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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

SEXTO SENTIDO

Entre o embate e o tilintar dos vidros ao caírem no pavimento decorrera um segundo, talvez, e a surpresa refreou-lhe o palavrão habitualmente desencadeado pelo erro, pela imprudência ou, simplesmente, pelo que não lhe corria de feição. Na verdade, era mais palavrita do que palavrão. Ainda assim, uma exclamação imprópria para salão e única que lhe ocorria quando se tratava de exprimir alguma irritação.

Já alguns transeuntes se demoravam, embasbacados, a ponderar a extensão dos estragos e o comportamento das partes envolvidas, F. cortou a ignição, abriu a porta do carro e encontrou-se frente a frente com a condutora do veículo atingido. As apresentações estavam feitas: condutor A, o percutor; condutora B, a percutida. Não ia haver discussão nem regateio pela repartição de responsabilidades. Era óbvio que a lacuna no elenco lhe desviara a atenção e não se apercebera de que os carros que o precediam haviam estacado. Minha senhora, as minhas desculpas. Como é evidente, assumo toda a responsabilidade. E pronto. Ela, muito simpática. Dir-se-ia prestes a suplicar perdão por ter sido abalroada. Como se a eventual falta do embate determinasse incumprimento de agenda. O que o obrigava a multiplicar os pedidos de desculpa. Muito calmo, ele, desde a manhã desse dia. Sentia também que tudo o que o rodeava tinha um aspecto ligeiramente diferente do habitual. Pensando melhor, parecia-lhe que via as coisas de modo diferente, não por elas se terem modificado, mas sim porque os seus olhos já não eram os mesmos. O mundo não tinha mudado, só os instrumentos de observação do mundo. Em todo o caso, naquela ocorrência, o que os seus olhos tinham visto eram vidros partidos e chapa amolgada no carro que o precedia, logo, não havia que duvidar das aparências – era ele o culpado. O que o tranquilizava. Nada mais indesejável do que envolver-se numa contenda dialéctica tendente a minimizar a sua parte de responsabilidade, quando é sabido que o veículo que segue atrás deve manter uma distância de segurança em relação ao que o precede. Resolveram encostar, de forma a não dificultar o trânsito. Era preciso preencher a declaração amigável. Ou talvez não. Ia-se ponderar. Ali, mesmo ao pé, aquele barzinho acolhedor. Ele tira um desdobrável do porta-luvas e introdu-lo num portefólio que retira do banco traseiro. Entram e sentam-se.

Ao longo da parede do bar, corre um banco estofado, de napa cor de vinho. Mesinhas baixas pontuam o espaço próximo do banco e, à volta de cada mesa, dois ou três pufes da mesma cor. A empregada tem feições perfeitíssimas e uma maquilhagem que a sua juventude dispensaria.
— Há sempre tão pouca gente a esta hora?
— Os clientes habituais começam a chegar mais tarde — responde.
A condutora abalroada: — É a primeira vez que aqui vem?
E a empregada: — Quer com muito gelo?
— Não, só uma pedra. É. De facto, nunca tinha surgido a oportunidade.
Ele aproxima-se dela. Abre o portefólio. Há, lá dentro, um opúsculo, folhas manuscritas e o desdobrável da declaração amigável. Estão tão perto e tão sós que se justificaria um pequeno cumprimento feito de um Boa tarde apenas ciciado e de sorrisos discretos. De resto, a circunstância do choque não lhes permitira sequer um cumprimento. O seu pedido de desculpas tinha ditado uma sequência dialogada marcada pelo pragmatismo. Mas o sorriso. O sorriso abre-se-lhe no rosto de grande regularidade e irradia felicidade, como é costume dizer-se. É um sorriso como uma anuência hesitante ou convite receoso. Mais ou menos isto: Gostava de te tocar, gostava que me tocasses; dou muita importância ao toque, mas é cedo, respeitemos as conveniências, saibamos dar tempo ao tempo. Ele sente a inconveniência do que vai congeminando: atribuir à sua vítima, por muito simpática que seja, o desejo de que ele a toque, quando lhe tinha desastradamente tocado minutos antes, é de manifesto mau gosto. Porém, os olhos dela, brilhantes, parecem compartilhar da ousada prudência do sorriso, e o decote, generoso, deixa adivinhar-lhe as rolas em que Cesário espeta o ramalhete rubro das papoulas. O decote generoso.

Quase se tinha esquecido da falha de memória matinal e agora inquieta-se novamente. O facto é que, para além de nomes, esquecera o que fizera na véspera. Era a primeira vez que sentia a memória atraiçoá-lo de maneira tão consistente. Uma ou outra vez, esquecer-se de um pormenor, de uma tarefa, de um compromisso, até, era coisa com que não se ralava, mas aquilo parecia-lhe sério. Pensou, então, se não seria do cansaço. Noites seguidas, poucas horas dormidas de um sono mau. Sonhara? Não se lembrava, mas um travo acre embebia-lhe uma recordação vaga de coisas más.

A condutora percutida, ali, perto dele, era um sonho bom. Voltou a relanceá-la, quando ela própria o fazia, e os olhares de ambos cruzaram-se. Sorrisos reeditados. Mulher interessante, pensou, o que o fez lembrar-se do Querubim, no Casamento de Fígaro, que encenara uns anos antes. Quem lhe dera a inventiva de Beaumarchais, a sua verve. Teria ele na vida a eloquência que se via no teatro? – "Tu sais trop bien, méchante, que je n'ose pas oser".

― "Cartas ridículas... suspiros líricos..." ?!
— É. Vou encenar umas cartas do Pessoa* .
Sorriso de um, sorriso do outro.
— Ah, é encenador? Que coincidência, eu sou actriz.
― Não é possível; eu havia de a conhecer.
― Sabe, na realidade, sou uma aspirante a actriz. A nossa troupe vem do tempo da faculdade, mas anda à deriva.
Aquelas troupes vindas do tempo da faculdade. Quantos sonhos, quantas ilusões, quanta ingenuidade. Porém, ouve-a dissertar sobre Stanislavski, Lee Strasberg, o Actors Studio.
São cinco da tarde, como no poema de Lorca. Movimento intenso na rua. Esforça-se por se lembrar do que poderia ter acontecido para estar ali sentado, àquela hora, junto de uma desconhecida que disserta sobre teatro. De facto, não vê razão plausível para isso e até se sente constrangido. Mas ela não pára: depois de Artaud e Brecht, detém-se em João Mota e enfatiza o aplomb de Luís Vicente. Mulher interessante. Lembrava-se agora de que lhe faltava uma Ofélia convincente.

(Conto publicado, em edição colectiva, pela Lua de Marfim, em Outubro de 2016)

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* Texto de Paulo Moreira levado à cena pela ACTA.