Casamento gay e adopção

crianças
por Sangroncito, flickr.com
Foi ontem, 8 de Janeiro, aprovada a proposta de lei do Governo que alarga o instituto do casamento aos casais homossexuais. Apesar das minhas reservas em relação à questão de fundo do casamento, fiquei satisfeito. Porque esta aprovação constituiu uma vitória da abertura de espírito, da tolerância, da modernidade – da esquerda –, sobre a direita retrógrada. Claro que o Partido Socialista, que não é de direita nem de esquerda, antes pelo contrário, e que, em questões de índole económica, como é sabido, se comporta normalmente como qualquer partido de direita, comportou-se nesta circunstância como um partido de esquerda.
Dito isto, subsiste a questão da adopção, que vai provavelmente dar azo a que o Presidente da República vete a lei. E é a esta questão, deixada em aberto no meu post de 18 de Dezembro, que quero voltar, para mais algumas breves considerações.
A adopção de crianças por casais homossexuais – como, aliás, inúmeros outros aspectos da vida social –, pode ter dois enfoques: um, objectivo, assente nas circunstâncias reais do presente; outro, a que chamarei prospectivo, desinserido do hic et nunc, apontando para um futuro que, extrapolando e cortando com as tendências actuais em matéria de costumes, presumo mais tolerante.
Se nos colocarmos na primeira perspectiva, a ideia de adopção parecer-nos-á inaceitável. Qual é o pai, a mãe, o educador que, no seu perfeito juízo, aceita com placidez a ideia de uma criança que os colegas, na escola, apontam a dedo porque não tem, como todos os outros, um pai e uma mãe, mas dois pais ou duas mães. Dois pais ou duas mães a quem os pais e mães dos outros meninos chamam maricas e fufas – para não dizer pior? Este enfoque, estático, parado no tempo, sobrevaloriza as condicionantes da nossa vida em sociedade, amplifica-as como lente, absolutiza-as. Induz inevitavelmente o fantasma de uma geração de seres andróginos – particularmente de rapazes pouco másculos, efeminados, capazes de facilmente se comoverem e de chorarem, impróprios para o serviço militar e para a guerra.
Já o outro enfoque, dinâmico, cortando as amarras ao tempo presente, alijando toda a “tralha” que herdámos da nossa educação tradicional, dá-nos uma visão não só aceitável como talvez aliciante da adopção de crianças por casais homossexuais. É que a ideia de uma geração imensamente mais tolerante e sensível (porque educada num ambiente em que a discriminação e os seus malefícios seriam sentidos pelas crianças como uma injustiça de que os seus adoptantes seriam vítimas) não pode deixar de agradar àqueles para quem, descontada a problemática da reprodução (o dimorfismo sexual), os sexos não têm fatalmente que ser contrastantes em tudo, como propugnava o fascismo e a sua Mocidade Portuguesa.
Como se vê, é o interesse da criança, sempre invocado no debate sobre a adopção, que aqui se equaciona. E, mais uma vez, surpreende-me a posição da Igreja e da direita. Pois se uma e outra, geralmente de mãos dadas, idealizam, sublimam a natureza humana como obra divina e, consequentemente, desvalorizam a dimensão material da humanidade, como entender que, neste particular, se dê tanta ênfase à carne, em detrimento do espírito? Como é que a Igreja só pode vislumbrar a relação carnal numa união em que a comunhão espiritual é inquestionavelmente tão importante quanto a relação física? Como pode ela anatematizar duas criaturas (etimologicamente, obras de Deus) que se amam e que pretendem amar e educar uma terceira? Há que admitir que a ontologia se verga aqui aos interesses circunstanciais.
Sabemos que a misoginia é um legado cultural judaico-cristão. Contudo, na questão deste casamento e desta adopção, a Igreja alarga o âmbito do seu ódio: já não é só Eva que dele é alvo, ou não tivesse ela feito Adão cair em tentação… Agora, é também Adão que tenta Adão. E, com isso, a misoginia faz-se quase misantropia.