"Poesia a Sul", pureza da arte e cidadania
A sessão de encerramento do Encontro "Poesia a Sul", Olhão 2015, contou com a presença de Manuel Alegre, no cinquentenário do seu livro Praça da Canção. Na mesa, para além do autor, estavam Carlos Brito, a quem coube a intervenção de fundo sobre o livro de Manuel Alegre, e Fernando Cabrita, organizador da iniciativa. No debate sobre "A poesia e a cidadania", subsequente à sessão inicial e moderado pelo Prof. João Minhoto Marques, esteve ainda presente o poeta espanhol Rafael Vargas. Todas as intervenções versaram, genericamente, o papel da poesia e dos poetas que, como Manuel Alegre, Manuel da Fonseca e outros souberam, "em tempo de servidão", pôr a força da palavra poética ao serviço do povo e apontar caminhos de libertação. Fernando Cabrita encaminhou, depois, o debate para a problemática do aparente afastamento das novas gerações de poetas relativamente às temáticas de índole política e social.
Momentos antes do início desta sessão, um amigo poeta também presente, falara-me do último livro de Mário Cláudio, Astronomia, espécie de auto-retrato em que o autor se desnuda de forma despudorada, indo ao ponto de esmiuçar pormenores da sua própria higiene mais íntima. Daí, passara para a poesia de vários poetas contemporâneos, que se debruçam sobre a sua própria pessoa e parecem, como Mário Cláudio, não ter olhos senão para a forma como "ensaboam as orelhas e os sovacos" ou "as nádegas e respectivas adjacências ocultas". Concordante com o meu amigo, recordei-lhe um artigo em que Álvaro Cunhal profliga aqueles que entendem pôr "a arte acima de tudo", falando "de si e dos seus mesquinhos problemas", pois se o artista "fala dos outros e dos seus grandes problemas é um artista que sacrifica a arte a intenções sociais". (Obras Escolhidas, II, p. 251). No mesmo artigo, AC lembra que "o homem que cria a obra de arte e aquele que a aprecia são homens vivendo os problemas da sua sociedade, ligados a ela por todas as fibras do seu ser." (p. 246) e sublinha que, "queiram ou não queiram os artistas, tenham ou não disso a consciência, toda a arte, todas as obras de arte, estão impregnadas de significações sociais" (p. 247). Depois, exemplifica: "Quando, no seu poema, Sá-Carneiro deixava cair um braço e o punha a valsar nos salões do vice-rei; quando na pintura se topam monstruosas distorções ou partes separadas do corpo humano como 'marcas alusivas e poéticas'; quando toda uma corrente da pintura e da escultura manifesta uma verdadeira fobia pela personalidade completa do homem (ao mesmo tempo que um respeito relativamente objectivo perlas coisas inanimadas, pelas mercadorias...) – não se está perante um trabalho criador dos artistas independente do mundo social onde vivem, não se está perante o produto da mera investigação de valores estéticos; está-se perante um reflexo da distorção, deformação e mutilação da personalidade levada a cabo pela divisão do trabalho na economia contemporânea." (p. 250)
O debate foi interessante, enriquecedor e motivador. Independentemente de divergências mais ou menos profundas que se possa ter com os seus protagonistas, é incontroverso que Manuel Alegre e Carlos Brito foram denodados combatentes antifascistas e é desejável que o seu exemplo seja seguido pelas novas gerações de artistas. A conversa havida com o meu amigo poeta e as citações de Álvaro Cunhal reavivaram, por seu turno, a minha permanente incomodidade com as escritas que, estando forçosamente "impregnadas de significações sociais", parecem nada "pretender dizer além dos seus valores estéticos intrínsecos" (p. 245, op.cit.), caindo num hermetismo que, mesmo sem obliterar as tais "significações sociais", as condena a um papel modesto no plano da cidadania. Ou não será verdade que apenas uma reduzida elite está em condições de aceder aos seus (hipotéticos) significados?