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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Ter a ilusão de ter opinião

 

Nos espaços públicos de discussão e debate das rádios (Antena Aberta da Antena 1, Fórum da TSF, …) ouve-se frequentemente, para além de toda a espécie de dislates, com queixas justificadas e proclamações inflamadas de teores diversos à mistura, a expressão de opiniões ditas pessoais, estribadas – naturalmente – naquilo que a imprensa de referência, as rádios e as televisões propalam.
 
Na Antena Aberta de hoje, 4.ª feira, 3, discutia-se a Lei das Finanças Regionais. Sobre o fundo da questão não me pronunciarei. Não tenho opinião pessoal. Pelo menos para já. Mas devo ser uma ave rara. Porque há imensa gente que a tem e não descansa enquanto a não torna pública. São precisamente estas opiniões pessoais que dão o mote ao post de hoje.
 
Dizia um ouvinte, entre vários, que a reivindicação financeira de Alberto João Jardim (essa personagem saída de um romance de cordel brasileiro, com coronéis e jagunços a semearem a lei e a ordem pelo sertão) era um desconchavo, tendo em conta o facto de o país estar em crise e sem cheta.
 
Mais uma vez, não é sobre a questão das finanças regionais que vou opinar, mas sim sobre a opinião pessoal de estarmos em crise e sem um chavo. A crise, dou-a de barato, claro. Até aí, estamos todos de acordo, embora lhe possamos dar nomes diferentes. Eu chamar-lhe-ia crise cíclica. Há uns bons cento e cinquenta anos que umas quantas pessoas em cujas opiniões pessoais confio se debruçaram sobre as relações de produção em diferentes sociedades e em particular naquelas em que capital e trabalho mantêm entre si antagonismos só resolúveis por uma nova síntese revolucionária. Para essas pessoas, a superprodução e o concomitante empobrecimento de grandes massas de trabalhadores conduz fatalmente a tais crises. Já a referência à inexistência de dinheiro, é assunto em que as minhas dúvidas são avassaladoras. Confesso humildemente que não sei. Isto é, sei – e muito bem – que muita gente não tem. Por exemplo, e cito António Vilarigues no artigo “O novo avatar do neoliberalismo luso”, publicado no Público de 22 de Janeiro, “os dois milhões de portugueses que vivem abaixo do limiar da pobreza (o que significa que vivem com menos de 406 euros/mês); os 12% dos portugueses que têm emprego mas que estão também em risco de cair numa situação de pobreza; os 700 mil desempregados reais, mais de um terço dos quais sem direito a receber qualquer subsídio; os 450 mil que trabalham e recebem apenas o Salário Mínimo Nacional; os mais de 40% dos trabalhadores por conta de outrem com um rendimento inferior a 600 euros; os 35% dos portugueses que não têm rendimentos suficientes para manter um sistema de aquecimento em casa; os 64% que não conseguem pagar uma semana de férias fora de casa”.
 
Mas há excepções.
 
Exemplificando de novo, eis o que aprendi lendo um artigo intitulado “Banca enriquece com a crise”:
 
-“Só nos primeiros meses de 2009, os cinco maiores bancos a funcionar em Portugal – CGD, BCPMillenium, Santander Totta, BES e BPI – obtiveram lucros líquidos que atingiram 1447,9 milhões de euros”.
 
-“No período 2005-2009, a banca arrecadou cerca de 1468 milhões de euros de lucros apenas por não ter pago a taxa legal de IRC e de derrama” (27,5% até 2006; 26,5% a partir de 2007).
 
-Em vez disso, a banca pagou 11,7% em 2005, 19,4% em 2006 (“como consequência de uma forte denúncia feita na Assembleia da República”), 14,5% em 2007, 12,8% em 2008, e prevê-se que baixe para 9,9% em 2009.
 
-“Em 2005, as Despesas com Pessoal correspondiam a 32% do Produto Bancário. A partir dessa data esta percentagem tem diminuído de uma forma contínua atingindo, em 2008,apenas 27,5%, tendo subido para 28,6% do Produto Bancário no 1.º semestre de 2009, mas não é certo que o ano termine com esta percentagem”.
 
-“Em 2008, segundo o ‘Relatório anual sobre o governo das sociedades cotadas em Portugal”, divulgado pela CMVM em 2009, a remuneração média anual de cada administrador do sector financeiro foi de 698 081,3euros, atingindo 777 120,4 euros se o banco integrasse o PSI 20 (BCP, BES e BPI)”.
 
Convém frisar que este artigo, da autoria do economista Eugénio Rosa e publicado no Avante! de 21 de Janeiro, tem como fonte o Boletim Informativo da Associação Portuguesa de Bancos.
 
Perante este quadro risonho, só ocorre dizer que a opinião pessoal de que estamos em crise e de que não há dinheiro é capaz de ser uma opinião pouco pessoal, mas muito conveniente para aqueles que passam ao largo da crise, de bolsos cheios e estômagos aviados.
 
E como Vítor Constâncio admite como plausível o aumento do IVA – imposto indirecto que onera de igual modo banqueiros e desempregados – e o FMI sugere a redução dos salários, que Fernando Ulrich já tinha sugerido e cuja possibilidade não é descartada por Silva Lopes, não nos admiremos se, dentro de dias, inspiradas por estas sábias sugestões que a comunicação social de referência repete em cada noticiário, sem contraditório, começarem a surgir na Antena Aberta e no Fórum opiniões pessoalíssimas de ouvintes (muitas vezes tão bem intencionados quanto ingénuos) dispostos a aceitar que lhes reduzam o salário.
 
A bem da Nação. Ora pois!