De Vasco Graça Moura, possuo há anos o romance Naufrágio de Sepúlveda (Quetzal, Lx.ª, 1988), cuja leitura foi sempre preterida por outras mais urgentes. Mas acabei de ler, há dias, O Enigma de Zulmira, muito mais recente (Quetzal, Lx.ª, 2002), que me deixou uma boa recordação.
A escrita de Graça Moura situa-se nos antípodas da do actual Lobo Antunes. Enquanto este, na sua última fase – de desconstrução, em que o registo de memórias, aliado à segmentação do discurso e à posterior justaposição quase aleatória de segmentos conduz àquilo a que o crítico Rui Catalão chamou catástrofe narrativa –, produz romances que de algum modo se aproximam da poesia (a lírica, claro, que não a narrativo-épica), Graça Moura recusa a inovação, aposta na continuidade. Temos, assim, um romance realista, na concepção, na trama, na discursividade sem falhas nem atropelos. E até a linguagem, rica, lembra agora a do Eça, irónica e cosmopolita, logo a de Camilo, irónica e vernácula, se bem que o ritmo frásico seja geralmente mais acelerado em Graça Moura. Reencontrei neste romance alguns vocábulos que me eram familiares na infância, que nunca mais ouvi nem usei desde então e que me tinha convencido há muito de serem regionalismos a evitar – é o caso dos adjectivos esbeiçado e esbotenado, que não constam do dicionário do Word e significam, respectivamente, gasto, coçado e de bordas quebradas, deteriorado.
Quanto à história, interessante, põe-se a questão da verosimilhança. Uma jovem, filha de boas famílias, de temperamento particularmente fogoso, que milita no PCP e acaba por se envolver eroticamente com um agente da PIDE, de quem, aliás, faz gato-sapato, como acontecera com todas as relações anteriores – eis um enredo que não parece muito convincente. Mas este resumo muito resumido da história complexifica-se quando entram em cena as circunstâncias dos anos 50, da Guerra Fria, dos conflitos internos das organizações políticas e da actuação das polícias políticas (neste caso, o KGB, como não podia deixar de ser). Ora, se verosimilhança não é o mesmo que verdade, podemos sempre admitir que, se não aconteceu, poderia, apesar de tudo, ter acontecido.
A ficção da recolha de elementos sobre a personagem e a sua história, tendo em vista a redacção de um guião para a posterior realização de um filme, constituindo um interessante álibi narrativo, serve ainda de pretexto, sobretudo na parte final do romance, a considerações de ordem prática sobre a elaboração de uma narrativa: “(...) no fundo, nesta altura do campeonato, já não se tratava da história da Zulmira, mas sim do estranho caso da Zulmira e do argumentista. Era entre ela e ele. Entre o que lhe contavam dela e o que podia sair da cabeça dele. Era aí, nessa híbrida charneira, que tudo se ia jogar. Que se ia engendrar a ficção. Que ele arrancaria dos factos mas lhes acrescentaria aquilo que imaginasse. Que a verosimilhança podia ser inflectida aqui e ali. Por exemplo, deixarem a Zulmira à solta, depois de a interrogarem das primeiras vezes. Ou deixarem-na ir a França. Ou restituir um certo clima de princípios dos anos cinquenta.” (p. 151)
Este Enigma de Zulmira foi, para mim, um enigma duplo – dela e de Vasco, que não imaginava a escrever um romance destes.
“Sôbolos rios que vão” é o primeiro verso das célebres redondilhas em que Camões faz o balanço da sua vida passada e projecta o futuro através da superação mística das contingências humanas. Sôbolos rios que vão é também o título do vigésimo segundo e mais recente romance de António Lobo Antunes.
Deste romance, diz a professora Maria Alzira Seixo, entre outros encómios, que “é um dos mais maravilhosos que o autor escreveu até hoje. É um dos casos em que a reflexão sobre a vida pessoal (enfim, a autobiografia!) consegue aliar-se, em ambos os escritores [Camões e Lobo Antunes] à expressão literária de um modo artístico insuperável” (Jornal de Letras n.º 1044, 6-19/10/2010). Já Rui Catalão, aparentemente menos indefectível admirador de ALA do que a professora Alzira Seixo, tempera a sua análise crítica falando-nos de “um livro muito belo e muito desequilibrado”, livro este em que “a maior fragilidade do Sr. Antunes reside em sacrificar a construção das cenas, ou dos episódios, à montagem de frases dispersas e imagens fragmentadas”. E acrescenta: “o livro está repassado de grandes momentos de literatura e os seus efeitos dramáticos chegam a ser comoventes. Mas esses efeitos que resultam de uma técnica de escrita que articula processos mentais de associação, dinamitam qualquer chance de o livro erguer outra coisa que não seja a catástrofe do cenário, da acção e das personagens” (Ípsilon, 15/10/2010).
Nutro grande respeito e admiração pela professora Alzira Seixo, de quem fui aluno, mas não consigo partilhar a sua simpatia por este romance de Lobo Antunes, que me faz lembrar o filme “Branca de Neve” de João César Monteiro, filme que, aliás, não vi, nem – julgo – poderia ter visto, uma vez que, depois de uma curta cena inicial em que se vê o realizador a colocar um pano sobre a objectiva da máquina de filmar, a tela escurece e nada mais se vê até ao fim, apenas se ouvindo vozes. Em Sôbolos Rios ouvem-se vozes, sobretudo a do protagonista, mas, quanto à possibilidade de visualizar, o que se passa é que as imagens são de tal modo fragmentadas e incoerentes que acabam por instituir o caos.
É certo que a narrativa contemporânea nos habituou às mais diversas infracções e desvios: as categorias que a enformam – tempo, espaço, acção, personagem – sofrem tratos de polé que poriam em pé os cabelos dos clássicos, ainda que alguns procedimentos agora banais não sejam novidade (basta lembrarmo-nos de Os Lusíadas, p. ex., com o seu começo in media res). Mas uma coisa são as analepses e prolepses, os encaixes e alternâncias, a sobrevalorização do stream of consciousness em detrimento da acção, a despromoção da personagem; outra é a desconstrução artificial do discurso e a sua redução a uma amálgama de segmentos disformes.
Admite-se um discurso incoerente, se é uma corrente de consciência torturada que se pretende reproduzir (ou criar) literariamente (o que acontece efectivamente com o protagonista de Sôbolos Rios), mas esse discurso há-de constituir um segmento relativamente curto dentro da estrutura do romance. Enformar toda a narrativa com o molde da torrente caótica de uma consciência doente (através da elipse frequentíssima de verbos e da justaposição de acções independentes ocorridas em tempos e espaços diferentes) é destrui-la. E já não falo da pontuação, pouco menos do que arbitrária, que faz da de José Saramago (tão vilipendiada!) algo de quase convencional...
Enfim, dir-se-ia que António Lobo Antunes se empenhou em concretizar o preceito de que quanto pior melhor. Mas o facto é que quanto pior pior.