Atribulações de um cidadão em busca do respectivo Cartão
Foi no dia 28 de Agosto próximo passado que resolvi pedir o Cartão do Cidadão (CC). O meu BI até estava longe de ter caducado, mas entendi que era tempo de emagrecer a carteira, a abarrotar de cartões de toda a espécie. O CC sempre é mais pequeno do que o BI e, sobretudo, substitui dois ou três outros. Dou todas estas explicações, não se vá pensar que sou daqueles que, há uns anos atrás, quando a nossa entrada na CEE era uma miragem duradoura e tema inspirador de humoristas, se apressaram a substituir as placas antigas de matrícula dos carros por placas idênticas às que já se usavam no estrangeiro, embora nada os obrigasse a fazer essa despesa.
Foi fácil e rápido. Apenas a fotografia à la minute ficou uma lástima, ou seja muito diferente dos passes que se faziam antigamente, se bem que me tenham garantido uma grande fidelidade ao original. Mera opinião, sem dúvida alguma malévola.
A 21 de Setembro, uma vez que a carta pin, indispensável para levantar o cartão, continuava sem me chegar, dirigi-me novamente ao balcão de Faro da Loja do Cidadão, onde pedi uma 2.ª via da referida carta. A 9 de Outubro, porém, não é esta 2.ª via que me chega, mas sim a primeira carta, emitida perto de um mês e meio antes, com marcas de sujidade indiciadoras de um percurso atribulado. Quanto à 2.ª via, nicles-batatões. Nunca a vi.
Tendo-me ausentado durante uns dias, só a 20 de Outubro fui à Loja do Cidadão reclamar, enfim, o meu novo cartão. Ufano, fiz a imediata entrega dos três ou quatro de que ia finalmente livrar-me à jovem funcionária, que não desejava senão enfiá-los diligentemente numa máquina de furar, a fim de os invalidar. E que mos devolveu competentemente esburacados, não fosse eu insistir em conservá-los na carteira empanzinada – cioso destes artefactos que farão, porventura, a felicidade dos historiadores que vão, no futuro, estudar a variedade dos instrumentos de identificação dos cidadãos do século XX.
Tempo perdido. Embora o cartão estivesse lá (foi-me mostrado, com aquela fotografia horripilante…), a funcionária recusou-me a respectiva entrega, já que o Sistema Informático – essa entidade abstracta, imaterial e todo-poderosa que põe e dispõe dos nossos cartões e das nossas vidas – alega não estar “concluído o processo de validação” por motivo de “dados incoerentes”. Exultei: o sistema informático detectara seguramente que aquela fotografia era incoerente com a pessoa que pretendia retratar. Contudo, o meu júbilo ficou fortemente abalado logo a seguir, quando percebi que, enquanto o demónio esfregava um globo ocular (expressão inquestionavelmente menos susceptível de confusão com um qualquer plebeísmo de gosto mais que duvidoso do que a sua congénere que, obviamente, omito), eu ficara despojado dos meus tradicionais documentos de identificação (BI, cartão de contribuinte, cartão de utente do SNS e cartão de eleitor) e impossibilitado de usar o meu novíssimo e inacessível cartão.
A jovem lojista (do cidadão) pôs água na fervura da minha angustiosa preocupação: enquanto eu não fosse contactado pelos serviços do IRN (e, para o efeito, pediu-me o n.º de telefone), bastar-me-ia andar sempre acompanhado do pedido inicial do cartão de cidadão – uma folhinha A4 que eu dobrei conscienciosamente em oito e que ficou sensivelmente com o tamanho do BI furado e com a espessura dos cartões inutilizados todos juntos. Refira-se, de passagem, que a folhinha em questão contém a fotografia do cidadão a que diz respeito, por muito que o cidadão em causa recuse qualquer semelhança com a sua representação fotográfica.
A 5 de Novembro, perante a ausência de qualquer contacto, dirigi-me novamente à Loja. Talvez o problema estivesse ultrapassado e tivessem extraviado o meu n.º de telefone (!). O jovem funcionário viu tudo, estranhou tudo, pediu-me também o n.º de telefone e garantiu-me que ia enviar um fax para os serviços centrais, a fim de indagar.
Eis senão quando… A 9 de Dezembro, na iminência de chegar a 2010 indocumentado e decidido a falar com as chefias, esperei pela minha vez, expliquei muito sucintamente a outra funcionária o que se passava e … ela entregou-me o cartão de cidadão. Ainda procurou no Sistema Informático e na pasta de faxes um vestígio dos trâmites atribulados que eu lhe narrara com pouca convicção, mas… nada. Era a entrega, sem história, de um cartão a um cidadão que tinha tardado a levantá-lo. E eu saí, entre o satisfeito e o acabrunhado. Sem saber muito bem se a culpa não terá sido minha. É que até tinha um BI – agora com um furo perverso no canto superior direito – cuja fotografia datava de há uns anos. Que me identificava muito melhor do que a actual e com a qual me sentia mais identificado – o que é seguramente desejável num documento de identificação.
Para além deste pormenor – apesar de tudo, irrelevante –, cumpre dizer que, nas minhas seis deslocações à Loja do Cidadão, terei gasto cerca de dez horas e uns vinte euros, no estacionamento subterrâneo do Largo do Mercado. O que é uma ninharia, comparado com a exaltação do contacto humano que me foi assim proporcionado.
Ando com vontade de pedir a substituição deste cartão. Não é por nada, mas aquela fotografia…
fanzine "loja do cidadão" , flickr.com