RAYAN, A TENSÃO NA FRONTEIRA DA UCRÂNIA COM A RÚSSIA, O PODER DAS TVS E OUTRAS COISAS À MISTURA
RAYAN, A TENSÃO NA FRONTEIRA DA UCRÂNIA COM A RÚSSIA, O PODER DAS TVS E OUTRAS COISAS À MISTURA
Durante dias, as televisões mantiveram-nos amarrados aos ecrãs dos nossos receptores com as imagens comentadas das operações de salvamento de uma criança marroquina que ninguém conhecia no mundo inteiro, com a excepção dos seus parentes e vizinhos.
Sem detenças desnecessárias na afirmação de bons sentimentos, (que a morte de uma criança é sempre motivo de dor e compaixão, mesmo para aqueles que nunca a viram), há dois aspectos, aliás interdependentes, que merecem uma curta reflexão:
Aspecto 1. O poder descomunal que têm as tvs de activar as nossas glândulas lacrimais, quando isso serve os seus interesses económicos (guerra das audiências e mercado publicitário)
Quanto a este ponto, basta pensar-se, a contrario sensu, na nossa reacção à notícia da morte de crianças palestinianas por acção de soldados israelitas. As TVs relatam a ocorrência com a brevidade própria do flash e do fait-divers, parcimónia de pormenores e referência às versões contraditórias das partes (objectividade jornalística oblige): os soldados atiraram a matar / a criança lançou-lhes pedras ou integrava um grupo de manifestantes anti-sionistas. São crianças, mas não lhes é concedido o estatuto mítico do anjo, de mais uma estrela no céu e blá-blá-blá. Reacções dos espectadores: «Não há meio de se entenderem!», «Não aceitam a coexistência pacífica com o Estado de Israel!...», «São terroristas!», e etc. Nem a recente evolução do discurso da Amnistia Internacional, que já fala do «apartheid» israelense, alterará a opinião solidificada.
Aspecto 2. A eventual replicação do fenómeno, no plano político, embora com a intervenção de outras glândulas e com consequências mais destrutivas.
Esta abordagem carece, obviamente, de maior ponderação, mas, não sendo este texto um rascunho prévio a uma tese de doutoramento, arriscaria o seguinte, recorrendo ao prato forte da actualidade internacional, a chamada “tensão na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia”:
a) As nossas TVs, quando está em causa uma relação potencialmente conflitual entre aquilo a que chamam “regimes”, isto é Estados não alinhados com o figurino institucional do Ocidente capitalista e, particularmente, com as suas parcelas estado-unidense e europeia unida, adoptam invariavelmente o ponto de vista das últimas, que são apresentadas sob a luz da mais imaculada democracia e insusceptíveis de questionamento quanto às suas virtudes. Os Estados que enveredaram por outras vias de desenvolvimento e de organização política, ou que, simplesmente, entendem não aceitar o policiamento dos EUA/UE/NATO, esses, merecem um tratamento cáustico, denunciador de uma rejeição apriorística, ou não estivessem as TVs cientes de que o seu endoutrinamento fez o seu curso e a aceitação acrítica pelos telespectadores da sua visão tendenciosa é um dado adquirido.
Este estado de coisas é perfeitamente compreensível, numa sociedade onde, naturalmente, os meios de comunicação, públicos ou privados, são detidos pela classe dominante. Por conseguinte, a parcela minoritária da população que se apercebe da acção mistificadora da comunicação social acaba por adoptar uma de duas atitudes: ou verbaliza o seu desgosto, através da censura expressa, ou exprime friamente a sua convicção de que o papel desta comunicação social é aquele que lhe cabe na sociedade que é a nossa e só a abolição dos seus fundamentos permitirá outro estado de coisas. Em ambos os casos, a TV, em particular, ignorará tais reacções, e, não passando na TV, elas não existirão. O que não existe para a TV, pura e simplesmente não existe. As próprias vítimas da mistificação / alienação, não tendo consciência dela, tenderão a ver, nos críticos não desistentes, uma espécie de quixotes empenhados em combater gigantes que não passam de moinhos de vento. Do mesmo modo que tenderão a ver, nas considerações sobre a informação distorcida, enviesada, tendenciosa e, no limite, criminosa, sobre as “tensões” internacionais, uma reflexão distorcida, enviesada, tendenciosa e, no limite, criminosa, tendente a branquear a política agressiva de uma potência que já foi comunista e que poderá não se ter desfeito totalmente dessa herança. Ora, em relação ao comunismo, estamos conversados: tivemos quarenta e oito anos seguidos de quase mais outros tantos para dele conhecermos todas as malfeitorias. Já em relação às invasões, ingerências, intervenções ditas humanitárias, promoção de acções desestabilizadoras de “regimes” pouco recomendáveis levadas a cabo pela democrática sociedade EUA/EU/NATO, de pouco vale a memória dos que se lembram ainda das pinochetadas, das armas de destruição maciça, e por aí adiante.
Voltando à Ucrânia, quase apetece sugerir a Lavrov que proponha aos seus interlocutores da NATO o seguinte acordo: a Ucrânia adere à NATO e, em contrapartida, “regimes” da América Central como Cuba, a Venezuela bolivariana, a Bolívia evo-moraliana são convidados a aderir à Organização do Tratado de Segurança Colectiva. Como irá reagir o farol da democracia? Que leitura isenta e objectiva farão disso as nossas TVs?