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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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SOB O CÉU DAS FRONTEIRAS – ou a vida, tal como ela foi, e ainda, tantas vezes, é

Sob o Céu das Fronteiras - capa - José Estêvão Cruz.jpg

José Estêvão Cruz, com um currículo de deputado, de autarca, de jornalista (para além do exercício mais propriamente profissional e granjeador do pão para a boca), é também um prolífico escritor, com um assinalável número de romances, frequentemente focados na vida das gentes do Sotavento algarvio, em diferentes momentos históricos.

A sua obra alia as características próprias da ficção literária – nomeadamente no tocante ao estilo e às categorias da narrativa, com personagens que interagem e dialogam no espaço e no tempo que lhes é próprio – ao didactismo de um narrador que detém conhecimentos profundos sobre a vida das gentes que dão consistência e espessura aos seres de papel que as personagens sempre são. Tal didactismo não se limita, porém, a este conhecimento directo, tangível, do dia-a-dia de quem labuta por uma bucha de pão e um tecto.

A obra de José Estêvão Cruz é, toda ela, reveladora de uma vida, em boa parte, consagrada à defesa dos interesses dos trabalhadores, nos diferentes cargos electivos que exerceu. Mostra-nos isso num registo linguístico muito concreto – por vezes, mesmo técnico –, sempre que se trata de questões relacionadas seja com a vida tout court e a actividade profissional dos pescadores, mariscadores e armadores, seus percalços e pendências com as autoridades fiscalizadoras (construção clandestina, contrabando, vigência do acordo de pescas entre os Estados ibéricos), seja no respeitante à legislação, aos procedimentos e às relações entre os dois países.

A construção, em tempo recorde, de uma barraca de lata, no areal de Monte Gordo, por um jovem casal de namorados – João Largo e Almerinda Ferreira –, ansioso por privacidade, em tempos de contra-revolução, com a AD no governo central e uma Câmara comunista em Vila Real de Santo António, constitui o ponto de partida do romance Sob o Céu das Fronteiras.

Essa barraca de lata, ainda sem tecto, serve de abrigo e de cenário a uma primeira entrega dos namorados aos jogos do amor. Porém, logo na manhã seguinte, são acordados por funcionários que os instam a abandonar a ideia de terem ali um poiso. Num tempo em que construções clandestinas precárias se espraiam pela zona poente do areal de Monte Gordo, o projecto SAAL prevê a construção de uma rua, separando o mar e o areal mais a ele chegado, da área onde as barracas são já numerosas. Ora a barraca recém-erguida ficaria mesmo no meio dessa rua ainda por rasgar. A vizinhança mobiliza-se, solidária com os namorados, mas a diplomacia municipal logra pôr água na fervura, com a promessa de um «programa de reabilitação dos loteamentos implantados no areal da praia a capricho dos habitantes, com alinhamentos irregulares» e a cedência de «terrenos em regime de direito de superfície».

O desvendamento do enredo do romance será o melhor meio de acicatar o apetite do potencial leitor? Não sei. Pelo sim, pelo não, vou acrescentar três ou quatro pormenores: várias peripécias levam à separação temporária do casal; as relações transfronteiriças azedam com o encerramento da fronteira fluvial, fruto de discordâncias quanto a um acordo de pescas de 1969, sobretudo em termos de vigência; João Largo vê-se desterrado por algum tempo em mares e terras da Mauritânia, na sequência de um incêndio e naufrágio; entra na história uma espanhola militante da causa do Saara Ocidental e da Frente Polisário, procurada pela polícia em virtude da sua semelhança com uma etarra; Almerinda faz-se operária conserveira e sofre um aborto na sequência de uma carga da Polícia de Intervenção, a mando do Governo Central, por ocasião de uma greve do sector conserveiro. Acho que foram cinco (pormenores). Venham mais cinco, digo-vos eu, que gostei do que li e me lembrei de Redol. E do Zeca, claro.