. O jota é só jota. Ah! Como muita gente diz gê… Mais uns minutos. Preocupação minha: Já aqui houve roubo de carros? Até agora, nunca aconteceu. Tranquilizante, mas também inspirador de outra preocupação: acontece virem aqui pessoas por não encontrarem o carro? Ah! Sim, diariamente, de todas as idades e espécies. Boa. Há gente mais nova que também anda às aranhas no estacionamento. Quase me apeteceu dizer porreiro, pá. Claro que não disse. A Senhora era simpática, educada, e eu também sou ou tento ser educado – e simpático, tanto quanto consigo. Agora, aquela das espécies deixou-me pensativo. Lembrei-me do Darwin, claro. Uma pessoa ouve falar de espécies e pensa logo em evolução, em sapiens e coisas que tais. Olhe o vigilante já o encontrou. Realmente, estava na zona amarela, mas F01. Ou 02, já não sei – isto digo eu. Safa! Uma parte da tarde perdida por causa de um gê que eu vou passar a chamar guê, cá por causa das coisas.